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O Pasquim

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Ricky Goodwin

Quando se lembra do Pasquim, a maioria das pessoas tem em mente, primeiro, as entrevistas publicadas semanalmente por aquele jornal. O Pasquim foi um jornal de humor satírico que existiu no Brasil entre 1969 e 1991. Foram 1.072 edições. Cada uma delas contém uma entrevista, quase sempre a atração principal daquele número. Algumas edições trazem mais de uma entrevista. Certamente, foram então mais de 1.200 entrevistas do Pasquim.

Praticamente todos os grandes nomes do Brasil daquela época foram entrevistados pelo jornal. Personalidades que visitavam o país também frequentaram aquelas páginas. Integrantes do jornal que estavam no exterior fizeram entrevistas com nomes internacionais, ou com brasileiros exilados, que não tinham voz em nosso país. Houve entrevistas coletivas: com sindicatos, associações, grupos culturais. E diversos anônimos contaram ali suas histórias e suas lutas. Os textos formam um painel interessante daqueles tempos — e de tempos anteriores —, narrados pelos seus protagonistas.

Conversando com o Pasquim, artistas, políticos, bandidos, policiais, jornalistas e musas revelaram detalhes de suas vidas que não contariam para outras publicações. Pessoas hoje famosas e então desconhecidas — ou conhecidas localmente — tiveram alcance nacional com a repercussão de seus papos com esse jornal. Como aconteceu com um líder metalúrgico de apelido Lula, que deu ao Pasquim sua primeira entrevista a um grande veículo. Ou uma figura do Baixo Leblon de apelido Cazuza. Ou Madame Satã.

As entrevistas do Pasquim tiveram um papel importante de resgate, de apresentar a um novo público nomes esquecidos ou cultuados entre pequenos grupos, como mestres do samba, personagens históricos, pensadores e intelectuais. Ou falando abertamente, trazendo à tona temas ocultados, como ao abordar o racismo num tempo em que a mera palavra era censurada, ou narrar pela primeira vez na imprensa detalhes da tortura sob a ditadura, no emocionante relato de Fernando Gabeira. E em diversas entrevistas-denúncia.

O que ficou marcante nas entrevistas do Pasquim não foi somente o seu conteúdo, como também a sua forma. O Pasquim mudou completamente o jeito de se fazer entrevistas na imprensa brasileira. Comenta-se que o Pasquim, de uma forma geral, tirou o terno e gravata do jornalismo patropi, e isso aconteceu também com suas entrevistas.

A maneira de se fazer entrevistas até então era formal, num formato conhecido como pingue-pongue, com uma pergunta (curta) sendo sucedida por uma resposta. As perguntas não eram personalizadas, sendo identificadas usualmente com o nome do veículo que publicava a entrevista. As respostas eram condensadas, para ganhar espaço.

As entrevistas do Pasquim romperam com isso. Passaram a dar voz e mais espaço aos entrevistadores, até porque o elenco do jornal era brilhante. Mesmo quando um entrevistado era fraco, a qualidade dos entrevistadores garantia o interesse do papo. Às vezes passavam a conversar entre si, esquecendo-se de que estavam numa entrevista. Era interessante também acompanhar como um brincava com o outro, ou se provocavam, ao colocarem suas perguntas.

Quando um entrevistador dizia algo, seu nome aparecia encabeçando aquele texto. Isso dava uma cara ao que estava sendo dito.

A edição das entrevistas era abrangente. As respostas podiam ser longas. Conversas em paralelo, comentários irrelevantes, frases que numa entrevista normal seriam descartadas eram incluídas, dando um sabor adicional ao conteúdo.

Não havia uma pauta (lista de perguntas) rígida. Podia-se começar falando de um assunto e a prosa sair tomando rumos inesperados. No fundo, eram mais como bate-papos, informais, sem regras, um assunto emendando no outro, o entrevistado sendo interrompido, várias pessoas falando ao mesmo tempo.

Uma característica marcante é que as frases eram publicadas exatamente como as pessoas as diziam, reproduzindo a prosódia, a maneira de falar, de cada um, mesmo com erros gramaticais, algo impensável no jornalismo tradicional. A linguagem também era bastante informal, com contrações de palavras, gírias e palavrões.

