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Projeto Resgate Barão do Rio Branco

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Ceará

por Gisafran Nazareno Mota Jucá
Apresentação

Se fizermos um levantamento das Teses, Dissertações ou mesmo dos Projetos de Pesquisa Histórica, no Ceará, logo deparamo-nos com o interesse centrado nas temáticas relativas ao século passado, aos anos pós-30 e até mesmo às últimas décadas, mas pouco pode ser associado ao período colonial1. As explicações para justificar tais opções, além da existência de poucos especialistas em História Colonial, recaem no velho argumento: o acervo básico do período colonial permanece em sua maior parte nos Arquivos Histórico Ultramarino e da Torre do Tombo, em Lisboa.

O impulso pioneiro voltado à compreensão da História do Ceará Colônia resultou do paciente trabalho do Barão de Studart, "para o que precisei despender longo e precioso tempo e não pequeno cabedal...", conforme ressalta na sua conhecida obra2. O objetivo básico do autor era lançar uma obra do Acervo Lusitano, ao indicar e comentar o conteúdo dos documentos oficiais, relativos à colonização.

Entretanto, o trabalho do Barão de Studart, apesar de significativo à História do Ceará, atendia com limitações aos interessados, uma vez que apenas parte da documentação foi copiada, impedindo, assim, uma maior aproximação dos pesquisadores com o rico acervo existente em Lisboa.

Somente nos anos setenta uma nova tentativa daria continuidade ao levantamento inicial, quando a Professora Maria Célia de Araújo Guabiraba, então Professora do Curso de Licenciatura em História, da Universidade Federal do Ceará, com o apoio da Fundação Calouste Gulbekian, Lisboa, elaborou um inventário da documentação relativa à Capitania do Ceará, existente no Arquivo Histórico Ultramarino. (Quadro I). Pena que o referido trabalho não tenha sido publicado, limitando-se somente à distribuição de algumas cópias a determinadas Instituições, como o próprio Arquivo Histórico Ultramarino e a Biblioteca da Fundação Calouste Gulbekian, em Lisboa, e a Biblioteca do Centro de Humanidades da Universidade Federal do Ceará.

Em relação aos documentos referentes à Capitania do Ceará foi decisivo o empenho do Senador pelo Ceará, Dr. Lúcio Alcântara, representante do Senado na Comissão Nacional para as Comemorações do Descobrimento do Brasil, que conseguiu os recursos para a microfilmagem dos documentos avulsos da Capitania do Ceará. Conforme se observa no quadro I, os documentos inventariados pela Prof.a Maria Célia de Araújo Guabiraba, em princípios, dos anos 70, encontravam-se em 6 caixas e 4 maços, no Arquivo Histórico Ultramarino e hoje localizam-se em 21 caixas. Com o encargo de confrontar os verbetes produzidos pela referida Professora com os originais nas capilhas e caixas do Arquivo Histórico Ultramarino, fomos indicados pelo Núcleo de Documentação Cultural do Departamento de História da UFC, para efetuar tal atividade no período de março a maio de 1997.

E bem verdade que a nossa permanência em Lisboa foi muito curta: apenas sessenta dias para efetuar uma revisão e complementaçâo do Inventário sobre a Capitania do Ceará. Além disso, o horário de funcionamento do Arquivo Histórico Ultramarino restringe-se ao período de 13 às 19 horas, dificultando ainda mais uma adequação de tempo à concretização da referida proposta. Contudo, merecem destaque o apoio e a atenção que nos foram dirigidos pela Direção e Funcionários do referido Arquivo 4.

No tocante ao número de dias reservados ao trabalho proposto, o rendimento em cada um deles tornava-se diferente, dependendo sobretudo do tipo de grafia dos documentos consultados. Portanto, não havia uma produção semelhante na consulta a cada caixa ou mesmo capilha. Enquanto em um dia pude concluir a consulta a duas ou mesmo até três caixas, em outras permaneci por mais de um dia na consulta de apenas uma.

