BNDigital

Histórias da Nova Holanda

< Voltar para Dossiês

A Consciência do Estado

por Lucas de Lima Silva
Pregadores calvinistas no Brasil Holandês (1630-1654)

Quando acompanhamos de perto, os caminhos traçados pelos indivíduos que circularam na Nova Holanda frequentemente podem arrancar suspiros do leitor mais absorto graças às formas inesperadas de desenvolvimento que elas nos apresentam. As trajetórias dos “predicantes”, os pregadores calvinistas do Brasil Holandês, com certeza figuram como capítulo especial nessas histórias de desenvolvimentos paradoxalmente inesperados, seja por estarem ambientadas num período extremamente dinâmico da história da humanidade, que é o período da expansão europeia ao redor do globo, ou por estarem envoltas nas ações e discussões fomentadas pelas Reformas Católica e Protestante iniciadas ainda no século XVI. Contudo, antes de mergulharmos nessas histórias interligadas, cabe perguntar: quem eram estes senhores, estes dominee, conforme aparecem respeitosamente na documentação dos arquivos, e quais as suas motivações para irem ao Brasil?

Como toda boa história ambientada na Idade Moderna cujo cenário são dois continentes, as filiações dos pastores Reformados do Brasil Holandês são extremamente diversas e testemunham um mundo já bastante conectado. Um dos pregadores mais atuantes na Nova Holanda foi o espanhol Vicente Joaquim Soler. Esse ex-frade agostiniano, natural da cidade de Valência, conforme ele mesmo assina em um livro de confissões que se encontra no Arquivo da Cidade de Amsterdã, converteu-se ao calvinismo na França, país no qual estabeleceu e manteve laços profundos até o fim de sua vida. No entanto, devido as pressões que a comunidade Reformada sofria ali, Soler se viu forçado a rumar para o Brasil no serviço de pastor da igreja francesa do Recife entre os anos de 1636 a 1644. Contudo, ele foi mais do que um ex-católico espanhol, envolto no mundo francófono, que pregou numa antiga colônia portuguesa conquistada por neerlandeses. Soler também foi entusiasta da missionação calvinista entre católicos e gentios na Conquista, especialmente os indígenas, se referindo sempre que possível, nas cartas e nos conselhos dos quais participou, à importância da pregação. Soler ainda reservou algum tempo para pregar aos ameríndios da aldeia Nassau, localizada nos arredores do Recife, tendo provavelmente alguma familiaridade com outro idioma: o tupi falado pelos indígenas dessa aldeia.


Assinatura de Vicente Soler, 1636 (inv.nr. 32, scan 188).

Embora figura ímpar, Soler não foi o primeiro calvinista, pastor ou não, forçado a se deslocar em direção aos Países Baixos graças a conflitos de motivações religiosas que grassavam na Europa. Com efeito, uma parte considerável dos protestantes que tomaram partido nas causas da República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos e da Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais eram naturais de outras regiões da Europa e fugiam de perseguições, tais como os huguenotes franceses e os protestantes, especialmente os calvinistas, oriundos da parte dos Países Baixos que estava sob o controle Habsburgo, localizada ao sul da República rebelde.

Outro espanhol que se tornou predicante a serviço da Companhia da Índias no Brasil foi Dionísio Biscareto. Este pastor foi missionário junto aos indígenas da conquista. O sabemos pois Biscareto é mencionado como “predikant onder de Brasilianen” no livro de batismos (Doepboek) da Igreja Reformada do Recife, documento que também se encontra no Arquivo da Cidade de Amsterdã. A aparição de Biscareto em um livro de batismos não acontece por registro dele próprio, mas sim de sua filha Beatriz, sendo o predicante Soler uma das testemunhas do batismo da menina, realizado em 24 de dezembro de 1637. Inclusive, esta possibilidade de um religioso constituir uma família é uma das grandes diferenças dos pastores reformados diante daqueles que podem ser percebidos como um dos maiores rivais da Conquista neerlandesa e um dos pilares da Contrarreforma, ou Reforma Católica: os jesuítas. O antagonismo era tanto que, apesar de a liberdade de consciência ser permitida aos católicos, isto é, a liberdade de, privativamente, ter outros credos que não o Reformado, a Companhia de Jesus foi banida dos territórios da Companhia Holandesa, pois a sua atuação político-religiosa foi vista como extremamente danosa ao Brasil Holandês.


