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O Pasquim

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1969-1979 - por Sérgio Augusto

O marginal que deu certo

Há quem diga — e nós não temos por que duvidar — que os três maiores fenômenos da imprensa brasileira foram, por ordem de entrada em cena, as revistas semanais O Cruzeiro (1928-1985) e Veja (1968).

Não eram três? Eram. O Pasquim foi o terceiro fenômeno.

O Cruzeiro, que chegou a vender, em meados da década de 1950, 720 mil exemplares, tinha atrás de si um império jornalístico, os Diários Associados de Assis Chateaubriand. A Veja, cuja tiragem ultrapassou 1 milhão de exemplares no final do século passado, foi lançada por uma outrora poderosa fábrica de revistas, a Editora Abril. O Pasquim nasceu teso, órfão de pai e mãe, ou seja, sem uma organização sólida na retaguarda.

Ideia inicial: um jornal de humor. Com os bambas disponíveis na praça. Mas o Pif-Paf só durou oito números, ponderou um advogado do diabo — do diabo e do bom senso, pois a revista de humor lançada por Millôr Fernandes em 1964 resistira só oito edições às pressões da censura imposta pela recém-implantada ditadura militar. Depois veio o tabloide A Carapuça, que não sobreviveu à morte de seu editor, Sérgio Porto, o popular Stanislaw Ponte Preta, em 30 de setembro de 1968.

Empenhado em manter A Carapuça tal como era, Murilo Pereira Reis, que à frente da Distribuidora Imprensa bancara o tabloide, convidou para editá-lo o colunista Tarso de Castro, do jornal Última Hora, que, por sua vez, convocou Jaguar e Sérgio Cabral, cuja preferência por uma publicação inteiramente nova, com outro nome, acabou prevalecendo.

O nome custou a sair. “Que tal Pasquim?”, sugeriu Jaguar, que àquela altura já atraíra Claudius e o publicitário Carlos Prósperi para cuidarem do projeto gráfico. “Vão nos xingar mesmo de pasquim”, justificou Jaguar a preventiva carapuça.

Em reuniões apropriadamente agendadas para as mesas do bar Jangadeiros, em Ipanema, o jornaleco foi tomando corpo. Numa sala do prédio da Distribuidora Imprensa (dona de 50% do negócio), na Rua do Resende, 100, no Centro da cidade, com três mesas, três máquinas de escrever, um telefone, uma prancheta para Prósperi e Claudius, mais um bom estoque de uísque, improvisou-se uma redação básica para abrigar os cinco mandachuvas, um boy (Haroldo Zager, mais tarde diretor gráfico e factótum do jornal) e uma secretária dublê de governanta, Nelma Quadros (1935-1991), que sempre foi muito mais do que suas funções exigiam. A bem dizer, Nelma — ou dona Nelma, como aprendemos, com o ator e habitué da redação José Lewgoy, a chamá-la — foi a primeira e eterna musa do Pasquim.

Contrariando as recomendações dos coleguinhas da imprensa carioca, o quinteto fundador optou pelo formato tabloide. E o primeiro número começou a ser produzido. Entre os colaboradores, Ziraldo (que cedeu a republicação de um de seus zerois), Fortuna, Luiz Carlos Maciel (colega de Tarso no Última Hora), Martha Alencar, Chico Buarque (explicando por que era tricolor), Odete Lara (com suas impressões sobre o Festival de Cannes), o comentarista esportivo Sérgio Noronha — além do indefectível Millôr, que fez doce, mas afinal aceitou saudar o novel hebdomadário com um texto já no título provocativo: “Independência, é? Vocês me matam de rir”. E que culminava com esta provocativa advertência: “Se esta revista for mesmo independente não dura três meses. Se durar três meses não é independente. Longa vida a essa revista!”

Onde já se viu um jornal sem patrão, em que todos os colaboradores podiam escrever o que bem entendessem e como bem entendessem? Pois a velha utopia de dez em cada dez jornalistas revelou-se, mais do que factível, um sucesso —fulminante e retumbante.

Impresso na gráfica do jornal Correio da Manhã, o primeiro número d’O Pasquim não saiu com o requinte gráfico originalmente projetado por Prósperi; afinal, não passava de um pasquim. Tinha 20 páginas e, por insuficiência de material próprio, duas delas foram preenchidas com cartuns de Don Martin (da revista MAD) e textos de Groucho Marx. Os anúncios cobriam quatro páginas: um da Shell (Prósperi fazia a revista da empresa), outro dos cartões Thomas de La Rue (assinados pelos desenhistas da casa) e mais um das boates de Ricardo Amaral.