Além disso, alguns documentos contidos em uma capilha não estavam colocados em ordem cronológica, resultando, assim, uma demora maior na ordenação de determinadas capilhas.

Outra dificuldade sentida decorreu da dificuldade de constatar se os documentos, que estavam sendo consultados, já haviam sido cadastrados pela Professora Maria Célia de Araújo Guabiraba. (Cf. Quadros 1 e 2).

Justifica-se tal questão, em virtude da ordenação das novas caixas não corresponderem exatamente à divisão anteriormente efetuada. Por isso, em caso de dúvida, muitas vezes decidimos fazer um novo resumo dos documentos consultados ao invés de ter de procurar nas 281 páginas do trabalho da Prof." Célia, sem um indicativo seguro de localização, em virtude da ordenação diferente das duas organizações efetuadas com a documentação disponível.5

Considerando o total das caixas consultadas, a que mais tempo exigiu foi a última, a de número 21, porque parte das capilhas, nela existentes, constituíam documentos sem datação. Com o intuito de situá-los cronologicamente, uma vez que se tratava de documentos oficiais, partimos dos nomes dos signatários e/ou destinatários, procurando descobrir se ocupavam alguma função pública, como por exemplo, Capitão-Mor, Ouvidor ou Secretário de Estado. O resultado de tal medida foi compensador, servindo de marco aproximado de datação do documento em análise.6

Desse modo, conseguimos situar alguns dos Capitães-mor, cronologicamente, transferindo a documentação, por eles assinada, para outras caixas.7

 

Quadro 1 - Caixas e Capilhas da Documentação Referente à Capitania do Ceará, Consultadas pela Professora Maria Célia de Araújo Guabiraba Quadro 1 - Caixas e Capilhas da Documentação Referente à Capitania do Ceará, Consultadas pela Professora Maria Célia de Araújo Guabiraba

A partir de 1996, tendo em vista as comemorações do V Centenário do Descobrimento do Brasil, no ano 2000, o Governo Federal do Brasil, através de alguns Ministérios e principalmente do Ministério da Cultura, com o apoio dos Governos Estadual e Municipal, além da participação de Instituições Públicas, como Universidades e Fundações, lançou o Projeto Resgate, que tinha como objetivo principal realizar a microfilmagem dos documentos sobre o Brasil Colônia, considerados patrimônio do dois países.

O Projeto Resgate conta com o apoio do Governo Português, em especial através da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses e da Fundação Calouste Gulbenkian. Por outro lado, a Comissão Bilateral para as Comemorações do V Centenário da Viagem de Pedro Alvares Cabral (formada pelas Comissões Nacionais Portuguesa e Brasileira) credenciou o Projeto Resgate como prioritário para a preservação do patrimônio documental comum.

Os recursos obtidos não foram originários apenas do Ministério da Cultura, mas de diversas fontes como o Conselho Nacional de Pesquisas - CNPq, do Ministério da Ciência e Tecnologia, de Governos Estaduais ou mesmo das Universidades Federais, Estaduais e Privadas que liberam os pesquisadores selecionados a fim de realizarem a catalogação documental em Lisboa. A Coordenação Técnica do Projeto Resgate está a cargo da Dra. Esther Caldas Bertoletti - Técnica Consultora em Documentação da Fundação Biblioteca Nacional, à disposição da Assessoria Especial do Gabinete do Ministro da Cultura.

O Coordenador Acadêmico dos projetos iniciais que contemplaram os documentos das Capitanias de Minas Gerais, Maranhão, Pará e Rio Negro, é Prof. Dr. Caio César Boschi da PUC/MINAS e da UFMG.

