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O Pasquim

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CAETANO VELOSO

Entrei no Pasquim antes de ele existir de fato. Na noite em que Gil e eu fomos levados para o avião em que voaríamos para o exílio, Luiz Carlos Maciel foi ao aeroporto e me disse que estava envolvido na feitura de um jornal de resistência. O cara da Polícia Federal que me pôs dentro do avião me disse: "Não volte, assim você nos poupa o trabalho de um dia de busca". Maciel tinha me dado o endereço dele para que eu mandasse textos para o jornal. Não lembro se ele já me dissera que o jornal se chamaria O Pasquim ou se só em Londres, para onde terminamos indo, depois de umas semanas entre Lisboa e Paris, é que aprendi o nome. Quando já estávamos estabelecidos em Chelsea, Maciel mandou os primeiros exemplares. Gostei imensamente do tom do jornal. Os desenhos de Jaguar, as tiradas de Tarso, os textos maravilhosos de Paulo Francis. Comecei a escrever umas peças curtas e cheias de jogos de palavras, num joyceanismo infantojuvenil. Escrevia sempre para Maciel. Nunca enviei nada para a redação, cujo endereço nem cheguei a conhecer. Eu amava Maciel desde os tempos em que ele foi diretor da Escola de Teatro da UFBA. Conhecia Tarso muito superficialmente: via-o em bares e festas e às vezes conversávamos. As figuras de maior peso para mim eram Francis e Millôr. Deste último eu era fã desde a infância: aos 12 anos, me encantava com as piadas do Pif-Paf da revista O Cruzeiro, as piadas poéticas ainda ilustradas por Carlos Estevão. Quando os desenhos do próprio Millôr foram finalmente adotados pela direção da revista, meu encanto se multiplicou. Já Francis, só vim a conhecer já na avançada adolescência. Ele me fascinava com sua inteligência, sua exibição de cultura e sua mordacidade. Percebia que Ivan Lessa era afinado com a turma. E que Sérgio Augusto era como que um calouro que chegara. Lessa nunca me fisgou: soava como um Francis sem a contundência. Sérgio me parecia sempre mais simpático, dono de uma espécie de modéstia que, depois perceberia, fazia falta aos outros. Listo esses porque eram como um grupo de elite intelectual, a malta de um Algonquin carioca, que estava acostumada a dar as cartas da apreciação das atividades culturais no Brasil. Eu não só os admirava como os adorava — até a revolução tropicalista formar-se dentro de mim. Mantive a admiração, mas a necessidade — em grande parte nascida da vivência em São Paulo, cidade muito mais adequada ao desenvolvimento da Tropicália do que o Rio — de relativizar os critérios e valores desse grupo carioca já aparece num texto que mandei para o próprio Pasquim, em que falo de "ipanemia". As intervenções quase desbocadas de Tarso me divertiam, me faziam rir — e ele trouxe a personagem da "bicha", coisa de grande importância, mesmo que apenas em tom de deboche. Maciel foi se firmando como o representante da contracultura naquele mundo de humor um tanto autocomplacente. Ele estava num lugar muito mais próximo de mim. Mas, para quem estava em Londres morrendo de saudade do Brasil, havia em sua coluna demasiado interesse por artistas anglo-americanos. De todo modo, estávamos todos contra o clima repressivo da ditadura e eu me sentia bem por estar em meio àquela gente brilhante. Um dia, Guilherme Araújo me disse que todos tinham sido presos. E me chamou para que fosse com ele à BBC falar com Ivan Lessa: saber notícias e prestar solidariedade. Lessa, que Guilherme já conhecia havia anos (ele era amigo de Elsie, mãe de Ivan), mostrou-se frio e desinteressado. Desmistificou o drama da prisão, sempre olhando para Guilherme, nunca para mim, a quem ele apenas disse "muito prazer" quando Guilherme nos apresentou.