Outra de suas vantagens era não haver grandes limitações de espaço para as entrevistas, que poderiam se estender quanto fosse necessário. Geralmente, cada edição do jornal era programada em torno da entrevista, ou seja, primeiro se verificava quantas páginas ela ocuparia e depois se distribuía o restante do material (normalmente o espaço de uma seção é fixo, sendo o mesmo em todas as edições).

Mais uma característica típica do texto no Pasquim era a introdução das rubricas. Entre parênteses, num corpo itálico — uma letra mais deitada assim —, reproduziam não o que estava sendo dito, mas como estava sendo dito. E transformavam em palavras ruídos como gargalhadas e outros sons. Além de descrever o ambiente, as pessoas e como elas se movimentavam. (pausa) Escreveremos mais depois sobre as rubricas. Antes, a história das entrevistas.

Como acontece com muita coisa genial — e com muito do que aconteceu no Pasquim —, o jeito diferente das entrevistas surgiu por acaso. Quando o supergrupo de jornalistas e humoristas planejou o número de estreia, sabia que a primeira entrevista teria de ser impactante. Depois de muita discussão, prevaleceu a ideia insólita de fazê-la com o colunista social Ibrahim Sued, o oposto de tudo que o Pasquim representava.

Feita a entrevista, surgiu a questão na qual ninguém tinha pensado: quem iria transcrever aquilo? “Tirar entrevista” — transformar o áudio da gravação num texto escrito — é muito chato. Ainda mais com a tecnologia da época. Você ouvia um trecho, datilografava aquilo, talvez tivesse que voltar por não ter entendido direito, ouvia outro trecho e assim ia... O gravador do jornal na época era um trambolho que usava fitas de rolo e nem botão de pausar tinha, ou seja, a cada clique de desligar e ligar se perdia um pedacinho e tinha de voltar mais — os mais safos giravam o rolo ao contrário com os dedos para voltar a fita.

Ninguém queria descascar o abacaxi e tiraram no palitinho. Jaguar perdeu. Jaguar era um excelente cartunista e humorista, mas não tinha nenhuma experiência jornalística. Muito menos sabia tirar uma entrevista. Teve muita dificuldade. A conversa tinha sido uma zorra etílica. O tempo foi passando e nada de Jaguar entregar o texto. Chegou o dia de fechamento (mandar para a gráfica) e não havia entrevista pronta. Da redação ligavam pro Jaguar, nervosos. Na última hora ele apareceu esbaforido com as páginas datilografadas. Tarso de Castro — o mais experiente em termos de editoria — pegou aquilo e quase teve um troço. “Mas, Jaguar, você não copidescou?!” “Copidesoquê?”

Fazer o copidesque era dar uma ajeitada no texto, colocar numa “linguagem jornalística”, nos conformes do padrão. Consertar erros gramaticais, eliminar as redundâncias e partes fracas, enxugar o texto. “Não me falaram que era pra fazer esse copidesque.” E Tarso: “Agora não dá mais tempo. Vai assim mesmo”. As páginas seguiram para impressão com a transcrição à la Jaguaribe, repetindo a versão oral de como as pessoas falaram. Quando as pessoas riam, ele escrevia lá (risos).

A fórmula fez sucesso, elogiou-se a ousadia, e nasceu um estilo.

Nas próximas, Jaguar passou a tarefa para a poetisa Olga Savary, sua esposa, que colaborava na redação (fazia as Dicas). Depois de um tempo, Martha Alencar, jornalista experiente, assumiu a função. Quando Martha saiu do jornal, junto com Tarso, quem passou a tirar as entrevistas foi Sérgio Cabral. Fez isso por um bom tempo. Sendo ótimo escritor e contador de histórias, incorporou elementos que se tornaram clássicos nos papos do Pasquim, tornando-os mais engraçados.