Os trabalhos preliminares relativos à Capitania de Pernambuco, de identificação, datação e ordenação cronológica, além da numeração necessária e a instalação definitiva das unidades, onde seriam colocados os documentos, em capilhas e caixas, ficaram a cargo de dois técnicos, historiadores e arquivistas, funcionários públicos do Estado de Pernambuco e da Prefeitura de Olinda, Prof. Hilso Leal da Rosa e Professora Aneide Santana, merecendo ressaltar o significativo acervo referente à Pernambuco, uma vez que outras Capitanias, como a do Rio Grande do Norte e do Ceará, lhe eram subordinadas.

Quanto às Capitanias da Bahia e de Sergipe foi elaborado um projeto conjunto, com o apoio dos dois Governos e, a partir de janeiro de 1997, o Prof. Lourival Santos, Chefe do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe, iniciou o confronto e as correções no Inventário anteriormente realizado pela Prof." Maria Thetis Nunes dos documentos da Capitania de Sergipe, a fim de tornar possível a microfilmagem dos mesmos. A Professora Avanete Pereira Sousa e o Prof. Onildo Reis David foram escolhidos pelo Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia para, no período de um ano, elaborar os verbetes contendo os resumos dos documentos baianos, que não foram inventariados por Castro e Almeida. A Professora Neuza Rodrigues Esteves, antiga funcionária do Arquivo Público da Bahia e responsável pelo Arquivo Histórico da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, com experiência de pesquisa no Arquivo Histórico Ultramarino, também fez parte da equipe responsável pelo confronto e indicação da nova instalação de
capilhas e caixas da documentação existente sobre a Bahia.

O período de minha permanência em Lisboa, de março a maio de 1997, tornou-se exíguo para que pudesse ser efetuada uma leitura atenta e paciente de toda a documentação disponível. A saída encontrada, para evitar a morosidade na consulta, consistiu em separar os documentos de difícil leitura, deixando-os separados para uma revisão ao final da classificação. Desse modo, tornou-se viável reexaminá-los, após o término da primeira consulta das 21 Caixas documentais, relativas à Capitania do Ceará, propiciando, assim, a reclassificação almejada. (Quadro 2)8

Quadro 2 - Caixas da Documentação, por mim consultada no Arquivo Histórico Ultramarino Quadro 2 - Caixas da Documentação, por mim consultada no Arquivo Histórico Ultramarino

Os dois meses reservados ao trabalho proposto nos permitiram organizar, cronologicamente, a documentação disponível, ficando a redação final do trabalho, sobretudo a digitação, para serem realizadas em Fortaleza, após o nosso regresso. Se o período de permanência em Lisboa tivesse sido maior, com certeza o trabalho teria sido realizado de uma melhor forma, inclusive em caso de dúvidas ou revisões facilmente poder-se-ia recorrer aos originais da documentação do Arquivo Histórico Ultramarino. Entretanto, não adianta lamentar os empecilhos surgidos, mas reconhecer o mérito da realização de uma atividade significativa, pois atendeu ao objetivo básico do Projeto Resgate, que almejava trazer ao Brasil as cópias dos documentos referentes à Capitania do Ceará.

A tarefa que nos foi reservada, ou seja, a revisão do trabalho da Professora Maria Célia de Araújo Guabiraba, na realidade não constituiu uma simples revisão, numa leitura paleográfica, com a identificação e organização de documentos, que haviam sido, com o passar do tempo, deslocados ou transferidos para outras seqüências. Após o nosso regresso ao Brasil, passamos mais quatro meses na revisão e digitação final do trabalho. A primeira vista pode parecer paradoxal, essa segunda fase do trabalho superar a primeira no tempo a ela reservado. Entretanto, as razões que explicam os motivos da demora são perfeitamente justificáveis, considerando as condições de trabalho no âmbito do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará. O nosso afastamento da Instituição, em pleno período letivo, não nos desobrigou das
atividades didáticas. Assim, durante os primeiros dias de março, lecionamos normalmente e, durante o período de permanência em Lisboa, outro colega assumiu o horário reservado às disciplinas por nós ministradas e, ao regressarmos, preenchemos o tempo que lhe fora cedido, a fim de repor as aulas a serem ministradas. Na verdade, o restrito número de Professores do Departamento de História sempre dificulta o andamento das atividades programadas, sobretudo quando se busca associar a pesquisa ao ensino.

