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O Bolina – provocações da Belle Époque

por Irineu E. Jones Corrêa (FBN), Luzia Ribeiro de Carvalho (IC Faperj – bolsista)
O bolina é um personagem da belle-époque brasileira, frequentador dos bonds, trens, restaurantes e confeitarias da cidade. Faria parte de um grupo tão coeso que poderia ser considerado membro de um club. Onde houvesse uma mulher bonita, lá estava ele, pronto para exercer sua arte de sedução. Nas páginas do jornal satírico O Rio-Nú, o personagem era onipresente, como substantivo e como verbo. Bolinar seria, inclusive, uma arte, de interesse das mulheres, afirma uma charge. Foi cantado em verso, num poema da segunda página da edição de 18 de março de 1899 daquele periódico. Foi cantado em prosa, dando nome ao folhetim publicado ao pé da página do jornal ao longo do mesmo ano. Foi, finalmente, um periódico anunciado em espaço especial, para ser lançado no carnaval de 1900, com ilustração de Julião, o famoso ilustrador e chargista Julião Machado (1863-1930) e texto de um certo Orlando provavelmente o poeta simbolista Orlando Teixeira (1874-1902) – uma publicação que faria tremer as mulheres, “muito para acima das ligas”, avisa o anúncio, num tom misógino comum na época.

O Bolina é um periódico manuscrito. O anúncio no jornal impresso avisou que ele começou a ser publicado nas primeiras semanas do ano, mas o número disponível no acervo da Biblioteca Nacional é datado de julho de 1900. Não há informação sobre a semana ou o dia do mês em que esta edição teria circulado. Está montado em duas folhas dobradas, ou seja, é um bifólio de medidas 24 x 31cm. A ação do tempo o deteriorou, suas bordas estão rasgadas e danificadas. Uma dobradura parece ser responsável pelo rasgão que está quase dividindo a primeira folha ao meio. Nenhuma dessas marcas, entretanto, prejudicou seu conteúdo. Ele faz parte da coleção Belarmino Carneiro, doada em 1906, a mesma de outro título manuscrito, A Revista do Rio, também integrante desse dossiê.

É uma publicação de concepção absolutamente moderna. Composta essencialmente por imagens, os poucos textos existentes se integram a elas, são títulos ou frases curtas, como se fossem letreiros de affiches. Os textos têm as letras ornamentadas. As imagens são cuidadosamente trabalhadas, no estilo art-nouveau, desenhadas e pintadas por aguadas de nanquim e de aquarela. O papel é de pasta de madeira, material de uso comum na época, por ser mais barato. É um documento classificado como publicação seriada, guardada na coleção de periódico, mas poderia estar na coleção iconográfica da Biblioteca Nacional.

A primeira página é trabalhada ao gosto da belle époque carioca, de marcada influência francesa. Graficamente ela é dividida em dois volumes, separados por uma vinheta quebrada em dois planos. Um deles é formado por uma linha de lanternas de inspiração oriental japonesa, o outro por traços paralelos e manchas, sugerindo um pedaço de moldura. Na metade superior, o nome do periódico é o principal elemento, aparecendo ornamentado com motivos e traços geométricos. As letras vazadas são ricamente preenchidas obedecendo a um padrão linear. O mesmo acontece com o ano e o mês da publicação. Em letras simples, o subtítulo, “O órgão dos ditos”. Dois círculos contêm as efígies de meio corpo de uma mulher e de um homem completam a decoração, funcionando como se fossem fichas ou selos.

No volume inferior o destaque é dado a um desenho de meio busto de uma mulher, com o seio nu. Seria perfil de uma coquette, num cenário que se completa com uma garrafa de champanhe, flagrada no preciso momento em que estoura. A inscrição no rótulo traz o nome Clicot, alusão à famosa marca Veuve Clicquot Ponsardin, fabricada e degustada desde o século XVIII. Bebida, mulher desnuda e motivos orientais compõem uma imagem extravagante e erotizada, precisa na apresentação do ambiente em que o bolina circula – sujeito devasso, enredado nos prazeres mundanos. O título da cena "Amor, Fichas e Chopps" não deixa dúvidas sobre o que está em foco, a libertinagem. Faz, ainda, um curioso diálogo com o folhetim Mulheres, Teatros e Chopps – romance realista, publicado n’O Rio Nú, com a assinatura de Ludoro, pseudônimo de Luiz do Rosário, redator da Folha da Tarde, diário importante da capital federal. A mancha gráfica da página é limitada por uma linha de traço duplo, decorada nas margens por folhas e ramos, reforçando a ideia de quadro e moldura. O conjunto faz lembrar personagens e flagrantes de bas-fond parisiense, como aquelas imortalizadas por Toulouse-Lautrec (1864-1901) em suas charges e cartazes. Embora as assinaturas das ilustrações do jornalzinho não sejam reconhecidas entre aquelas dos artistas da época, o traço é do português Julião Machado, como avisara o anúncio de O Rio Nú. Se não for dele, sua influência é evidente.

