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Histórias da Nova Holanda

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Aliados essenciais

por Bruno Miranda, Lucas de Lima Silva
Relações indígenas-neerlandesas no Brasil (1624-1654)

A Amsterdã do século XVII constituiu um exemplo de cidade cosmopolita do mundo moderno. Para lá, convergiram pessoas e produtos de todos os cantos do mundo e na agitada vida citadina se falavam as mais diversas línguas. Do neerlandês, ao inglês, frísio e baixo alemão, pelas línguas germânicas; até o francês, português e castelhano, pelas línguas de ascendência latina. Contudo, uma imagem que comumente não imaginamos neste mundo pré-industrial e já tão globalizado é a presença de falantes de Tupi. Ainda assim, este quadro não é fantasioso e se repetiu pelo menos com alguma frequência entre o período da primeira investida neerlandesa sobre o Brasil, em 1624, e a vitória final dos portugueses, em 1654, indo até um pouco mais adiante.

Parte dessa grande história, que envolve contatos transatlânticos movidos pelo comércio e a disputa imperial, pode ser vislumbrada na estadia de um certo Luiz de Sousa (Louijs de Souso), na cidade de Amsterdã. O nome português esconde a verdadeira origem de Luiz, internado em um hospital da cidade entre os dias 15 de novembro e 20 de dezembro de 1625. Provavelmente as suas rezas noturnas não eram realizadas em nenhum idioma ibérico, mas sim em Tupi, sua língua materna, como o “braziliaan” que era, conforme está registrado no Arquivo da Cidade de Amsterdã. Brasilianen era o termo usado na época para se referir aos indígenas nativos do Brasil, especialmente aqueles que falavam a língua Geral, ou Tupi. A especificidade ocorre porque os brasilianen eram diferentes dos belicosos e incivilizados Tapuia, ou pelo menos assim imprimiam as narrativas holandesas da época. Claro que a realidade frequentemente é mais complicada do que estas divisões essencialistas podem fazer crer e a impressão do militar Diederik Waerdenburch sobre o assunto não poderia evidenciar melhor isso. Em 23 de julho de 1630, no primeiro ano da segunda tentativa holandesa de conquista do Brasil, dessa vez principiada na Capitania de Pernambuco, Waerdenburch já notava que os brasilianos “não são cordeirinhos como os pintam certas histórias das Índias Ocidentais que li; são antes soldados valentes, prontos e audaciosos, como têm mostrado”, mas aí estaríamos adiantando nossa história.


Tupi armado, Albert Eckhout, 1643.

O fato é que Luiz de Souza não foi o único índio braziliaan que perambulou pelos Países Baixos na primeira metade do século XVII e o registro do seu internamento no hospital da cidade pode nos dizer o porquê. O ano da internação de Souza é importante, pois provavelmente em 1625, alguns navios oriundos da armada comandada por Boudewijn Hendricksz., que foi enviada para ajudar as forças da Companhia das Índias Ocidentais estacionadas em Salvador, regressavam à pátria. O objetivo principal da expedição havia fracassado. Quando Hendricksz. chegou na Baía de Todos os Santos, a cidade já havia caído nas mãos de uma poderosa armada ibérica, que ainda estava estacionada nas águas da Baía. Contudo, a investida holandesa sobre o território da colônia portuguesa não se deixou desanimar, e os empregados da Companhia não voltaram de mãos vazias. Após a derrota em Salvador, a expedição rumou para o norte e negociou com aliados essenciais para a pátria e para os próximos projetos da Companhia no Brasil: ameríndios. Luiz de Souza provavelmente foi um dos indígenas que desembarcou na cidade com algum dos navios que foram enviados de volta aos Países Baixos, após os comandantes da expedição decidirem dividir os navios e arribar de vez do Brasil. Estes indígenas estavam sob os auspícios da Companhia, como comprova a conta do internamento de Souza, que foi paga pela empresa majestática.