Após a organização do material coletado e a elaboração de ficha síntese acerca de cada capilha consultada, tomando como modelo o trabalho da Prof.a Célia Guabiraba, remetemos o trabalho a Lisboa, onde a revisão final foi realizada pela pesquisadora brasileira Avanete Pereira Sousa, especialista em História Colonial, com Mestrado na Universidade Federal da Bahia.'' Para uma maior divulgação dos informes básicos contidos na documentação organizada foi elaborado o presente Catálogo, contendo além da síntese dos documentos um índice geral, a fim de melhor orientar os pesquisadores, publicado pela Fundação Demócrito Rocha e com o apoio do Instituto do Ceará.

Os CD-ROMs e os microfilmes a serem distribuídos entre algumas Instituições de Pesquisa, no Brasil, como o Arquivo Nacional, do Brasil no Rio de Janeiro, o Arquivo Público do Estado do Ceará, o Arquivo do Núcleo de Documentação Cultural da UFC com certeza facilitarão o acesso dos pesquisadores ao acervo da documentação localizada no Arquivo Histórico Ultramarino.

Na trilha da documentação consultada

Ao manusear os documentos avulsos referentes à Capitania do Ceará, existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, à primeira vista podem parecer pouco significativos, pois muitas vezes restringem-se ao atendimento das relações burocráticas entre um Capitão-Mor ou um Ouvidor e as autoridades lusitanas, a fim de garantir a subordinação da Capitania às exigências do Sistema Colonial. Entretanto, no decorrer da consulta em diferentes caixas, percebe-se a riqueza dos informes ali contidos, pois revelam não só o andamento de uma precária administração, mas também deixam claras as diretrizes e as contradições da colonização, presentes nas relações vivenciadas por diferentes setores da sociedade existente, incluindo-se, assim, o confronto entre colonizador e colonizado. Desse modo, percebe-se o teor concreto do relacionamento entre os funcionários da Corte e os habitantes nativos da região, permitindo visualizar o polêmico processo civilizatório.

Nos primeiros documentos, relacionados à atuação do Capitão-Mor Martim Soares Moreno, observa-se razão da escolha do local para servir de Fortaleza, na Capitania do Ceará, pois o que interessava era a "... defesa dos ataques dos holandeses e franceses, a escala dos navios que do estado do Brasil vão ao do Maranhão.'"0 Os pedidos de ornamentos destinados à celebração dos ofícios divinos ou mesmo da concessão de doze léguas de terra na Capitania do Ceará bem revelam os propósitos da ocupação da área escolhida como núcleo de defesa. E desde o princípio, fica clara a dependência da Capitania, pois o Capitão-Mor informa "sobre a falta de pagamento de soldos aos soldados e dificuldades por que passa o Ceará, uma vez que os governantes do estado do Brasil não querem dar cumprimento às provisões reais mandando gente e
soldados.""

Diversos são os informes acerca dos índios existentes na Capitania. Apesar do decantado ideal de como colonizar os subalternos, respeitando os padrões da moral católica, constata-se que a prática cotidiana diferia muitas vezes do discurso oficial. Assim, uma das primeiras preocupações do Padre João Duarte do Sacramento consistia em que "... os soldados sejam proibidos de levar índias para os quartéis e não se permitia a venda de vinho e aguardente pelos sertões e aldeias dos índios."12 Todavia, em 1703, Cristovão Soares Reimão, da Ribeira do Jaguaribe, em carta ao Rei informava que, na Capitania do Ceará, "estão vários moradores com índias furtadas a seus maridos, há quatro, dez e quinze anos."