Saímos meio acalmados, meio frustrados. Achei Lessa antipático comigo. Mas não dei muita importância. Depois soubemos que Millôr não tinha sido preso. Lembro que uma vez, em lugar de mandar uma crônica (ou seja lá o que fossem aquelas coisas que eu escrevia), mandei uma colagem de desenhos de humor, com piadas inventadas por mim. Meu desenho era o.k., mas longe da espontaneidade de um Jaguar e muito longe do nível propriamente artístico de Millôr. Em 1971 João Gilberto me chamou para gravar um especial televisivo com ele e Gal. Eu, que tinha vindo meses antes ao Brasil para o aniversário de 40 anos de casamento dos meus pais (num acerto feito entre Bethânia e o comediante Castrinho, afilhado de um general) e tinha ficado seis horas preso numa sala de apartamento na Presidente Vargas (uns milicos me prenderam na escada do avião, deixando Dedé sozinha e assustada na fila de desembarque) e, sob exigências de fazer uma música saudando a Transamazônica e ameaças de não ser solto (Maciel, Glauber, Dedé e Bethânia ficaram essas seis horas me esperando no apê da Beta, sem saber no que ia dar), fiquei certo de que talvez nunca mais voltasse ao Brasil. Mas eu tinha uma reverência religiosa por João Gilberto e vim. Como João predissera, ninguém me importunou. Decidi voltar pro Brasil — que era tudo que eu sempre quis.

Na volta, os órgãos de imprensa, que eram proibidos de noticiar que Gil e eu estivéramos presos e estávamos exilados, sentiram-se à vontade para ser apenas normalmente exigentes como são as publicações jornalísticas. O Pasquim, por decisão de Tarso, saudou minha volta. Cada colunista escreveria algo nesse sentido. Glauber escreveu que eu era "um gênio", Francis lembrou que havíamos trocado bilhetes na prisão (ele num xadrez colado ao meu) sobre Ênio da Silveira. E se queixava de eu ter feito uma ênclise (ele não usou esse termo: usou um errado). Fui para a Bahia, Moreno nasceu (a coisa mais importante da minha vida) e as pessoas me mostravam O Pasquim me xingando, me desqualificando e apelidando nosso grupo de "baihunos". Em Londres, Glauber, que passou uma temporada em minha casa, ao ouvir um comentário meu de admiração por Millôr e Francis e desconfiança do que me parecia certa "superficialidade" de Tarso, me disse: "Millôr, Francis, não confie. O único bom coração ali de verdade é Tarso de Castro". Já na Bahia, Jaguar pediu a Rosinha de Valença que intermediasse uma visita de "reconciliação". Eu amava Rosinha. E não tinha problemas fortes com O Pasquim. Via aquelas coisas, achava erradas e esquecia. Também nem eram assim tão assíduas. Tarso tinha deixado o jornal. Jaguar, na Bahia, me disse que aquela campanha toda contra mim e os baianos era coisa de Millôr. Achei um mundo moralmente meio baixo. Continuei admirando algo de Francis e, muito mais, de Millôr: este é um verdadeiro artista, o que não é o caso do outro. Péricles Cavalcanti me diz que Cabeça de negro chega a ser um bom romance. Justo esse eu ainda não li. Li os outros. As memórias, que têm tom mais jornalístico, são legais. As ficções, não. Como Millôr tinha sido agressivo comigo e com Dedé na Veja, mal chegáramos, Dedé disse a Jaguar que ficava na beira do rio esperando o cadáver dele passar. Eu não disse nada. Jaguar estava muito bêbado. Anos depois, Francis foi horrendo comigo. Desonesto e ressentido. E escreveu que o Rio começou a acabar quando Bethânia substituiu Nara no Opinião "e atrás dela veio essa gente". De xingar Roberto Marinho no Pasquim a ser o locutor do neoliberalismo na Globo, na Folha e no Estadão, Francis me ajudou a manter uma desconfiança do liberalismo que hoje se intensifica quando leio a procuradora governista dizendo que as queixas contra o superencarceramento são uma falácia e promete combater "a ideologia abolicionista". O Pasquim foi uma experiência interessante, mas em tudo que se mexe no Brasil ressurgem as motivações da luta contra a injustiça social. Hoje amo Tarso de Castro, sigo amando Maciel, e tenho ternura por Sérgio Augusto.

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