Anunciando as principais atrações, no alto da página, a mascote do jornal, o ratinho Sig (de Sigmund Freud), egresso dos Chopnics, quadrinhos que Jaguar e Ivan Lessa (trabalhando na BBC de Londres desde o ano anterior) bolaram para o lançamento da cerveja Skol no Brasil. Sob o logotipo, um dístico que seria seguido à risca: “Aos amigos tudo; aos inimigos, justiça”.

Tiragem: 14 mil exemplares. Jaguar, cauteloso, havia sugerido 5 mil. Como em dois dias os primeiros 14 mil se esgotaram nas bancas, rodaram-se mais 14 mil. Quinze semanas depois, já vendia em torno de 80 mil. O número 20 bateu nos 100 mil. E o 22, com a histórica entrevista da atriz Leila Diniz, pulou para 117 mil, alcançando o teto de 200 mil cinco semanas depois, até estabilizar-se nos 100 mil. Detalhe fundamental: só de venda em banca. Mais do que Veja e Manchete somadas.

O primeiro entrevistado, o colunista social Ibrahim Sued, não era amigo da turma, longe disso. É possível que Tarso, autor da ideia, tenha pensado em homenagear de forma oblíqua o amigo Stanislaw Ponte Preta, que raramente passava um dia sem gozar as asneiras de Ibrahim em sua página no Última Hora. Gravada no escritório de Ibrahim, em Copacabana, nascia ali um estilo de entrevistar que seria uma das marcas do jornal: o entrevistado rodeado pela redação ou parte dela e todos enchendo a cara de uísque.

Transcrita do gravador por Jaguar, não havia vivalma na redação com o necessário traquejo jornalístico para editá-la, na noite do fechamento. Tarso e Cabral, escalados para a tarefa, haviam sumido; Jaguar nem de ouvido conhecia a palavra “copidesque”; e a gráfica, estourado o prazo de entrega do material para impressão, rodou o jornal com a entrevista como estava, em estado bruto, sem qualquer correção. “Foi assim, por mero acaso, que o Pasquim tirou o paletó e a gravata do jornalismo brasileiro”, comentaria Jaguar ao historiar a tão decantada contribuição do debutante semanário à descontração da linguagem jornalística. E nunca mais se ouviu falar em copidesque na redação. Interferências nos textos, só as impostas, posteriormente, pela censura: palavras consideradas impróprias ou de baixo calão tinham de ser substituídas por asteriscos.

À entrevista de Ibrahim seguiu-se uma constelação de encontros que dão a justa medida de quão culturalmente rico era o Brasil daquele tempo: Di Cavalcanti, Marques Rebelo, Oscar Niemeyer, Paulo Mendes Campos, Tom Jobim, Rubem Braga, Fernanda Montenegro, Jô Soares (um dos primeiros colaboradores do jornal), Madame Satã, Antonio Callado, Nilton Santos, Paulo Autran, Oscarito, Grande Otelo, Natal da Portela — toda a música popular brasileira, todas as nossas artes, toda a nossa cultura, enfim.

Era uma honra ser entrevistado pela patota do Pasquim ou por apenas um de seus integrantes. Glauber Rocha entrevistou sozinho Gabriel García Márquez; Ivan Lessa pegou seu ídolo Billy Eckstine numa barbearia londrina; Vinicius de Moraes fez tête-à-têtes com Chico Buarque, Dorival Caymmi e Ciro Monteiro. Há quem diga que um dos maiores obstáculos à criação de um novo Pasquim seria a ausência de entrevistáveis à altura dos citados.

Também há quem diga que se tivesse surgido na Mooca, nem com a Editora Abril de arrimo, O Pasquim (que só abriu mão do artigo definido 288 edições depois, em janeiro de 1975) teria dado certo. É possível, se não bastante provável. Além de carioca, o Pasquim era uma cria ipanemense. “É Ipanema engarrafada”, proclamou um diplomata brasileiro, parafraseando Vinicius, embora o correto fosse “Ipanema impressa”. Isso numa época em que o bairro, já célebre internacionalmente por obra de Tom & Vinicius, orgulhava-se de ser o mais moderno, cosmopolita, liberado e charmoso do Brasil, o nosso Greenwich Village, a nossa Rive Gauche, um Xangri-lá à beira-mar plantado para onde os olhares do resto do país, morrendo de inveja, convergiam.

(Curiosamente, só na metade de sua trajetória o Pasquim instalou-se em seu “bairro natal”, num fotonovelesco solar faux gótico, bem no cocuruto da ladeira Saint Roman, que liga Ipanema a Copacabana. Da primeira redação, no Centro da cidade, saltou para o Flamengo, na Rua Clarisse Índio do Brasil, 32, depois para o Jardim Botânico, em dois endereços, na Rua Tasso Fragoso, 26, e defronte ao Parque Laje. Até por Copacabana andou. Por pouco não acabou na Zona Norte.)