Desde o início da ocupação do espaço cearense havia por parte dos administradores da Capitania uma preocupação constante com a falta de sacerdotes e Igrejas, não apenas para atender os colonizadores, mas também se insistia "a respeito da falta de sacerdotes... para batizar e instruir os gentios"13 Apesar da ação dos Missionários muitas vezes fugir aos limites estabelecidos pelas autoridades lusitanas, na assistência que devia ser prestada aos índios, a subordinação dos religiosos ao poder administrativo torna-se bem explícito, pois qualquer movimento em direção às missões deveria ter a autorização oficial. A aldeia dos tapuias e dos Índios Tabajaras, na Serra da Ibiapaba, ficava sujeita a uma vistoria periódica dos responsáveis pelo sistema administrativo da Capitania.

Um tema bastante comentado em relação à colonização, em diferentes pontos do Brasil, também podia ser observado no Ceará. Trata-se do restrito número de mulheres existentes na Capitania, o que provocava uma certa "... vexação por que passam alguns índios da Capitania do Ceará pelo fato de certos moradores terem furtado suas mulheres e não as quererem devolver."14

Entretanto, a relação do indígena com o colonizador nem sempre se processava de forma submissa, pois observa-se nas Cartas encaminhadas ao Rei a reclamação contra o prejuízo causado pelos índios em relação ao gado criado, em virtude dos furtos observados.

Apesar dos missionários ocuparem uma função de destaque no relacionamento com os índios, havia um acompanhamento contínuo das autoridades estabelecidas, a fim de "... os missionários não ocuparem nos serviços mais que a metade dos índios capazes para que possam tratar de suas lavouras e evitar a fome geral; e que nenhum passageiro tome agasalho em casa particular dos índios, para assim se evitar as insolências praticadas."15

Contudo, é através das cartas dos Missionários que fica clara a perseguição aos índios do Ceará, do Piauí e do Rio Grande do Norte. E os conflitos com os indígenas não se restringiam à área litorânea. Há referências claras aos litígios travados na região interiorana, como a da Vila do Jaguaribe. Mesmo nas regiões de conflito entre famílias, como ocorreu com os Feitosas e os Montes, nos Inhamuns, há referências a utilização dos indígenas de acordo com os interesses dos que controlavam o poder estabelecido. No seio do próprio clero havia disputas em relação ao trato com os índios, como ocorreu entre os Jesuístas e Padre João de Matos Monteiro na Missão da Ibiapaba.16 As terras ocupadas pelos índios na Serra da Ibiapaba tinham como limites da ladeira da Uruoca até a localidade denominada ltapiúna. Os limites estabelecidos resultavam de uma doação, feita por D. João V, em 5 de dezembro de 1720. A citada Missão representava "... a paz e o sossego das duas Capitanias do Piauí e Ceará e os índios eram considerados "... bons soldados que Va. Magde. Tem mto Promptos pa tudo, sem com elles gastar nada... "17. Todavia, nem sempre a submissão ocorria passivamente. Em 1753, o Capitão-Mor Luís Quaresma Dourado notificava o Rei sobre as Missões da Serra da Ibiapaba, acusando os nativos de destruírem benfeitorias efetuadas por moradores, que habitavam nas proximidades das Missões. E o motivo da ação indígena era clara: "Os índios diziam que a terra era deles."18

Outro aspecto interessante diz respeito à utilização da mão-de-obra indígena fora do âmbito das Missões. Em 1746, por exemplo, o Ouvidor do Ceará, Manuel José Faria, pedia informações sobre como se deve pagar aos índios pelo trabalho que viessem a efetuar."19

Apesar da relação conflituosa entre brancos e índios, havia referências à doação de terras aos índios da Ibiapaba, feita pelo Rei D. João V e também certidão do número de índios existentes na referida Missão, conforme o atestam documentos sobre o Visitador do Real Hospício do Ceará.-20