Tamanha coragem em se lançar ao outro lado do Oceano Atlântico, junto a aliados recentes que haviam chegado tão inesperadamente quanto se lançaram novamente ao mar, numa viagem que à época apresentava diversos perigos, é esforço magistral e desperta a curiosidade do leitor para as motivações não só da Companhia, mas dos próprios indígenas. Para entendermos os motivos de Luiz de Souza e seus companheiros aceitarem viajar para tão longe de casa devemos fazer uma rápida retrospectiva.

Primeiro, devemos ter em mente que os brasilianen com quem Boudewijn entrou em contato foram, em sua maioria, os indígenas da Baía da Traição, na região do atual estado brasileiro da Paraíba. Não fazia muito tempo que estes ameríndios, antigos aliados dos franceses desde a primeira metade do século XVI, haviam sido submetidos pelos portugueses, com auxílio de seus próprios aliados indígenas de Pernambuco. Por isso, grande era o ressentimento mútuo entre brasilianen dessa região, comumente chamados de potiguares, e portugueses na Paraíba. Quando a armada de Boudewijn Hendricksz apareceu neste cenário instável, inicialmente parando na costa para abastecer-se e enterrar os seus mortos, foi elemento suficiente para fomentar a rebelião de diversas aldeias, pois sanava a necessidade que os indígenas tinham de um aliado poderoso, como os franceses o foram anteriormente. Assim sendo, podemos compreender que quando Luiz de Souza pôs os pés nas docas de Amsterdã, tinha atrás de si mais de um século de lutas de indígenas contra indígenas e de europeus contra europeus nas Américas.


Vista da Paraíba, João Pessoa, Brasil (Arquivo Nacional)

Segundo, se compararmos os neerlandeses aos outros europeus com quem estes disputavam espaço no Novo Mundo, os batavos seriam os últimos na corrida ultramarina, seguindo o rastro dos demais na tendência a aliar-se com as populações nativas da América, inaugurada por Portugal e Espanha. No desenrolar destas alianças e interações de europeus e ameríndios, passou a ser comum levar aliados ameríndios à Europa para fins diversos. Durante o século XVI, vários grupos de indígenas de norte a sul do continente se fizeram presentes na Europa, e embora uma parte destes tenha sido movida para lá compulsoriamente por interesse das potências marítimas, outros visitaram os estados europeus na categoria de aliados e representantes de seus próprios interesses. Ou seja, os indígenas Tupi que embarcaram na Paraíba compunham apenas mais uma das várias etnias de povos autóctones das Américas que rumaram para a Europa em busca de apoio e do fortalecimento das relações com seus aliados europeus.

Contudo, se a experiência de Luiz de Souza não possuía nada de nova na sua ideia central, certamente o era no seu formato. Apesar de experiências e contatos anteriores, principalmente com indígenas da região amazônica, a criação da Companhia das Índias Ocidentais seria fator inovador na determinação das relações entre nativos das Américas e neerlandeses. A direção da Companhia estava ciente da importância que as alianças com a população local conferiam e desenvolveu uma série de mecanismos para atrair para si estes possíveis aliados. Além da conta hospitalar de Souza, a Companhia também custeou a estadia e a educação civil e religiosa dos outros indígenas nos Países Baixos, na esperança de que, quando retornassem ao Brasil, estes servissem como interlocutores e partidários dos neerlandeses junto às suas comunidades. Inclusive, a proteção e patrocínio oferecidos pela Companhia parecem ter sido suficientes para levantar a suspeita, por parte dos historiadores, de que este pequeno grupo de brasilianos, que em alguns registros aparece como sendo composto por um mínimo de 13 indivíduos, chegou a circular no meio universitário da República.