Foi, sem dúvida, um risco; quase uma bravata lançar um jornal como aquele justo naquele momento. Entre outubro de 1968, quando o projeto não era mais que um brilho nos olhos de Jaguar e Tarso de Castro, e 26 de junho do ano seguinte, quando o primeiro número chegou às bancas, fazia 195 dias que os generais haviam “legalizado” a ditadura com o AI-5 e a censura apertara as cravelhas nas redações menos dóceis ao novo regime.

O Pasquim não pagou barato pela audácia de nascer já do contra (sobretudo contra as babaquices da classe média) e — para citar alguns de seus slogans — “livre como um táxi”, “equilibrado como um pingente”, incômodo como “um folião num velório”. E ainda que nos primeiros tempos fosse mais folgazão, gozador, festivo (a expressão “esquerda festiva” foi inventada por um de seus colaboradores, Carlos Leonam) e atento a questões de comportamento, aos poucos deixou-se contaminar pelo inevitável: a indignação política. Sem, contudo, abrir mão do velho preceito de Horácio (reciclado por Jean de Santeuil): o riso é a melhor arma contra todas as imposturas.

Em suas primeiras edições tratou muito de futebol, amenidades, música (naquela base que o Sérgio Cabral apreciava: samba & chorinho), cinema, teatro, do direito de as mulheres tomarem cafezinho no balcão sem ser molestadas (uma das bandeiras de Marta Alencar, a primeira feminista da redação ao lado da poeta Olga Savary, que cuidava das Dicas, no início uma seção exclusivamente de serviços).

O mercurial Tarso de Castro, dínamo da equipe, debochava de tudo, gozava amigos e desafetos, fazia o humor mais petulante, agressivo e juvenil do grupo. Luiz Carlos Maciel encontrou de cara o seu nicho: a contracultura. Salvo engano, foi ele, o hippie da turma, em sua coluna Underground (lançada no número 49), que inventou e popularizou expressões ligadas ao léxico das drogas e condenadas à imortalidade, como “barato”, “curtir”, “sarro” (no sentido de gozação), que, ao lado de outras gírias, ressuscitadas (“balaco”, “balacobaco”, por Francis), liberadas (“bicha”, pelo Henfil) ou eufemísticas (“duca”, “paca”, “mifu”, “sifu”, “nusfu”), fizeram o jornal cair na boca do povo e nos verbetes do Aurélio. “É ferro na boneca!”, a palavra de ordem favorita de Tarso, entrou para os anais da MPB no primeiro álbum dos Novos Baianos.

Ao núcleo fundador agregaram-se, paulatinamente, três cabeças privilegiadas: Henfil (que entrou no número 2), Paulo Francis (que acabara de ter um frila censurado na Manchete, sob acusação de antissemitismo, absurda, claro) e Ivan Lessa (que vivia em Londres, no serviço brasileiro da BBC, e só estreou no número 27). Entre os astros convidados, a fina flor da intelectualidade e da boemia carioca: além de Vinicius, Rubem Braga, Otto Maria Carpeaux, Ferreira Gullar, Glauber Rocha, Chico Buarque (autoexilado em Roma), Caetano Veloso (idem em Londres), Chico Anísio, Jô Soares, Marcos de Vasconcellos, Flávio Rangel, Fernando Sabino, Antonio Callado, Daniel Más (o enfant terrible do colunismo social), Telmo Martino, Carlos Heitor Cony, Rubem Fonseca, Ruy Castro, Fausto Wolff, Reynaldo Jardim, Newton Carlos, Luiz Garcia (fugaz correspondente em Nova York), Angelo de Aquino, Alfredo Grieco. Sem contar os bambas adventícios: Luís Fernando Verissimo, Dalton Trevisan, Plínio Marcos. E os de fora, mesmo, do Hemisfério Norte, como Jules Feiffer, James Thurber, André François, Wolinski, Copi, Tomi Ungerer, o português Santos Fernando etc.

Quando o jornal estourou, quem mais se surpreendeu com aquele imprevisto foram os seus próprios redatores e cartunistas. Mas já que os deuses, para frustração dos milicos e da direita civil, pareciam estar do lado da gente, o jeito foi relaxar e aproveitar o sucesso até a última gota de uísque e o último rabo de saia.

Modestamente megalômano, pequeno mas penetrante, contra o trigo e a favor do joio, era o bloco do sujo da mídia impressa, um elixir sem remédio nem bula, devoto do motejo, da derrisão e do menoscabo, lido em várias partes do mundo (todas elas no Brasil) e amado por quem valia a pena ser amado. Num dos versos de “Coqueiro Verde”, Erasmo Carlos, cansado de esperar a namorada Narinha na praia, ameaçava ir embora para casa, a fim de ler o Pasquim.

