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Tico-Tico – uma discreta ousadia manuscrita

por Irineu E. Jones Corrêa (FBN), Luzia Ribeiro de Carvalho (IC Faperj – bolsista)
O Tico-Tico é um pequeno periódico pertencente ao acervo de Manuscritos, da Biblioteca Nacional. Ele faz parte da coleção doada por Hugo Leal, em 1937. O exemplar disponível corresponde a edição nº 3, datada de 12 de junho. Não há indicação precisa do ano da edição, porém, pela matéria inicial, é possível indicar que foi escrita após a inauguração da linha de trem do Corcovado, ocorrida em outubro de 1884.

A edição é composta em quatro páginas, com título, data da edição, número e nome do redator no alto da primeira página – Guidam é o nome dele, provavelmente um pseudônimo. Não obedece às práticas comuns entre os periódicos manuscritos de reproduzir a composição gráfica dos periódicos impressos. A habitual divisão em colunas acontece apenas nas duas últimas páginas.

As duas primeiras páginas são escritas e desenhadas à lápis. A primeira matéria é um elogio ao ares puros do passeio ao Corcovado. Um amigo do redator, o bacharel Si Capvir, alcunha que, se não for pura invencionice, mais parece uma corruptela de algum personagem. Seja quem for, o tal sujeito terá retornado de lá com uma aparência tranquila e satisfeita. A matéria é ilustrada com um desenho do trenzinho. A segunda matéria é sobre política, tratando da missão diplomática do Conselheiro Lafayette no Chile, país vencedor da Guerra do Pacífico (1879-1883), contra Peru e Bolívia. Anexando territórios do adversário, os chilenos contrariavam interesses europeus vinculados àquelas áreas. A atuação de Lafayette Rodrigues Pereira (1834-1917) conseguiu equilibrar as demandas. O sucesso da missão não impediu a crítica do jornalzinho. Uma charge destaca, debochando, os maneirismos da diplomacia levada adiante pelo Conselheiro.

A terceira e quarta páginas são ocupadas pela seção “Couzinhas”. Ela começa com uma anedota sobre as cocottes francesas. Em seguida, aparece um diálogo em torno de algumas doenças e sintomas, como dores de cabeça, fígado doente, que poderiam ser curados com um “emplastro de... 3 pernas”, aparentemente uma referência obscena. O diálogo é mantido diretamente com “Seu Coelho”, numa provável alusão ao senador do Império, Coelho de Almeida, mas deixando nas entrelinhas uma metáfora para falar de alguma encrenca em que o político estaria envolvido. Seria isso o motivo do muxoxo da cocote da anedota anterior? Uma vez que o coelho é também bicho conhecido por sua disposição sexual, talvez esteja na indicação do nome uma certa sugestão quanto ao caso envolver querelas sexuais.

Na última página aparecem alguns versos do que seria uma cançoneta cujo autor está com o nome ilegível – a ação do tempo sobre a tinta da escrita mantém oculta a assinatura. Pode-se perceber o tom popularesco, talvez alusiva a alguma moralidade, a considerar a polissemia de algumas palavras pinçadas nela. Araúna, que aparece no refrão, remete a um personagem bíblico, do ciclo do rei Davi, governante significante para devassidão, nomeia uma das figuras do reisado, rito popular que incorpora o mito dos reis magos a danças de origem africana, juntando raízes católicas fundantes com marcações ditas pagãs. Seria, também, sinônimo para graúna, pássaro brasileiro de canto belo, sensual e, para alguns, agourento. Nos versos, há, também, uma mariposa, inseto atraído pela luz e metáfora para relações efêmeras, e a expressão que parece “oxe”, significando tanto o machado de Xangô, deus da mitologia africana, quanto expressão de espanto. Naquela penúltima hipótese, a referência seria uma ousadia do jornalzinho, pois as religiões de matriz africana eram fortemente marginalizadas no período.

Ao leitor, fica a recomendação de apreciar as imagens das páginas do jornalzinho, com o cuidado de anotar que, neste início de 2021, são três imagens das quatro páginas, sendo que a quarta delas está exposta junto com a página dois.

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