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História da Ciência no Brasil

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Mais que paisagens: a viagem de Maximilian de Wied-Neuwied e o lugar das expedições científicas europeias no Brasil joanino

por Daniel Dutra Coelho Braga/USP

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 O trânsito de homens de ciência europeus em território luso-brasileiro se intensificou ao longo do governo régio de D. João VI (1808-1821). Hoje, são vários os exemplos de materiais decorrentes dessas experiências. Relatos de viagens publicados, gravuras, diários de viagem manuscritos e esboços cartográficos são apenas alguns desses registros, relativamente acessíveis em diversos acervos.

Contudo, ainda que acessíveis, o que poderia indicar um contínuo debate acerca das condições e conflitos que permitiram sua criação, esses acervos são algumas vezes analisados por meio de conceitos que pouco dizem sobre eles. Muitas vezes, imputam-se a esses documentos distinções rígidas entre a Europa de origem dos homens que os produziram e os espaços por eles visitados, como se o referente de muitos desses textos fosse apenas o encontro entre um determinado tipo de ator momentaneamente desenraizado – o “viajante” – e paisagens caracterizadas pelo exotismo de uma natureza que prevaleceria sobre as sociedades que nesses espaços se estabeleciam. Ademais, o próprio trabalho desses viajantes, enquanto homens de ciência, muitas vezes deixa de ser evidenciado em análises, como se o momento da viagem fosse uma etapa neutra de coleta de dados ou aplicação de teorias e conceitos previamente estabelecidos, em vez de ser, em si, uma etapa decisiva da própria formulação científica, na qual seus pressupostos e práticas podiam ser confrontados, desafiados, reavaliados e mesmo reinventados.

Um ator de destaque nesse período foi o príncipe Maximilian Alexander Philipp de Wied-Neuwied (1782-1867), que realizou sua viagem ao Brasil entre 1815 e 1817. Seus relatos inspiraram diversos estudiosos, entre os quais Luís da Câmara Cascudo.

Na Biblioteca Nacional, materiais publicados decorrentes da viagem de Wied-Neuwied fazem parte de diferentes acervos. Na Divisão de Iconografia, por exemplo, é possível consultar Abbildungen zur naturgeschichte Brasiliens, obra em dois tomos dedicados à classificação de espécies. Um tomo trata das descrições em duas línguas, francês e alemão, acompanhadas da taxonomia em língua latina. O outro, por sua vez, apresenta imagens. A Divisão de Obras Raras, por sua vez, guarda o volume Reise nach Brasilien in den Jahren 1815 bis 1817.



FIGURA 14: Abbildungen zur naturgeschichte Brasiliens : Recueil de planches coloriés d'animaux du Brésil - Biblioteca Nacional

Com descrições em alemão e em francês, Abbildugen zur naturgeschichte Brasiliens demonstra como, junto à taxonomia em língua latina, termos utilizados localmente para designar espécies foram apropriados, em alguma medida, mediante um esforço de traduzi-los ou adaptá-los para as línguas europeias. A taxonomia proposta por esses viajantes exigiu, portanto, uma atenção a saberes anteriormente estabelecidos pelas populações locais e a fixação da representação taxonômica não deixou de lado esse conhecimento local.

No tomo de pranchas e gravuras de Reise nach Brasilien in den Jahren 1815 bis 1817, por sua vez, destacam-se as representações de utensílios e vestuário indígenas, notadamente os apresentados, à época, pelos Puri e pelos então chamados Botocudos. Essa atenção aos objetos situa o viajante em uma história natural atenta a costumes e usos da natureza, não redutível à antropometria baseada sobretudo em crânios – prática corrente da história natural da época, na qual se entendia a antropologia como parte da zoologia –, ainda que essa prática também tenha sido efetuada ao longo da expedição.