Quando Serjão cansou da brincadeira, em 1972, quem assumiu o gravador e as transcrições foi Glauco de Oliveira. Glauco era Secretário de Redação, fechava as edições, e não tinha muito tempo para acumular as funções. Com alguns meses viu-se que ficava pesado para ele, algumas entrevistas atrasavam, e na virada de 1972 para 1973 os editores resolveram chamar alguém de fora para cuidar disso.

Ziraldo me trouxe para o Pasquim, vindo da imprensa mineira, onde já fazia isso de bolar entrevistas diferentes. No início ali eu só gravava e transcrevia, mas ainda em 1973 criou-se o cargo de Editor de Entrevistas, que exerci até 1986. Quando deixei o jornal, Wilma Vieira, minha esposa na época, passou a fazer isso. Nos últimos anos foi o cartunista Amorim, então editor do jornal, revezando-se com Jaguar, o último remanescente da turma original. As transcrições começaram com Jaguar e terminaram com Jaguar.

Como Editor de Entrevistas eu dava às vezes palpites na escolha dos entrevistados e toda semana participava, com Nelma Quadros, secretária de fé e mãe de todos, dos trâmites para marcar o encontro. Fazia uma pauta (que nunca era seguida) e na hora tentava organizar o fluxo da conversa e controlar o incontrolável. Todos falavam ao mesmo tempo. Às vezes tinha que decidir, em meio a discussões ruidosas dos egos afoitos, quem faria a pergunta naquele momento. Puxava o papo de volta para assuntos que iam sendo deixados de lado ou sugeria para alguém temas novos quando a conversa definhava. Importante: estar sempre atento às fitas. Sejam de rolo ou cassete, em determinados momentos paravam de girar — e tinham de ser trocadas de lado. Era o único que não bebia...

E depois vinha a trabalhosa transcrição e a prazerosa edição da entrevista. E as entrevistas do Pasquim eram longas. Um papo normal durava em média três horas. Muitas entrevistas tiveram cinco, seis horas de duração. O recorde foi com o ativista e crítico de arte Mário Pedrosa: nove horas de gravação de uma conversa maravilhosa (publicada em nove edições consecutivas). O repórter policial Otávio Ribeiro, o Pena Branca, contou tantas histórias do submundo da bandidagem que a entrevista foi feita em cinco sessões (e publicada em cinco semanas).

As entrevistas se estendiam no tempo e às vezes no espaço. Uma das primeiras entrevistas das quais participei foi com o compositor Lupicínio. Começou num apartamento em Copacabana, aí resolveram ir beber num bar da esquina, ficaram até o bar fechar, e foram para outro, aí emendaram num inferninho, e a entrevista terminou com todos sentados na areia da praia vendo o dia amanhecer. A conversa rolou a noite inteira, entremeada por Lupicínio tocando violão e cantando suas músicas. Sempre com o microfone ligado, registrando tudo.

O microfone sempre aberto era uma chave das entrevistas. Os papos ficavam bem interessantes mais para o final, tendo passado da hora de uma entrevista normal acabar, quando o entrevistado estava bêbado, cansado ou relaxado, e abria a guarda. Lembrei-me agora de uma entrevista com Tancredo Neves, na época da campanha das Diretas. Fui sozinho tomar café da manhã com ele no seu apartamento em Brasília. A entrevista não rendia... Tancredo a tudo respondia pro forma, como se fosse porta-voz de si mesmo. Logo encerrou o encontro, tinha de ir ao aeroporto pegar um voo. Pedi que me desse uma carona, pois meu voo para o Rio seria naquela hora (nada, a volta estava marcada para a tarde). No carro, fomos contando casos de um conhecido em comum, Zé Aparecido, e a conversa fluiu. Retomei a entrevista e Tancredo soltou então declarações interessantes e exclusivas para o jornal.

Naquela época eu fazia uma brincadeira em que perguntava ao entrevistado da semana qual a sua opinião sobre o entrevistado da semana anterior. Isso criava justaposições interessantes quando um não conhecia o outro ou discordavam entre si. No caminho para o aeroporto fiz essa pergunta: no caso de Tancredo, era Fafá de Belém, que participava dos comícios cantando o Hino Nacional. Ele olhou diretamente para mim, fez um bico com a boca e gemeu: “Uuuuh”! E espalmou as duas mãos como se segurasse dois melões. Para mim foi o ponto alto da entrevista, um momento realmente humano de um político mineiro contido.