Tamanho era o prestígio do jornaleco, que se desse na telha de seus editores imprimirem uma edição toda em latim ou grego, a vendagem seria a mesma e não faltaria quem achasse a ideia “duca” (ou seja, do cacete). Isso nunca aconteceu, mas é fato comprovado que uma tarde, com a página do Tarso em branco e seu deadline vencido, Jaguar fez valer sua autoridade e sua porra-louquice, enchendo todo o espaço com a palavra “blablablá”, mantendo a assinatura do Tarso, que afinal levou a fama pela original ideia. Os leitores acharam o máximo, inventivo, o escambau — especialmente aqueles que entenderam a brincadeira como uma finta na Censura, não pelo que de fato era ou havia sido: um improvisado e inconsequente sarro dadaísta.

O leitor padrão do jornal (70% do total) tinha entre 18 e 30 anos, o filé-mignon do mercado. Em circunstâncias normais, esgotando tiragens atrás de tiragens, em menos de um ano teria se transformado numa mina de ouro. Mas, apesar de todos esses números, os anunciantes fugiam do jornal, a maioria por medo de uma prensa do governo, que muitos deles, aliás, levaram.

A ditadura e seus apóstolos não achavam a menor graça no Pasquim e tentaram, por todos os meios e de todas as formas, destruí-lo. Para eles, o mais reluzente ouropel da imprensa alternativa não passava de um antro de comunistas, bêbados, pervertidos e drogados, empenhados em difundir ideologias exóticas e subversivas, desencaminhar a juventude e destruir a família brasileira. Um “panfleto fescenino”, na ranzinza avaliação do dr. Gustavo Corção, um dos judas favoritos da turma, ao lado do repórter sensacionalista David Nasser (de O Cruzeiro), do economista Roberto Campos (ministro do Planejamento do governo do general Castello Branco, também conhecido como “Bob Fields”, por suas abusivas afinidades com os interesses econômicos norte-americanos), o pegajoso animador de TV Flávio Cavalcanti e o autoproclamado reacionário Nelson Rodrigues, colega de Corção no jornal O Globo.

No fundo, o Pasquim não passava de um hebdô anarquista, misto de Harakiri (revista de humor francesa, precursora do Charlie Hebdo) e o semanário independente nova-iorquino The Village Voice. E, acima de tudo, anárquico — em todas as suas instâncias, inclusive na vigilância aos que administravam a empresa, uma sucessão inesgotável de larápios e aldrabões. Enquanto estes agiam na penumbra contábil, a redação e agregados curtiam à tripa forra a noite de Ipanema e do Leblon, de preferência em seus dois mais prestigiados redutos boêmios, a boate Flag (que por sinal ficava em Copacabana) e o bar e restaurante Antonio’s, no Leblon.

Muitas outras gerações de jornalistas notívagos animaram o Rio, mas nenhuma delas pôde se dar o luxo de estender suas farras ao trabalho na redação como a turma do Pasquim. Suas reuniões de pauta, quando havia, eram uma festa — ou melhor, uma esbórnia. Ainda mais zoneadas, claro, eram as entrevistas, sempre regadas a Buchanan’s, e cujo inusitado clima de descontração outros tentaram em vão imitar.

Cabia de tudo naquele saco de gatos. Até artigos sérios. Os de Paulo Francis só eram sérios nos temas, na aparência, e às vezes nem isso. Francis foi um dos fenômenos mais intrigantes do jornal: um intelectual cujo rompimento com a sisudez e a linguagem engomada do jornalismo político e cultural abriu-lhe as portas para a popularidade. Algumas expressões de sua autoria, como “raciocinando em bloco” e “inserido no contexto”, sempre destacadas e gozadas pelo Jaguar, viraram bordões na boca do Chacrinha.

Outro fenômeno foi Ivan Lessa, cuja frenética inventividade invadia quase todas as páginas do jornal, a começar pela seção de cartas dos leitores, que passou a responder, oculto pelo pseudônimo (ou seria heterônimo?) de Edélsio Tavares, um consumado cafajeste que tratava os leitores aos pontapés. Os iniciados e os masoquistas adoravam. Não menos agressiva e desbocada era dona Edelmar Barbosa (outra invenção de Ivan), que de gravador Philips em punho fazia entrevistas imaginárias com personalidades internacionais.