FIGURA 15A: Gravura em Reise nach Brasilien in den Jahren 1815 bis 1817 - Biblioteca Nacional

Finalmente, a obra de Wied-Neuwied também se destaca pelas escolhas representacionais por meio das quais paisagens e cenas de viagem foram moduladas. É expressivo que esse viajante tenha registrado “Ansichten” em sua obra. Em uma tradução apressada para a língua portuguesa, a palavra “Ansicht” poderia ser reconhecida como simples equivalente de “vista” ou de “visualização”, como se as imagens que apresenta tivessem compromisso com um estatuto de objetividade que prescindisse da autoria do viajante enquanto criador de uma composição e, desse modo, uma paisagem pudesse se impor por si própria. Contudo, o termo remete também à obra de Alexandre von Humboldt (1769-1859), naturalista preocupado com a comunicação do conhecimento em sua dimensão intuitiva e estética, e com quem Wied-Neuwied estabelecera contato formativo, como bem ressaltaram Costa (2008) e Sallas (2013). Impossível não relacionar o uso do termo à publicação “Ansichten der Natur”, do próprio Humboldt. O príncipe de Wied-Neuwied alinhava-se, assim, a uma vertente de transformação do campo da história natural da época, promovida em grande medida pelo naturalista prussiano.

O caso de Wied-Neuwied nos permite refletir sobre o lugar dessas expedições científicas que atravessaram diferentes regiões do território luso-brasileiro ao longo do governo régio joanino. É claro que muitos desses viajantes optaram por registrar imagens de exotismo, muitas vezes ressoando a ideia de que teriam estado diante de um mundo outro, definido primordialmente por uma natureza tropical cuja agência se sobreporia à de suas gentes. Contudo, enquanto educadores e pesquisadores, cabe à intelectualidade brasileira contemporânea o desafio de reconhecer nesses vestígios algo além desse exotismo, apropriando-se do movimento pregresso desses homens de ciência não para reproduzir, em nosso presente, alguns de seus estereótipos textuais. Faz-se necessário compreender em que medida a construção do território brasileiro, bem como a concentração e circulação de pessoas em uma região portuária como a do Rio de Janeiro oitocentista, estiveram relacionados a dinâmicas hoje reconhecidas como globais. Com efeito, foi expressiva a inserção de áreas do território luso-brasileiro em circuitos e dinâmicas globais do Oitocentos. Devido a isso, teria sido inconcebível para tantos homens de ciência o risco de deixar de conhecer e interpretar esse mundo que hoje tantas vezes se ignora.



FIGURA 15B: Gravura em Reise nach Brasilien in den Jahren 1815 bis 1817 - Biblioteca Nacional

 

Para saber mais:

AUGUSTIN, Günther. Literatura de viagem na época de Dom João VI. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

 SALLAS, Ana Luisa Fayet. Narrativas e imagens dos viajantes alemães no Brasil do século XIX: a construção do imaginário sobre os povos indígenas, a história e a nação. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro. v.17, n° 2, abr.-jun. 2010, p.415-435. Disponível em: https://www.scielo.br/j/hcsm/a/VqfBKFgFsKfJHxrBYM9CcwP/?lang=pt

 

Fontes:

 WIED-NEUWIED, Maximilien Alexander Philipp. Abbildungen zur naturgeschichte Brasiliens =: Recueil de planches coloriés d'animaux du Brésil. Weimar [Alemanha]: Bureau d'Industrie, 1822-1831. 2v., 90f. de estampas, il., 42 cm.  Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon337698/icon337698.html

WIED-NEUWIED, Maximilien Alexander Philipp. Reise nach Brasilien in den Jahren 1815- bis 1817. Frankfurt [Alemanha]: H.L. Brönner, 1820-21. 2 v.; 19 est. ; Atlas: 22 est., 3 mapas, 32 cm ; 60 cm. Disponível em http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/or46220/or46220.htm

 

 Referências bibliográficas

COSTA, Christina Rostworowski da. O príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied e sua viagem ao Brasil (1815-1817). Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-15042009-150645/pt-br.php

SALLAS, Ana Luisa Fayet. Ciência do homem e sentimento da natureza: viajantes alemães no Brasil do século XIX. Curitiba: Editora UFPR, 2013.

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