Em reportagens e palestras perguntam bastante aos pasquineiros como faziam para ganhar a confiança dos entrevistados, criando um clima especial. Bem, muitas foram feitas com amigos, ou pessoas conhecidas (principalmente na primeira fase), e era natural que o tom fosse mais íntimo e informal. A mítica do Pasquim também ajudava: as pessoas ficavam felizes de dar entrevista para o jornal.

E era isto: as entrevistas eram mais bate-papos, conversa de bar, do que diálogos jornalísticos. Mesmo quando entrevistavam um “inimigo”, alguém de quem discordavam completamente, não chegavam entrando de sola. Geralmente, no início pediam para o entrevistado contar a sua vida, desde o nascimento. As pessoas gostam de relembrar sua infância, o começo de carreira ou profissão, e isso já criava certa camaradagem. No decorrer do papo, a temperatura podia entrar em ebulição, mas as estocadas ferinas de Millôr, Francis, Tarso ou Henfil eram contrabalançadas pelas tiradas engraçadas de Jaguar, as perguntas insólitas de Ziraldo e as observações nonsense de Ivan Lessa. Claro, em algumas entrevistas o caldo entornou, como quando o sarcástico Millôr e a feminista Betty Friedan quase chegaram a se estapear.

Como eles eram muitos e o entrevistado um só (ou poucos) — e tinham raciocínios rápidos e argutos —, num confronto quase sempre levavam a melhor. Em raras vezes, contudo, o entrevistado caía de pau, como Agnaldo Timóteo, que esculhambou os “intelectualoides” do Pasquim por ignorarem preconceituosamente o tipo de música que ele fazia, isso depois de repetir que Caetano, Chico, Tom Jobim, eram todos uns merdas. O objetivo da entrevista com o reacionário Flávio Cavalcanti era dar uma prensa nesse ícone do conservadorismo na época, mas ele, muito esperto, foi percebendo as discordâncias entre a equipe do Pasquim e habilmente foi atiçando um contra o outro. Era uma época de crise no jornal, com muitas brigas internas (uma constante na sua história, com tantos talentos imensos convivendo juntos). A entrevista foi encerrada bruscamente quando insuflados pelo álcool e as insinuações de Cavalcanti, Tarso e Ziraldo chegaram às vias de fato, esparramando os móveis da sala.

Por falar nisso, uma grande contribuição para o clima das entrevistas era serem fartamente regadas a uísque (e outras bebidas). Lição de jornalismo: o pessoal do Pasquim aguava os seus copos e bebia devagar (menos Jaguar, que nunca precisou maneirar), enquanto incentivava o entrevistado a beber cada vez mais, para que se mantivesse muito à frente deles na desenvoltura etílica.

Outra pergunta que me fazem constantemente era como conseguia transcrever fielmente os papos com tanta zoeira, gente falando ao mesmo tempo, atropelando o entrevistado, muita conversa paralela etc. (ainda mais antes do advento do microfone estéreo). Eu tinha aprendido datilografia (útil nas transcrições, teclando na máquina de escrever quase na velocidade em que as falas saíam do gravador) e taquigrafia. Durante uma entrevista eu anotava todas as perguntas — quem tinha feito e qual o conteúdo —, além dos comentários fora do microfone. E os principais pontos das respostas dadas. Para facilitar a edição, já ia rabiscando também onde entraria cada trecho, “isso vai junto com aquilo”, “vamos pular essa parte onde ninguém diz nada”...