Até março de 1786 ainda se percebe nas informações encaminhadas à Rainha, D. Maria I, pelo Ouvidor Manuel de Magalhães Pinto e Avelar, a situação dos índios da Capitania, considerados vítimas da exploração "dos diretores das vilas, dos europeus, dos ouvidores e mesmo dos governadores..." Nesse mesmo ano há referências sobre as condições de vida dos índios na Vila de Arronches e a respeito do tráfico e comércio de crianças indígenas.21

Mesmo com a preocupação constante das autoridades com o estabelecimento da área ocupada pelos índios, na documentação do final do século XVIII há indícios sobre a fuga de índios das localidades, onde se encontravam aldeados. E até no início do século XIX ainda constituía preocupação do Príncipe Regente obter informações do Governador da Capitania do Ceará "sobre os progressos da civilização dos índios da capitania."22

Entretanto, se considerarmos as diretrizes do processo de colonização, sempre presentes nos documentos oficiais, logo se percebe que não eram apenas os índios os responsáveis pela ameaça à ordem instituída. Desde o princípio da ocupação da Capitania, o nível de formação dos seus moradores acarretava sérias preocupações às autoridades lusitanas. Em Dezembro de 1749, a morte do Capitão-Mor, Francisco de Miranda Costa, levou o Conselho Ultramarino a reconhecer que "a maioria dos habitantes é formada por criminosos. Nem todos os homens têm capacidade para ocupar aquele governo."23

Na segunda metade do século XVIII, grande parte das informações encaminhadas a Lisboa diziam respeito à situação econômica da Capitania. O comércio da carne seca, dos couros e das solas, além das referências ao uso da aguardente e à abertura de estradas faziam parte do conteúdo da documentação encaminhada à Rainha, D. Maria I. E foi sobretudo no final desse século que a crise do comércio da carne de charque se acentuou. A elevação no preço da carne do gado repercutia nas finanças da Capitania, pois fazia diminuir o índice de impostos anteriormente arrecadados. A falta de capital já não era preocupação exclusiva de uma localidade interiorana, mas também afetava as Vilas de Soure e Mecejana. As secas agravariam ainda mais a situação econômica da Capitania. A conhecida seca de 1791 a 1794 trouxe a fome e o desespero à inúmeros habitantes do Ceará. Mesmo com o retorno das chuvas, os resultados da diminuição de lucro no processo criatório se manifestavam ante a cobrança de impostos, como o chamado subsídio militar de seiscen- tos e quarenta réis, cobrado por cada cabeça de gado, que acarretava sérias preocupações à população."24

Um tópico que nos prende a atenção no acervo consultado relaciona-se à situação do Porto de Fortaleza. A separação do Ceará da Capitania de Pernambuco, em 1799, foi recebida com entusiasmo, mas passada a euforia inicial, a carência de recursos para atender a implantação das melhorias desejadas agrava-se ainda mais com as dificuldades em se estabelecer a navegação direta entre a Capitania do Ceará e Lisboa.25

As informações constantes na documentação a respeito do porto, em sua maioria classificavam-no como precário. Apesar das autoridades considerarem o Porto do Mucuripe como excelente, as reclamações apontando suas precárias condições persistiam. Embora já concluída a "Casa de Inspeção dos Algodões", reconhecia-se "a necessidade de construir-se no porto de Mucuripe, uma ponte de madeira, por causa dos ventos que fazem levantar muitas ondas."26

E importante lembrar que as relações comerciais pouco expressivas não constituíam uma ocorrência exclusiva do Ceará, pois a abertura dos portos e sobretudo o aumento considerável no índice das exportações tornar-se-iam realidade no Brasil a partir da segunda metade do século XIX. Desse modo, nos anos cinqüenta, além do algodão, a cera de carnaúba e o café passariam a constar na pauta de exportações. Em 1860, Fortaleza passou a manter transações comerciais diretamente com a Europa e também com outras Províncias, quando o seu porto já constava nas rotas marítimas que ligavam o Brasil ao comércio internacional. Conseqüentemente, as atividades de exportação e importação aumentariam o número de comerciantes estabelecidos na cidade, destacando-se os estrangeiros, pois no final dos anos sessenta, Fortaleza contava com quinze casas comerciais estrangeiras, além das que pertenciam aos portugueses radicados em Fortaleza.27