Igreja no Brasil A5, Frans Jansz Post, 1675-1680 (Rijksmuseum)

É importante salientar que a missionação era vista como elemento muito importante pelos clérigos calvinistas e pelos funcionários da Companhia. Evangelizar era não apenas algo do mundo da religião, mas também um ato político, e isso se devia grandemente à relação de mutualismo que existia entre a Igreja Reformada e o Estado holandês durante esse período. Na prática, a participação da Igreja Reformada como a “Igreja do Estado”, já desde a segunda metade do século XVI, foi muito importante para a mobilização das Províncias Rebeldes contra a Monarquia dos Habsburgo e a sua transformação na República das Províncias Unidas dos Países Baixos. De maneira semelhante, a própria Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais deveu aos calvinistas a motivação e o capital político que possibilitou a sua criação, em 1621. Assim sendo, a própria conquista holandesa do Brasil é em parte fruto do pensamento, das motivações e da ação dos protestantes batavos, em especial dos vencedores de disputas teológicas e políticas nas Províncias Unidas: os calvinistas. Essas associações entre política e religião eram comuns na época Moderna, e se compararmos o caso holandês a espanhóis e portugueses, especialmente para o caso jesuíta, a associação entre a Igreja Reformada e o Estado, especialmente na interpretação inspirada em João Calvino, ainda parece mais branda, pois permitia a liberdade de consciência e reservava algumas liberdades para os Conselhos regionais das Igrejas.

Somente considerando essa relação mútua é que podemos entender os aspectos da atuação calvinista durante o Brasil Holandês; quando membros da Igreja teciam comentários e tentavam influenciar a política da Conquista neerlandesa, e onde uma Companhia de comércio majestática pagava os salários dos religiosos, custeava a construção e manutenção de seus templos e até suas famílias – ainda que muitas vezes parcamente –, como a numerosa parentela de Biscareto, a mulher de um pastor preso na Bahia em 1648 e duas viúvas, a primeira do mencionado predicante espanhol e a segunda, de um reverendo inglês de nome Thomas Kemp. Assim sendo, a dita missionação entre católicos e gentios parece ter encontrado mais desenvolvimento entre os indígenas das aldeias costeiras graças, em parte, ao interesse ativo da Companhia em atrair para si esses aliados valiosos.


Igreja Matriz de São Cosme e São Damião, Frans Jansz Post. A mais antiga igreja católica em funcionamento no Brasil, construída em 1535. (Fundação Cultural Ema Gordon Klabin / Projeto Google Art)

O empenho da Companhia em transformar os indígenas em fervorosos calvinistas era grande, pois os holandeses acreditavam que, no momento em que os brasilianos,1 isto é, os indígenas das aldeias, passassem a compartilhar as mesmas crenças que os neerlandeses, eles ajudariam a consolidar o domínio batavo na colônia. Em efeito, a expectativa de que a atuação da Igreja seria essencial para a manutenção da ordem social também ocorria na República e era característica da mencionada visão integrada de religião e política. A esperança da Companhia com relação à catequese dos indígenas era tanta que até estava disposta a abrir mão de parte da força de trabalho e da valiosa ajuda militar de alguns de seus aliados para atingir seus objetivos de conversão religiosa, como mostra uma ata do Alto e Secreto Conselho datada de 10 de Outubro de 1639. Nela se menciona que a Companhia dispensaria dos trabalhos na lavoura e do serviço militar os indígenas da Aldeia Maurícia, na Capitania da Paraíba, pois esperavam uma boa resposta dos nativos às ações missionárias dos pastores.

Sucessivos e diversificados esforços de missionários para a conversão e o atendimento espiritual dos vários grupos da Conquista foram engendrados por predicantes calvinistas de diversas nacionalidades, como era comum nas atividades da Companhia. Para além dos dois espanhóis já mencionados, havia naturalmente neerlandeses atuando nas missões, como o Predicante Johannes Apricius, que apresentou em 1657 um Dicionário de Tupi ao Presbitério de Amsterdã, e o Reverendo Fridericus Kesseler, que serviu antes e depois de sua estadia no Brasil, na importante Comissão Missionária do Presbitério de Amsterdã. Missionavam também franceses, como Gilbertus de Vau, que serviu na Aldeia indígena de São Miguel, e ingleses, como Johannes Eduardus, que chegou ao Brasil, após ter sido enviado pelo Presbitério de Walcheren, no começo de 1639, e regressou aos Países Baixos em 1643, o que parece ter sido tempo suficiente para ter aprendido bem o idioma Tupi dos indígenas das aldeias, pois ao retornar traduziu para o holandês um conjunto de cartas neste idioma. A presença de um alemão, antigo pastor do Palatinado entre 1630 e 1631, de nome Judocus à Stetten também é documentada. A atuação dele no Brasil, entre 1632 e 1647, envolverá as funções de “consolador de doentes”, predicante entre os soldados e, por fim, o emprego de cartógrafo, onde atuou até ser preso pelos portugueses.

Apesar do empenho e dos sacrifícios realizados, a conversão ao calvinismo não foi tão intensa, principalmente entre os portugueses. No final, esta Igreja permanecia como uma Igreja de conquista, e boa parte dos portugueses a enxergavam dessa mesma maneira. A percepção do calvinismo como um credo invasor antagonizou muitos dos locais, alguns dos quais já se horrorizavam com as diferenças culturais existentes entre portugueses e neerlandeses. Outra prova de que a Igreja Reformada permaneceu ainda muito ligada aos grupos que vinham da Europa e que não se difundiu tanto entre os locais é o fato de as Igrejas Reformadas se instalarem primeiramente nas guarnições das tropas holandesas e só se fixarem no território mais firmemente quando funcionários da Companhia, que deviam ser cristãos reformados para gozarem do posto, ou soldados cujos contratos haviam terminado, passassem a se estabelecer na terra. Em efeito, alguns desses ex-soldados atuaram como predicantes no Brasil, como ocorreu com o inglês, já mencionado, Thomas Kemp, que serviu como “consolador” na comunidade inglesa e professor entre indígenas.