Editava a entrevista como quem monta um filme. Desmontava a falação em pequenos blocos e ia recolocando nas suas devidas sequências. Não alterava as palavras ou mudava uma frase de lugar. Mas cada bloco de parágrafos era uma unidade. Os papos do Pasquim eram balbúrdias em que histórias eram interrompidas e continuadas lá adiante, uma pergunta poderia ser feita no início e ser respondida somente no fim, e a montagem transformava aquilo numa coisa fluida, sem emendas ou cortes bruscos (a não ser quando fosse intencional). Quando se contava a vida de alguém, por exemplo, procurava estabelecer uma ordem cronológica. As entrevistas tinham começo, meio e fim. Isso não era regra fixa. O charme de algumas entrevistas estava em serem deliciosamente caóticas e aquela edição mantinha os vaivéns.

Eu tinha uma concepção das entrevistas do Pasquim como peças de teatro. Cada participante era como um personagem e suas perguntas & respostas eram como suas falas. As rubricas descreviam os cenários e as marcações dos personagens. (Essa concepção foi transposta, décadas depois, pelo diretor André Weller e por mim para uma série de TV, onde em cada episódio um grupo de atores se reunia num teatro para fazer a leitura de uma peça. O texto da cada peça era o texto de uma célebre entrevista do Pasquim.)

Os próprios integrantes da Turma do Pasquim tinham noção de serem personagens num panteão mitológico e reforçavam suas características pessoais em caricaturas maiores do que a vida. Nas entrevistas, então, assumiam muito esses papéis. Havia essa adoração dos ídolos, o público queria ser como o pessoal do Pasquim, queria fazer parte do Pasquim. E eu buscava muito, ao construir essas conversas no papel, que os leitores fizessem parte daquilo, que sentissem como se estivessem lá.

Passei a relatar a entrevista e o entorno da entrevista. Descrevia o ambiente, como as pessoas estavam, o que acontecia fora do alcance do microfone, as conversas paralelas. Se alguém derrubasse um copo no chão, na versão escrita derrubava esse copo no chão. As rubricas foram muito importantes nessas imersões ambientais.

Outra intenção era passar para o leitor a passagem do tempo. O tempo de leitura é diferente do tempo de realização de uma entrevista. Tentava incluir na narrativa indícios de quanto tempo havia passado desde o início da conversa. Por exemplo: uma longa entrevista de quase seis horas com Chico Buarque, do começo da tarde à noitinha, no Bar Lagoa, no Rio (e na qual contou diversos episódios inéditos de sua vida, como quando sua diversão era roubar automóveis). Intercalando com o texto da entrevista, com as letras das músicas que todos cantavam, com a contagem das bebidas entornadas, apareciam trechos assim: (Anoitece. A lagoa fede. O Cristo brilha. Pela janela as luzes da rua acendem. Os garçons viram as cadeiras para cima, ruidosamente, e passam panos nas mesas.). Chico Buarque, aliás, foi a pessoa mais entrevistada pelo Pasquim: seis vezes, em fases diferentes.

A entrevista mais famosa do Pasquim — de longe — foi feita com Leila Diniz em novembro de 1969. Num clima totalmente informal — era muito amiga da patota —, Leila, à vontade, falou de sua vida profissional e de sua vida sexual numa mesma naturalidade. Que era ela, a mulher, que escolhia os homens com quem iria transar. Que uma mulher poderia amar um homem e ir para a cama com outro. Como tinha perdido a sua virgindade. E tinha os palavrões... a mulher de então não dizia palavrão nem quando dava topada. E para Leila “o palavrão é gostoso e é uma coisa normal para mim. O palavrão virou verdade em mim”.

Ao voltar para a redação, o pessoal sabia que tinha em mãos uma entrevista sensacional, mas como publicá-la tirando os palavrões, que eram abundantes? Com os palavrões seria impossível, o governo militar censor apreenderia imediatamente a edição. Tarso teve então a ideia de substituir cada palavrão por um asterisco. A palavra original ficaria a cargo da imaginação do leitor. A conversa foi publicada com 71 asteriscos e esse recurso passou a ser utilizado para (*) por outros veículos.

É difícil descrever agora, quando os costumes mudaram tanto, o impacto que essa entrevista teve sobre a sociedade brasileira conservadora e careta da época. Seu sucesso sedimentou a passagem do Pasquim de jornal local ipanemense para um veículo influenciador em toda parte do Brasil, criando gírias, modismos e mudando comportamentos. As declarações de Leila fizeram a cabeça de muitas mulheres pelos interiores do país. Ela virou símbolo.