Desenho topográfico de Sint-Pietersgasthuis, onde Luiz de Souza foi registrado em 1625

Infelizmente, as informações de que dispomos sobre a vida destes brasilianos nas Províncias Rebeldes entre os anos de 1625 e 1630 ainda é escassa. Não sabemos o motivo pelo qual Luiz de Souza foi internado, se por alguma doença relacionada à travessia marítima ou alguma outra moléstia que pudesse indicar melhor o trajeto que ele percorreu. O mesmo se aplica para os demais personagens do grupo de brasilianos, e é só a partir da segunda invasão da Companhia ao Brasil, em 1630, que o investimento que a Companhia realizou na formação destes aliados foi posto à prova, inaugurando uma nova fase nas relações com estes indígenas e fornecendo novos indícios sobre as vidas destes.

Em 1631, quando os soldados da Companhia lutavam ferozmente para estabelecer a ainda tímida dominância neerlandesa sobre os arredores de Olinda e Recife, na Capitania de Pernambuco, dois potiguares educados nos Países Baixos chamados Antônio Paraupaba e Pedro Poti chegaram no Brasil com a missão principal de servirem como intérpretes entre os funcionários da Companhia e os indígenas da nova colônia. Entretanto, Paraupaba e Poti conseguiram, ao longo dos anos, subir na hierarquia e adquirir influência dentro da Conquista, graças ao sucesso que tiveram enquanto fortes líderes indígenas, arregimentando aliados brasilianos e tapuias para a causa holandesa.

O crescimento da importância de Paraupaba e Poti na política da colônia neerlandesa no Brasil não é algo insignificante, e reforça o ponto de que os ameríndios negociavam e procuravam satisfazer seus próprios interesses, se distanciando de uma atitude apática ou submissa, como o coronel Waerdenburch dolorosamente percebera sobre os brasilianos aliados aos portugueses. Poti e Paraupaba não raramente enfrentaram situações de atrito com empregados civis e militares da Companhia, ou mesmo com os moradores portugueses da colônia neerlandesa, mas graças à sua influência junto aos grupos indígenas preveniram a perda de cargos ou até a execução de processos legais, como alguns dos seus inimigos e difamadores tentaram fazer acontecer. Caso notório é quando, em 23 de agosto de 1639, durante um período de escassez de mão de obra para trabalho nos engenhos de cana-de-açúcar, um tal Duarte Gomes, representando a si e a outros lavradores, reclamou junto ao Alto e Secreto Conselho da Companhia no Brasil que Pedro Poti “não tem capacidade para governar” os seus indígenas, procurando influenciar na remoção da patente de Capitão do líder indígena. Apesar das reclamações, Poti continuaria ascendendo politicamente dentro da Conquista, assim como Paraupaba, que também receberia um cargo de oficial da milícia.

A influência de ambos os líderes brasilianos se deve em grande parte ao sistema dos aldeamentos, ponto de convergência de várias histórias de europeus e ameríndios no Brasil Holandês. Este sistema correspondia à organização de grupos indígenas em variados assentamentos ao longo da zona rural, próximos às vilas coloniais. O sistema foi aplicado no Brasil inicialmente pelos portugueses, ainda no século XVI e os aldeamentos mais famosos e bem estruturados da colônia portuguesa geralmente eram os administrados pela ordem dos Jesuítas, ordem católica combativa e intrinsecamente relacionada ao espírito da contrarreforma. Uma parte da resistência lusa às invasões batavas ao Brasil em 1624, na Bahia, e em 1630, em Pernambuco, se valeu das pequenas aldeias de índios dispersas pelo interior da colônia. Mas quando os neerlandeses passaram a dominar a zona rural da Conquista, tentaram reverter o domínio e o trabalho catequético dos Jesuítas junto aos indígenas, tanto por questões religiosas, pois parte dos holandeses era defensora fervorosa do calvinismo, quanto por questões políticas, já que eles esperavam que os ameríndios se tornassem aliados mais dedicados caso os dois povos compartilhassem as mesmas crenças.