Ivan só não desenhava. Escrevia fotonovelas debochadas e surrealistas, volta e meia estreladas por gente famosa (até Fernanda Montenegro protagonizou uma), paródias de escritores, e ainda ombreava-se com o frasista Millôr na coluna “Gip-Gip, Nheco-Nheco” (nome extraído de uma estrofe da embolada “Trepa no Coqueiro”), um mosaico de desaforismos de fazer Groucho Marx e o Barão de Itararé babarem de inveja, ilustrado alternadamente por Caulos e Redi: “No Brasil morre-se muito de médico”; “Num país onde o futuro a Deus pertence, os agnósticos perguntam: ‘E o passado? Quem vai se responsabilizar por ele?’”; “Todo homem tem o sagrado direito de ser imbecil por conta própria”; “O brasileiro é um povo com os pés no chão — e as mãos também”; “Todos os editoriais da imprensa brasileira têm dois dedos de testa e são escritos numa escola militar do Panamá”. Um deles (“A cada 15 anos os brasileiros esquecem o que aconteceu nos últimos 15 anos”) virou epígrafe do documentário Anos JK, de Silvio Tendler.

Millôr achava estranho que num país com mais de 60% de analfabetos o poder público estivesse tão preocupado com o que diziam meia dúzia de escritores. Mesmo avisados por ele de que “nenhum humorista atira para matar”, os guardiões da ditadura, incrédulos e paranoicos, não foram nessa e vigiaram com crescente rigor as gracinhas do jornal. Seu 39º número chegou às bancas, em março de 1970, com o seguinte aviso: “Este número foi submetido à censura e liberado”. Liberado com vários cortes; mas disso o leitor não podia ser informado. Na capa, Sig fantasiado de Estátua da Liberdade, suando frio e empunhando, à guisa de tocha, um Pasquim em chamas. Dias antes, uma bomba fora colocada na sede do jornal, na Rua Clarisse Índio do Brasil, que só não explodiu por incompetência dos terroristas, gente da própria polícia. Passado o perigo, Sig estufou o peito e desafiou: “Se alguém pensa que o Pasquim se atemoriza com ameaças e pressões, pode tomar nota de uma coisa: é verdade”.

Como se vê, a censura prévia não liberava o jornal de outros tipos de agressão. Algumas edições, não obstante “aprovadas” e “liberadas”, foram inopinadamente recolhidas nas bancas por ordem de alguma “autoridade” que não se dera por satisfeita com os cortes executados por dona Marina, primeiro e único Catão de saias do semanário. Depois dela, só deu gorila, com e sem pijama.

Dona Marina trabalhava dentro da redação, modus operandi promíscuo e contraproducente para qualquer censor razoavelmente civilizado. Boa alma, acabou ficando amiga da patota do jornal e, como era chegada a uma birita, entre um gole e outro, aprovava muita coisa que não devia. Caiu em desgraça ao deixar passar um cartum, bolado por Ziraldo e feito em cima do famoso quadro de Pedro Américo sobre o Grito do Ipiranga, com D. Pedro I gritando “Eu quero é mocotó!”, em vez de “Independência ou Morte!”.

Em seu lugar entrou o galante general da reserva Juarez Paes Pinto, pai de Helô Pinheiro (née Heloísa Eneida Menezes Paes Pinto), a “Garota de Ipanema” original. Só menos cordato que sua antecessora, o general condescendia em conversar com Jaguar e Ivan Lessa sobre os cortes e vetos aos textos e desenhos que lhe eram enviados por dona Nelma. Ocasionalmente cedia aos argumentos e esclarecimentos de Jaguar e Ivan, e abria as pernas. “Se vocês garantem que não tem mesmo sacanagem aí, eu retiro o veto”, aquiescia o general, que se gabava de não entender patavina do que escrevia o Francis, cujos originais, vindos pelo malote da Varig e, por isso, os últimos a chegar à redação, lhe eram submetidos de afogadilho nas areias do Posto 6 de Copacabana, seu reduto de carteado de todas as tardes. A rigor, o pai da Garota de Ipanema era mais um general de calção que de pijama.

Em novembro de 1973, a barganha chegou ao fim, junto com a gestão do general. Juarez vacilou e dançou. Sem qualquer intercessão de Jaguar e Ivan, liberou a entrevista de uma antropóloga negra americana sobre racismo, e o céu desabou.

Chamava-se Angela Gillian a antropóloga e lecionava na Universidade de Nova York. Passara uma temporada na Bahia e concluíra que: 1) havia racismo no Brasil; 2) o negro brasileiro continuava “com a vassoura na mão”; 3) Pelé escolhera uma mulher branca para “melhorar a raça” e “limpar o sangue”. Fanaticamente zelosos da “democracia racial” em que acreditavam viver, os militares no poder cogitaram, num primeiro momento, apreender o Pasquim nas bancas, optando, finalmente, pela demissão do general Juarez de suas funções catonianas e pela transferência da censura do jornal para o longínquo, impessoal, implacável e inacessível Centro de Informações do Exército, em Brasília.