Houve as reações. Um escândalo. A repercussão foi tamanha que a ditadura instituiu o Decreto 1.077, pelo qual tudo que fosse publicado ou veiculado pela imprensa teria que ser aprovado (ou não) pela Censura Federal. A maldita censura prévia. O decreto ficou conhecido como Lei Leila Diniz. É interessante que a medida repressora tenha sido provocada por uma entrevista ligada aos costumes e não por uma reportagem ou artigo político. Leila foi demitida sumariamente da TV Globo, onde era uma popular mocinha das novelas. Foram duros: “Puta não trabalha aqui”. Ou: “(*) não trabalha aqui”.

A censura prévia foi dura também com as entrevistas. Se era trabalhoso produzir uma entrevista por semana, passou a ser necessário programar, fazer e editar duas ou mais por semana, para não ficar sem material, pois muitas eram censuradas na íntegra. Ou passavam pela censura tão mutiladas que perdiam o sentido. Cortavam trechos inocentes sem nenhum motivo ou explicação. Quando a censura passou a ser feita em Brasília, tendo que se mandar os textos para lá, foi pior. Levavam mais de um mês para devolver o material. Entrevistas com assuntos quentes perdiam a atualidade. As transcrições tinham que ser datilografadas em três vias (com aqueles carbonos melequentos). Se a terceira via estivesse um pouco apagada, devolviam para ser refeito. Eu tinha que esmurrar as teclas da máquina (com ódio). E se alguma coisa fosse mudada ou algo anotado numa das vias, tinha que ser feito igualzinho nas três.

A entrevista que melhor exemplifica tudo isso que estou descrevendo é uma feita com Jânio Quadros, em 1977. As edições de aniversário do jornal, ou aquelas com numeração de centenas redondas (100, 200, 300, por aí) eram especiais, com o dobro ou triplo de páginas, e para elas se buscavam entrevistas realmente importantes, e que pudessem ocupar um número ainda maior de páginas.

Muitos nomes foram discutidos para ser entrevistados para o número especial do oitavo aniversário do Pasquim e, não me lembro por que, surgiu a ideia de fazer algo histórico com Jânio Quadros. Jânio tinha sido deputado, vereador, prefeito, governador e presidente da República; e estava numa espécie de ostracismo político, ninguém falava nele naquele tempo. Acharam interessante resgatar o personagem de tantas histórias engraçadas.

As finanças do Pasquim não estavam nos melhores anos e, para potencializar ao máximo o custo de mandar uma equipe para São Paulo, foram marcadas três entrevistas. Alguém achou engraçado publicar entrevista com Jânio e na semana seguinte com a escritora Adelaide Carraro, da qual diziam ter sido amante do Jânio. A terceira marcada foi com o jurista Hélio Bicudo, que na época travava uma luta heroica contra o Esquadrão da Morte.

Incidentalmente, a entrevista com Hélio Bicudo, no primeiro dia, começou de maneira estranha, com Jaguar perguntando ao jurista como se sentia matando alguém, e coisas assim. Tinham dito ao Jaguar: “Vamos entrevistar o Bicudo, o do Esquadrão”. E ele pensou que fosse um famoso meliante! Falou para o Hélio: “O senhor há de convir que Bicudo é nome de bandido, né?”.

No dia seguinte fomos de manhã à mansão de Jânio tensos porque ele havia enfatizado que só disporia de meia hora para conversarmos. Com tanta coisa para perguntar! Nos esprememos num escritório pequeno: Jânio, Ziraldo, Jaguar, Iza Salles — uma das editoras do jornal, assinando como Iza Freaza —, eu e um fotógrafo.

Abriu-se uma garrafa de uísque... abriu-se a segunda garrafa de uísque... e a conversa de meia hora foi se prolongando pela manhã afora. Passava das 13h quando dona Eloá, sua esposa, teve que intervir encerrando a prosa porque o almoço estava esfriando (a interrupção consta do texto da entrevista). Se tivesse terminado por aí, seria uma entrevista sensacional, com revelações históricas de Jânio, como seus planos enquanto presidente de invadir a Guiana. Foi a primeira vez que Jânio contou a sua versão para sua estranha renúncia ao cargo, diante de forças ocultas, “que nem tão ocultas os eram” (o português dele era assim). As entrevistas do Pasquim tinham essa magia.