Analisando a documentação relativa ao Ceará, logo se percebe a necessidade de realçar que o processo de ocupação do espaço no Nordeste do Brasil, apesar de seguir as diretrizes traçadas pela Metrópole, também tinha as suas particularidades, sobretudo se levarmos em consideração a função hegemônica de Pernambuco em relação às demais Capitanias que lhe eram subordinadas. Desse modo, os entraves impostos às relações comerciais, uma vez que as exportações tinham de ser efetuadas através do porto do Recife, explicam a permanência durante muito tempo das precárias instalações portuárias em Fortaleza, presentes inclusive na segunda metade do século XIX.

Além disso, desde o declínio das charqueadas, no final do século XVIII. que afetara a dinâmica comercial de Aracati, o peso das exportações só seria revigorado com a expansão da cultura algodoeira e a do café, que se destacavam como principais produtos, no período 1850-1885.28

Para comprovar as precárias condições da Capitania do Ceará no contexto administrativo do Brasil Colônia, basta consultar os documentos redigidos pelos Capitães-mor, pois através deles se percebe a real dimensão do espaço ocupado, que pouco os incentivava a reverter a situação. O Capitão-Mor João Batista de Azevedo Coutinho de Montauri, que governou a Capitania de 1782-1789, apesar de considerado pouco simpático aos que lhe eram subordinados, deixou uma significativa informação acerca da Capitania. De acordo com suas palavras, "Desde que cheguei a esta desgraçada, escabrosa capitania, e tomei posse do seu infeliz governo ." Em outro documento refere-se "à indolência dos habitantes do Ceará, cujo pão vinha de Pernambuco, por preguiça de cultivar a mandioca. Limitavam-se à criação de gado."29

A dinâmica do "Brasil nos Quadros do Antigo Sistema Colonial "já nos foi demonstrada por Fernando de Novais. Entretanto, se tomarmos a definição empregada pelo referido autor, para delinar o sistema colonial, percebe-se a sua validade para fornecer uma visão geral do sistema, excluindo-se as particularidades de outros espaços dominados: escravismo, tráfico negreiro, formas várias de servidão formam portanto o eixo em torno do qual se estrutura a vida econômica e social do mundo ultramarino valorizado para o mercantilismo europeu. A estrutura agrária fundada no latifúndio se vincula ao escravismo e através dele às linhas gerais do sistema; as grandes inversões exigidas pela produção só encontram rentabilidade, efetivamente, se organizada em grandes empresas."30 Todavia, se considerarmos as condições impostas pelo Sistema Colonial na Capitania Cearense, torna-se explícito o seu caráter particular diferenciando-o das demais experiências, pois além de uma dependência às contingências climáticas, a subordinação a Pernambuco deixava transparecer um traço por demais específico nas relações coloniais aqui desenvolvidas.

Considerações Finais

A concretização das atividades propostas pelo Projeto Resgate tem um significado especial. Apesar das dificuldades enfrentadas, como cobertura das despesas previstas e, em especial, a realização do trabalho de classificação no prazo estabelecido, merecem destaque a ousadia e firmeza dos seus Coordenadores em saber congregar pesquisadores que acatassem as limitadas condições de remuneração, mas que estivessem conscientes da importância do trabalho a ser realizado, concretizando, assim, um velho sonho dos estudiosos da História Colonial; trazer até nós cópia do acervo existente em Lisboa, ampliando as possibilidades de análise e de revisão dos estudos realizados acerca de diferentes temáticas.