No buraco negro do Ciex, até inocentes dicas sobre Pixinguinha passaram a ser furiosamente vetadas pelos anônimos censores, consoante as determinações do general Antonio Bandeira, um dos mais sinistros do regime. “Agora não sai mais nenhum preto nesse jornal!” — ordenou o general. Enquanto seu diktat vigorou, não saiu mesmo. Mesmo inocentes fotos de Pixinguinha foram furiosamente rasuradas pela Turma da Pilot, ou seja, pelos burocratas da repressão que, em vez de pau de arara e eletrodos, manuseavam uma caneta hidrográfica.

E assim foi até 1975, quando a censura, oficialmente, acabou.

Minha relação com o Pasquim começou na tribuna de imprensa do Maracanã, no intervalo de um jogo, por volta de agosto de 1969. O jornal tinha poucas semanas de vida e de sua equipe original eu só não conhecia Claudius, Tarso e Prósperi. Embora fosse amigo de Jaguar, Millôr, Ziraldo, Fortuna e conhecesse Francis mais de longe que de perto, quem me convidou “para escrever qualquer coisa” foi Sérgio Cabral, companheiro de outras redações. A primeira coisa acabou sendo um artigo, pretensamente jocoso, sobre a atriz Sharon Tate, com quem eu fizera uma viagem de barco, entre Acapulco e Los Angeles, dois anos antes de seu brutal assassinato.

Só voltei a colaborar quando a maior parte da redação foi curtir férias compulsórias no xadrez, nos últimos dois meses de 1970, e o Pasquim passou a ser editado por um mutirão de jornalistas, com Millôr, Henfil, Marta e Miguel Paiva na retaguarda.

Em 1º de novembro de 1970, com o número 72 já na gráfica, Cabral e Fortuna estavam em Campos, no interior do estado do Rio, quando foram avisados de que Ziraldo, Francis, Maciel, o fotógrafo Paulo Garcez (em plena lua de mel!) e Haroldo Zager haviam sido presos. Fortuna juntou-se aos prisioneiros ao chegar de volta ao Rio, no dia 3. Na companhia de Jaguar, Cabral foi à polícia para depor e tentar libertar os companheiros. Doce ilusão. De lá saíram para fazer companhia aos parceiros no xilindró da Vila Militar, para onde Tarso também foi levado. As duas semanas de xadrez inicialmente previstas acabaram esticadas para dois meses.

Por que motivo foram presos? Nunca souberam oficialmente. O cartum brincando com o quadro de Pedro Américo saiu no número 74, com a turma já atrás das grades; daí a desconfiança de que sua publicação não tenha motivado a prisão em si, mas a extensão do castigo de duas semanas para dois meses.

Do número 74 ao 80, o Pasquim se transfigurou. Para todos os efeitos, baixara um surto de gripe na redação, atingindo nove integrantes da patota. A metafórica gripe foi a maneira cifrada que Marta, Millôr e Henfil encontraram para informar aos leitores o que acontecera. Nesse interregno, a tiragem caiu de 160 mil para 60 mil, mas deu para atravessar o Rubicão.

Com a patota de volta à liberdade e à redação, ganhei um novo padrinho, Francis, e uma atribuição: produzir textos sobre cinema que fugissem ao ramerrão da grande imprensa. Entrei efetivamente para o jornal com o Tarso na porta de saída, em pé de guerra com Millôr e outros membros da equipe. No número 68 seu nome já não constava do expediente. Duas semanas depois, voltara como “presidente licenciado”, ficando Sérgio Cabral como “presidente em exercício”.

Aí deu-se a prisão. E depois, a diáspora. Saíram Tarso, Marta, Maciel e Cabral. Cansado de ser preso e interrogado, e com a desculpa de que, aos 40 anos, merecia viver “num país com quatro estações definidas por ano”, Francis mandou-se para Nova York. Também de saco cheio da ditadura, Claudius foi morar alguns anos em Genebra.

Pressionado pela Censura, cada vez mais perseguido por terroristas de direita (daí o slogan “Um jornal mais verde de susto que de esperança”), boicotado pelas agências de publicidade e imerso em dívidas, o Pasquim viu-se num beco sem saída e obrigado a experimentar novas formas de sobrevivência. Em janeiro de 1972, a pedido de Ziraldo e Jaguar, assumi a editoria geral. Por sorte, Ivan Lessa, em Londres havia quatro anos, estava voltando para o Brasil. Com Ivan na redação e Millôr empossado, meses depois, na direção do jornal, uma nova fase teve início.

