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Periódicos & Literatura

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O Tiro: ano 1, número 1

por Irineu E. Jones Corrêa (FBN)
O Tiro, publicação quinzenal, foi editado em Santo Antônio dos Tiros, Minas Gerais. A Biblioteca Nacional guarda o exemplar correspondente ao ano 1, n. 1. A publicação, datada de 30 de junho de 1896, encontra-se muito bem conservada. Sendo composta em quatro páginas numeradas, com título, localidade, data da edição, ano, número e responsabilidade editorial no alto da página, amarrados em seus espaços por traços, os chamados fios de balanço, na linguagem dos gráficos. Solução semelhante é encontrada para a separação do cabeçalho das notícias e dos textos literários. O corpo do texto é dividido em três colunas, separadas por filetes simples. As matérias recebem títulos em letras diferenciadas daquelas usadas nos textos, que por sua vez, são regulares em todo o periódico, com poucas rasuras e correções. As seções são separadas por vinhetas de motivos florais e geométricos, nas duas primeiras páginas. Nas duas últimas, as vinhetas de separação são compostas por linhas duplas. O uso de letras de várias formas e tamanhos permite diferenciar títulos, textos e assuntos. Estes recursos, somados a uma cuidadosa imitação dos tipos de impressão no trabalho de desenho das letras, fazem com que a folha manuscrita tenha a aparência de um jornal impresso. Para um olhar menos atento, a possibilidade de se tomar uma técnica por outra não é impossível. Suas medidas são 32,5 x 22,5 cm.

Para além do testemunho da influência dos modelos impressos nos periódicos manuscritos, o pequeno jornal é um documento que permite ao leitor a oportunidade de vislumbrar um momento das relações sociais da pequena povoação encravada nos limites do sertão centro-oeste mineiro, naquele tempo ainda não totalmente desbravado.

Os cronistas atuais dão conta da fundação do arraial nos primeiros anos do século XIX, por Antônio de Morais Pessoa que recebeu uma sesmaria, nos confins do rio São Francisco, segundo anotações cartoriais de 1802. O nome do lugar, Santo Antônio dos Tiros, estaria ligado a um episódio de troca de tiros entre garimpeiros de diamantes, atividade proibida na época, contra soldados do quartel que existia na região. Em 1867, o arraial passou a paróquia, situação que se mantinha no momento em que o periódico circula.

O texto de apresentação do periódico faz uma alusão irônica ao modelo gráfico utilizado, prevenindo a seus leitores que “na arena dos filhos de Gutenberg... dar[ia] seu próprio Tiro”, embora empunhando as armas de que dispunha – e as empunharia “mal”, afirma. Sua palavra de ordem seria a esperança aristotélica – “A esperança é o sonho do homem acordado”! Em seguida, informa o número de óbitos e nascimentos na capital federal, no mês de maio – a edição é do mês de junho! Prossegue com piadas ligeiras e máximas moralizantes e, já na página dois, reproduz um idílio, que vai assinado como da lavra do escritor Catulle Mendés (1841-1909), autor francês de ascendência portuguesa, muito afamado no Brasil. Em sequência, um credo ao amor ocupa o resto da segunda coluna, poesias simples que nos dão conta de que a literatura por mais simplória que pudesse ser, era importante para a gente daquele lugar. A terceira coluna apresenta notícias sobre um linchamento do assassino de um comendador, ocorrido em lugarejo próximo a Manhuaçu, e uma reflexão moralizante. A página três é ocupada pelo noticiário: comerciantes que partem para o Rio de Janeiro, o dentista e o visitante que chegaram, a professora que foi nomeada, a saúde do morador amigo, a colheita que foi boa, o cidadão que partirá – uma mostra da circulação das gentes da pequena cidade pela região e até a capital. Depois aparecem um poema e um acróstico. A última página é composta por anúncios: do hotel, da casa de negócios e dos serviços de pintor e outros.

Um dos anúncios chama a atenção, pois se refere à oficina da própria folha manuscrita, que oferece serviços de arte tipográfica. Uma ironia, uma brincadeira com o leitor, ligada ao texto de apresentação, que pretendeu articular o manuscrito com o mundo de Gutenberg? Sem que seja possível uma resposta precisa, fica registrada a filiação do jornaleco à perspectiva jocosséria, presença constante e marcante em tantos pequenos jornais impressos no século XIX.

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