A segunda página apresenta o “Pessoal da Activa”, talvez uma referência aos responsáveis pelo expediente, talvez uma alusão ao grupo inspirador da publicação. A ornamentação é mais econômica que a da página anterior, mas é igualmente elaborada. Na diagonal, cruzando a mancha gráfica, uma faixa escrita “Matricula” – grafada assim, sem acento na proparoxítona – divide a página em duas partes. No lado direito, uma lista com cinco “matriculados”, cada um deles com a inicial do primeiro nome e o segundo por extenso. No lado esquerdo, fichas, parte delas somente com nomes, talvez outros bolinas. Apenas três fichas têm textos, uma endereçada a Josepha, cuja assinatura aparece na página seguinte, duas a Margarida. São bilhetes de anotações incompletas, pois semicobertos uns pelos outros ou pela faixa diagonal, criando um ar de segredo, que provoca o leitor curioso. Dentre os nomes relacionados, um chama especial atenção, F. Pacheco, que poderia ser o poeta Félix Pacheco, que se tornaria uma figura importante nas letras e na política da capital federal, sendo eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 1912. Naquele momento, entretanto, era um jovem de 21 anos, apaixonado pela obra de Charles Baudelaire (1821-1867), de comportamento excêntrico e escandaloso, segundo o cronista Luiz Edmundo. Esta página dois é a que contém mais texto no jornalzinho.

A “Galeria dos Perigosos” é o tema da terceira página, que tem como imagem principal uma caricatura. É um perfil masculino com cabelos claros e encaracolados, monóculo, bigode de pontas viradas e cavanhaque, colarinho social e gola de paletó. Por detrás da cabeça, aparece um lápis, alegoria indicativa de que seria um escritor. Os traços são semelhantes ao da efígie masculina da primeira página, tendo como diferença importante apenas os cabelos negros daquele.

Acima da caricatura, uma luva, uma bengala e uma polaina compõem o desenho, reforçando o imaginário boêmio e devasso do tipo bolina e o aproximando das referências identificadas ao dandy, o grande personagem finessecular. Resta uma dúvida não esclarecida, que fica para o leitor atual – se esta fosse a página em que se apresentavam as personalidades mais importantes do club, quem seria o ilustre personagem – próprio Orlando Teixeira, o jovem Olavo Bilac, associado constante de Julião Machado, algum outro integrante do grupo?

A quarta e última página apresenta um anúncio sobre a cura radical para a “neurastenia do útero”. Na passagem do século, neurastenia e histeria se associavam e se confundiam como doença do corpo feminino – a etimologia da palavra histeria se refere ao útero, então seria a doença do útero. Era identificada como um tipo de distúrbio psicológico normalmente causado por ansiedade intensa e estresse emocional, causadores de fadiga mental e física. O assunto era uma das grandes preocupações da medicina da época, em especial do médico francês Jean-Martin Charcot (1825-1893) e de seu discípulo judeu de origem tcheca, Sigmund Freud (1856-1939), principal nome do método psicanalítico que, justamente naquele 1900, lançava aquela obra que o tornaria definitivamente famoso, A interpretação dos sonhos. Nesse sentido, os jornais da época associavam a neurastenia ao ciúme, como no artigo “O ciúme, sua natureza, causa therapeutica e hygiene” publicado na Revista da Semana em 24 de junho de 1900.

O reclame, entretanto, longe de conhecer os ilustres médicos e suas importantes preocupações, atuando estritamente no interesse das sensações imediatas dos bolinas e dândis finisseculares, mostra o desenho de um frasco de óleo de mindobi, como era conhecido popularmente o amendoim, e uma embalagem de licor de mostarda do Dr. Deiró. As duas drogas são apresentadas como as maravilhas da Pharmacia Venus, nome tomado à antiga deusa do amor consumado. A ilustração acompanha o estilo da página dois: discreto e limpo. Um retângulo em diagonal divide o espaço da folha em três partes. O espaço central, formado pelo desenho da embalagem do licor, o superior, ocupado pelo dístico “Maravilha” em letras vazadas, preenchidas com cor, e o espaço inferior, ocupado pelo desenho do frasco do óleo. A base da página traz o nome da farmácia, escrito em letras de traço inglês, emoldurado por um retângulo de bordas amarelas.

No conjunto, O Bolina é um autêntico documento da cena carioca de 1900, um tesouro do acervo da Biblioteca Nacional brasileira.

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