Foi nesse período que surgiram algumas das seções e brincadeiras pelas quais o Pasquim costuma ser mais lembrado até hoje. Àquela altura, além de editar as dicas, ajudava Ivan a zorrar o jornal, cobrindo-o de minúsculos e zombeteiros grafites, perpetrados com a pena e o nanquim do Jaguar, e a produzir uma coluna de notas (“Os do Pasquim...”) sobre filmes, livros, programas de TV e eventos culturais, sem assinatura e inspirada na seção “Talk of the Town” da revista The New Yorker, quando anonimamente redigida pelo inigualável E. B. White.

Na página mais nobre, a 3, Millôr inaugurou uma coluna fixa de notas sobre os mais variados assuntos, cujo título, “Isto É Isto”, era uma homenagem a Shakespeare. Sempre encimada por um pensamento alheio (ou pensamentão, como preferia Millôr), herdei-a quando seu titular entrou de férias e, na volta, não quis reassumi-la. Em abril de 1975, “Isto É Isto” transformou-se em “É Isso Aí”, implicante página de tópicos basicamente sobre política e crítica ao comportamento da grande imprensa, que me deu muito trabalho (tinha de ler todos os grandes jornais e me meter em searas meio distantes dos meus interesses), prazer, leitores e dissabores.

Fazia então um ano que um novo general assumira o poder: Ernesto Geisel, o quarto a quem gostaríamos de ter dito, plagiando Chico Buarque: “O senhor não gosta da gente, mas sua filha gosta”. O luterano Geisel foi o primeiro presidente não católico do país, detalhe destacado pelo Pasquim na semana da posse. “Nunca é demais lembrar que nós sempre fomos um jornal protestante”, salientava o dístico da capa. Ou abusamos do double entendre ou os milicos — hipótese mais provável — não entenderam a mensagem.

E o jeito foi continuar protestando; frequentemente ao estilo das Cartas Persas de Montesquieu, contra ditaduras de fora (“Bem-vindos ao clube, uruguaios”, saudou uma dica, metaforicamente sobre futebol, porém motivada pelo golpe militar no Uruguai), e truculências igualmente estrangeiras, quase sempre arquitetadas por algum soba latino, africano e asiático (destaque para o ugandense Idi Amin Dada e o filipino Ferdinando Marcos). Amin virou personagem de fotonovelas e até de um conto do inqualificável (no bom sentido) Moura Barroso, um dos vários alter egos literários de Ivan Lessa.

Apesar das promessas e das esperanças da imprensa que hoje chamam de mainstream, o Pasquim continuou sem ver a luz no fim do túnel. Minto; viu, sim, mas só uma vez: era um trem vindo na direção contrária.

O que fazer se as evidências não desautorizavam o ceticismo da redação? Nem no “milagre econômico” acreditávamos. O PIB do Brasil, é verdade, subiu, na época, 14%, mas sem afetar a nossa histórica desigualdade social: mais da metade da população ganhava menos de um salário mínimo em 1973. Era preciso ser mágico para chegar com alguma sobra no fim do mês, razão pela qual pusemos na capa do número 225 a figura de Mandrake, a vangloriar-se de ganhar 740 cruzeiros mensais e conseguir economizar 80 cruzeiros e 30 centavos.

As notícias de fora tampouco eram ensolaradas. Entre maio de 1973 e abril de 1974, além do golpe militar no Uruguai, das chacinas em Uganda e da Guerra do Yom Kippur, implantou-se no Chile uma das ditaduras mais sangrentas da história do continente, páreo duro com a argentina, acelerada pelo desastrado retorno a Buenos Aires do antigo ditador Juan Domingo Perón no mesmo período em que Salvador Allende perdeu o governo e a vida para os golpistas comandados pelo general Augusto Pinochet. Alvissareiras, só as mortes de Fulgencio Batista (o ditador cubano que Fidel derrubara em 1959) e Luis Carrero Blanco (o fugaz sucessor ou preposto do generalíssimo Franco no governo espanhol) e a recusa do vietnamita Duc Tho a rachar o Nobel da Paz com o criminoso de guerra Henry Kissinger.

A quase tudo isso o Pasquim reagiu à altura (desde que o adversário morasse bem longe ou não tivesse mais de 1,60 metro de altura, claro), debochando inclusive do supostamente indebochável. Quando baixaram todas aquelas medidas de segurança, “para evitar sequestros de aviões e atos de terrorismo”, até hoje em vigor nos aeroportos, pusemos na capa o Sig a bordo do 14-Bis, ordenando ao piloto (Santos Dumont): “Desvia pra Miami”.