Ainda assim, a missionação calvinista obteve um relativo sucesso em algumas empreitadas. Para a conversão dos portugueses, ao menos seis obras de conteúdo reformado foram produzidas e levadas para o Brasil para servir de subsídio para os pastores. Ainda, batismos de portugueses e casamentos entre holandeses e portugueses foram realizados na Igreja Reformada, apesar da resistência obstinada de algumas famílias. Para o trabalho entre os africanos, temos novamente a rica referência do Doepboek hoje depositado no Arquivo da Cidade de Amsterdã, que registra cerca de 600 referências a indivíduos provenientes daquele continente, sendo a última referência do dia 25 de Janeiro de 1654, ou seja, no dia que antecedeu a rendição da Companhia no Brasil. Para os ameríndios, graças aos esforços de abastecimento das aldeias com predicantes de diversas origens interessados muitas vezes em aprender o idioma dos nativos, os trabalhos parecem ter tido influência mais duradoura. Mesmo após o baque causado pela rebelião portuguesa de 1645, os predicantes mantiveram sua missão evangelizadora entre os brasilianos até o final, tendo conseguido, até nos anos de mais penúria, formar alguns “mestre-escola” ameríndios para o ensino da doutrina, e provavelmente, a leitura das escrituras na língua vernácula, como dita a inspiração humanista e letrada da tradição protestante.

Após a expulsão da Companhia, em 1654, alguns destes indígenas fugiram para o interior do território com medo de represálias portuguesas. Imediatamente após a Rendição na Campina do Taborda, um famoso jesuíta chamado Antônio Vieira seguiu em missão a estes “índios de Pernambuco”. Ele encontrou, aturdido e chocado, diante de si, uma verdadeira “Genebra de todos os sertões”, sendo este paralelo traçado pelo próprio inaciano em referência à cidade onde João Calvino estabeleceu seu Ministério Reformado. Soler provavelmente ficaria orgulhoso de saber que mesmo após 10 anos de sua partida, índios educados na leitura e na escrita pelos holandeses e portando livros, preocupavam um influente seguidor de Inácio de Loyola neste improvável desdobramento do humanismo letrado e protestante nas Américas.


Fontes utilizadas no texto:

(Doepboek) Register van de Namen der Kinderen die alhier opt Reciff em omgelegen plaetsen gedoopt sijn gelijck meede de namen van de Ouders, ende ooc vande getuygen die over den doop gestaen hebben, 1633-1654. WASCH, C. J. In: Algemeen Nederlandsch Familieblad 5-6 (1888-1889)
Nederland Nationaal Archief, Oude West Indische Compagnie, 1.05.01.01, inv. nr. 68 Dagelijkse Notulen, 10/10/1639.
Archief van de Nederlandse Hervormde Kerk, Classis Amsterdam:
SAA, ACA - Classis - 25, signature 76
SAA, ACA 4, 179, 17/10/1639
SAA, ACA 6, 13, 01/05, 1656
SAA, ACA 33 e 39
SAA, ACA, 6: 59, 02/07/1657
SAA, ACA 6, 107, 05/08/1658
SAA, ACA 52 - Doepboek of the Reformed Church in Recife.


Saiba mais:

Biografisch Lexicon voor de Geschiedenis van het Nederlandse Protestantisme. Deel 5. Kampen: Uitgeverij Kok, 2001.
BOXER, Charles. The Dutch in Brazil, 1624-1654. Archon Books, 1957.
FLUCK, Marlon. Evangelização no Brasil Colônia (Séculos XVI e XVII): Estudo Comparativo de Três Modelos Missionários. Estudos Teológicos, 31 (2), p.151-170, 1991.
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos. Influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do norte do Brasil. 4ª Edição. Recife: Topbooks, 2001 [1947].
RIBAS, Maria. A evangelização calvinista dos indígenas no Brasil holandês: o poder cristalizador da leitura. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais – RBHCS, Vol. 10, Nº 19, Janeiro - Junho de 2018
SCHALKWIJK, F. L. The Reformed Church in Dutch Brazil (1630-1654). Zoetermeer: Uitgeverij Boekencentrum, 1998.
SCHAMA, Simon. The Embarrassment of Riches: An Interpretation of Dutch Culture in the Golden Age. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 1988.
VAINFAS, Ronaldo. O plano para o Bom Governo dos Índios: Um jesuíta à serviço da Evangelização Calvinista no Brasil Holandês. Clio - Série Revista de Pesquisa Histórica – Nº 27-2, 2009. pp. 145-162.

Parceiros