No entanto, apesar dos esforços de Pedro Poti, Antônio Paraupaba e demais lideranças indígenas aliadas aos batavos, além dos da própria Companhia – que em 1645 realizou um ato político sem precedentes, ao convocar e reconhecer a autoridade administrativa dos aldeamentos às suas lideranças indígenas, diminuindo o nível de intervenção europeia –, muitos brasilianos resistiam aos chamados da Companhia e permaneciam lealmente alinhados aos portugueses. Estes mesmos brasilianos tomaram partido em atividades militares que os ajudaram a retomar quase que completamente a zona rural e produtora de cana de açúcar no mesmo ano de 1645, quando irrompeu uma revolta de colonos. Enfraquecidos pelas guerras anteriores e doenças, os Tupi aliados da Companhia foram evacuados de seus aldeamentos no interior para posições mais bem fortificadas na costa. Pedro Poti pereceu no cárcere, após ser capturado na segunda batalha dos Guararapes, em 1649, quando os neerlandeses tentaram retomar as áreas ao sul do Recife que haviam sido perdidas em 1645.

Antônio Paraupaba sobreviveu à penúria e à fome que o Recife sitiado pelos portugueses viveu, e em 1654, após a rendição de todo o território remanescente da Companhia, Paraupaba seguiu para os Países Baixos, na tentativa de conseguir junto aos Estados Gerais o apoio necessário para resgatar a sua gente. Paraupaba faleceu pouco tempo depois na Europa, em data desconhecida, mas certamente antes de 1657, ano em que suas argumentações a favor da obrigação moral da Companhia e da República para com seus antigos aliados americanos foram publicadas.

Contudo, enquanto a jornada fascinante de Antônio Paraupaba encontrava um fim no Velho Continente, outros brasilianos parecem ter encontrado a vida, novamente nos caminhos agitados da cidade de Amsterdã. Diogo Duarte (ou Diego Le Fey) foi um dos braziliaan das aldeias encontrados entre os documentos manuscritos do Arquivo da Cidade de Amsterdã. Em 12 de setembro de 1655, na Igreja Velha (Oude Kerk) de Amsterdã, ele se comprometeu em matrimônio com uma Isabella Gamma, proveniente do Brasil, provando que até mesmo depois da rendição holandesa e do distanciamento da República de seus antigos e valorosos aliados americanos, ainda se falaria tupi por algum tempo na Veneza do Norte. Ele era uma das mais de 80 pessoas residentes na cidade que tinha procedência da perdida colônia holandesa.


Fontes utilizadas no texto:

Stadsarchief Amsterdam, Archief van de Gasthuizen, inv. 342, 1625 (Stukken betreffende verpleging van militairen).
Stadsarchief Amsterdam, DTB 474, p. 531, 21-08-1655 (Huwelijksintekeningen van de Kerk).
Stadsarchief Amsterdam, DTB 971, p. 318, 12-09-1655 (Huwelijksintekeningen van de Oude Kerk)
Nederland Nationaal Archief, Oude West Indische Compagnie, 1.05.01.01, inv. nr. 68, Dagelijkse Notulen, 23/08/1639.


Saiba mais:

HULSMAN, Lodewijk. ‘Índios do Brasil na República dos Países Baixos: As representações de Antônio Paraupaba para os Estados Gerais em 1654 e 1656’. In Revista de História. São Paulo: Universidade de São Paulo, número 154, 2006.
MELLO, José Antonio Gonsalves de Mello. Tempo dos Flamengos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001.
MEUWESE, Marcus P. ‘For the peace and well-being of the country’: intercultural mediators and Dutch Indian relations in New Netherland and Dutch Brazil, 1600-1664. Indiana: University of Notre Dame, 2003. (Ph.D. Dissertation).
POMPA, Cristina. Religião como tradução. Missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial. São Paulo: EDUSC, 2002.
SCHALKWIJK, F.L. The Reformed Church in Dutch Brazil (1630-1654). Zoetermeer: Uitgeverij Boekencentrum, 1998.

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