Mas um almoço tinha sido preparado para nós e ficamos para comer, e continuar bebendo, e principalmente para ligar o gravador e fazer render mais o papo (Iza publicou o cardápio na entrevista). Foi quando surgiram as histórias mais surreais do dia, como Jânio e Eloá contando como viram um disco voador, e um conhecido deles foi abduzido... isso vindo de um ex-presidente da Nação!

Começamos a ficar nervosos porque estava chegando a hora em que tínhamos marcado com Adelaide Carraro, do outro lado da cidade. Mesmo dizendo que tínhamos de sair para fazer outra entrevista, o casal insistia para que ficássemos. Como o conteúdo estava ficando cada vez melhor — e Ziraldo e Jaguar, cada vez mais trôpegos —, continuamos por ali. Iza nos bastidores, ao telefone, tentando adiar o compromisso com Adelaide, e Jânio e Eloá a toda hora querendo saber com quem era essa próxima entrevista.

Enquanto os homens tomavam um licor vespertino, Iza foi para a varanda bater papo com dona Eloá, surgindo ali uma entrevista feminina. Era a primeira vez na vida que Eloá dava declarações públicas, algo que não acontecera nem quando era a primeira-dama. O número especial de aniversário trouxe então essa entrevista bônus.

Anoitecia quando começou um embacle entre Jânio e Jaguar sobre quem seria o verdadeiro autor da célebre boutade “— Por que você bebe? — Porque é líquido. Se fosse sólido comê-lo-ia”. A frase é de Jaguar, mas muitos a atribuíam ao Jânio, devido à mesóclise rebuscada. Jânio então desafiou Jaguar a uma maratona etílica, para ver quem entendia mais de bebida alcoólica. As quantias consumidas viraram astronômicas. Jaguar o provocava: “O senhor renuncia à disputa?” “Jamais!”

Na última cena da entrevista, publicada na edição 417, vemos, tarde da noite, Jânio Quadros, ex-presidente do Brasil, e Sérgio Jaguaribe, então presidente do Pasquim, dormindo abraçados sobre o gramado da mansão. A cachorrinha Dulcineia lambe os rostos dos dois.
Isso era o Pasquim.


P.S. – Um museu sobre as entrevistas do Pasquim teria que incluir uma seção com as não entrevistas. Veio uma semana em que não havia entrevista para preencher as páginas da próxima edição. Ivan Lessa sugeriu então que entrevistassem uma feijoada. A entrevista foi feita, com detalhes, enquanto a entrevistada ia sendo comida.

A entrevista com a ex-vedete Elvira Pagã, em que ela cobriu o fotógrafo Walter Ghelman de porrada, quebrando a sua câmera. Cismou que ele era um alienígena que tinha vindo sugar a sua espiritualidade. A entrevista com Tim Maia, em que ele encasquetou que Jaguar era um delegado que tinha vindo para prendê-lo por consumo de drogas. Não nos deixou nem entrar no apartamento, se trancou no banheiro e ninguém o convencia a sair. Jaguar fez papel de delegado certa vez num filme, mas as chances de que Tim tivesse assistido a isso eram pequenas. Se fosse realmente um delegado, o som das cafungadas vindas do banheiro não melhorariam em nada a situação do cantor.

A entrevista com o poeta Mário Quintana. Alguém fazia uma pergunta e ele abanava a cabeça. E ficava em silêncio. E continuava em silêncio. Quando o constrangimento ficava insuportável, alguém fazia outra pergunta. Quintana dizia uma palavra, ou duas palavras, ou uma frase. E ficava em silêncio. A entrevista foi publicada assim, com longos espaços em branco, pois, como disse Ivan Lessa: “Os silêncios de Mário Quintana são mais eloquentes do que muitos poemas”.

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