Muitos dos vilões daquela época não vestiam farda, mas eram, cada um a seu modo, beneficiários da ditadura, quando não do “milagre econômico” e suas ostentações: o demagógico Flávio Cavalcanti, por exemplo, que o jornal passou a grafar em minúsculas e entre aspas, como se fosse um palavrão; a dupla Adolfo-Oscar Bloch, notórios puxa-sacos de presidentes, donos da extinta Manchete (revista, teatro e TV), aos quais Millôr anexou um apócrifo parente chamado Ali, para não perder o tentador trocadilho “Ali Babloch e os 40 Ladrões”; o tentacular construtor de espigões Gomes de Almeida Fernandes, que enriqueceu tentando transformar o Rio de Janeiro numa selva de concreto.

Defender a integridade urbana do Rio, ou o mínimo que dela restava, foi uma das bandeiras do Pasquim, que até contra a indústria predatória do turismo se insurgiu: “Diga não a um turista”, propôs uma campanha lançada pelo jornal. Então um feudo do governador biônico Chagas Freitas, o Rio tornou-se, na década de 1970, um paraíso para a especulação imobiliária mais desenfreada, com monstrengos arquitetônicos brotando na Zona Sul da cidade, invariavelmente batizados com nomes cafonas como “Désir d’Argent” — não, não, este foi inventado na redação do Pasquim. Os Gomes de Almeida Fernandes jamais admitiriam construir prédios movidos única e exclusivamente pelo tesão pecuniário, certo?

Também como válvula de escape, investiu-se um bocado no escândalo Watergate, rolando desde meados de 1972 e um dos temas favoritos do Francis, do Newton Carlos e, depois do final de 1973, também do Henfil, o mais novo exilado do jornal em Nova York. Watergate foi capa dos números 202 e 204, esta ilustrada por Fortuna: uma caricatura de Richard Nixon dotado de um nariz de Pinóquio, alegando “não saber de nada”. Acima de Tricky Dick, o dístico da semana: “Ei, Nixon, Joana D’Arc também começou ouvindo vozes e acabou na fogueira”.

Quando não espinafrava Nixon e seus espiões, Francis flanava pelas avenidas culturais nova-iorquinas, falava de Norman Mailer, de Sartre & Simone, da psicanálise, da violência (desde Sócrates!), das mazelas seculares do Brasil, além de si próprio, em reminiscências infantis, juvenis e profissionais — nenhuma mais dramática do que os maus pedaços que passou num hospital de Nova York. Diagnosticado com um tumor (benigno) no pescoço, Francis, que então vivia apenas do que lhe pagavam o Pasquim e a Tribuna da Imprensa, precisou encarar o SUS americano. A cirurgia, a duras penas consumada num hospital público de Manhattan, no segundo semestre de 1973, virou capa da revista Time, não a verdadeira, mas a que Redi parodiou à perfeição no Pasquim 226, com chamadas em inglês dublado (“This number: Operation Francis”) e um sorridente Francis a folhear o Pasquim e desdenhar a atenção que a revista lhe dispensara: “A Time cover is not enough to cut my only neck”. O pescoço do Francis, o único que ele possuía, valia de fato mais que uma capa da Time.

No rodapé da capa, os preços da publicação nos países da América Latina. Ao estilo Time, mas ao câmbio do Pasquim. Na Argentina, custava 2 perones. Nas Bahamas, 5 turistas. No Chile, 560 paredones. Na Colômbia, 600 colombinas. Na República Dominicana, 6.780 trujillos. No Haiti, 86 zumbis. Em Honduras, 1.700 bananas. Na Jamaica, 67 belafontes. No Uruguai, 226 tupamaros.
Francis, que certa vez definiu bem o Pasquim como “uma brincadeira num tempo triste”, achava que o melhor ou mais duradouro de sua gloriosa história trazia as assinaturas de Millôr, Ivan Lessa, Jaguar, Henfil e Ziraldo. Dessa primeira fase eu acrescentaria um outsider — outsider relativo, pois enquanto Tarso reinou na redação, Vinicius de Moraes fez parte da patota e produziu um bocado: perfis, entrevistas, inclusive poesia, que afinal era o seu forte.

“De tanto ver triunfar as nulidades, o Pasquim acabou dando certo.” A frase é do Millôr, um mea culpa de seu presságio negativo no primeiro número do jornal, que de todo modo terminava com votos de vida longa. Graças à tenacidade de Jaguar, o último dos moicanos pasquinenses, o jornaleco que se gabava de ser contra tudo o que podia ser contra chegou ao número 1072, o equivalente a 22 anos e cinco meses de vida, um ano a mais que a ditadura militar. Se quisesse, poderia ter sempre o mesmo dístico: “Pasquim — o marginal que deu certo”.

Apesar dos pesares, foi muito bom enquanto durou. Para mim durou só até setembro de 1979. Se pudesse, começaria tudo outra vez. Mesmo sem saber se uma farsa, quando se repete, vira história.

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