Além disso, há um aspecto do referido projeto que merece ser reconhecido coletivamente, sem as limitações que poderiam ser impostas por determinados grupos, voltados a interesses regionais. Em virtude da carência de recursos, para cobrir as despesas previstas, poder-se-ia argumentar que deveriam ser escolhidas apenas algumas Capitanias, que pudessem proporcionar uma visão de conjunto do Sistema Colonial, logicamente restringindo-se a classificação documental às Capitanias de maior destaque no período colonial. Entretanto, os propósitos estabelecidos e os resultados obtidos conseguiram ultrapassar tais limitações, tornando realidade um velho sonho. E o mérito reconhecido torna-se mais significativo ao reconhecermos o envolvimento não apenas de órgãos do Governo Brasileiro, mas também da decisão participativa de Instituições do Governo Português, que conseguiram superar antigas barreiras, que dificultavam a ampliação dos estudos a respeito do período colonial.

Em relação ao Ceará, o mérito não é exclusivo dos que se envolveram no Projeto Resgate, pois não podemos esquecer o pioneirismo do Barão de Studart, que viabilizou as primeiras cópias dos documentos contidos no Arquivo Histórico Ultramarino, servindo de referência aos pesquisadores durante muito tempo. Tempos depois, o Inventário da Documentação Manuscrita Relativa ao Ceará, de autoria da Professora Maria Célia de Araújo Guabiraba, serviu de suporte básico a todos os que necessitavam consultar os referidos documentos. Esperamos que a participação da Universidade Federal do Ceará, com o apoio do Instituto do Ceará e da Fundação Waldemar Alcântara possam dar continuidade ao aprofundamento dos estudos acerca do Ceará Colonial.

Notas

1 A exceção pode ser observada na Dissertação de Mestrado em História, defendida na Universidade Federal de Pernambuco e já publicada: As Oficinas ou Charqueadas no Ceará. Fortaleza, Secretaria de Cultura e Desporto, 1984.

2 Cf. STUDART. Dr. Guilherme. Duas Palavras in Notas Para a História do Ceará, (Segunda Metade do Século XVIII). Lisboa, Typographia do Recreio, 1892. É importante não esquecer o teor informativo de Datas e Fados Para a História do Ceará, v. I e II, do mesmo autor, publicadas pela Typographia Studart, em Fortaleza, em 1896.

3 Cf. GUABIRABA. Maria Célia de Araújo. Inventário da Documentação Manuscrita Relativa ao Ceará. Arquivo Histórico Ultramarino. Lisboa. 1976. 281 p.b

4 Vale ressaltar, em especial, as sugestões apresentadas pela Diretora do Arquivo, Dona Maria Luisa da Cunha Meneses Abrantes.

5 Como exemplo de dificuldade encontrada, observe-se que diversos documentos, antes encontrados nas primeiras caixas, tinham sido transferidos para outras à espera, portanto, de uma nova numeração no Catálogo.

6 Serviram-nos de apoio à datação de alguns documentos: Tabella dos Capitães-mor Governadores da Capitania do Ceará Grande e dos Seus Governadores Independentes, encontrada in Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza, Typographia Studart. Trimestral, T. XVI. 1897, p. 58-60; HENIGE, David P. Colonial Governors from the Fifteenth Century lhe Present. A Comprehensive List by.... The University of Wisconsisn Press
Madison, Milwaukee, and London, 1970. Nesta obra encontra-se a relação dos Capitães-mor das diversas possessões lusitanas. Além dessas, cópias de algumas listas fornecidas pelo Arquivo Histórico Ultramarino nos auxiliaram no reconhecimento dos cargos ou funções de alguns dos assinantes ou destinatários dos documentos e também os nomes dos Reis de Portugal, uma vez que os documentos eram assinados pelo Rei, sem indicar o respectivo nome do Soberano. Vide, por exemplo. Lista dos Presidentes e Conselheiros do Conselho Ultramarino até 1833; Secretários do Conselho Ultramarino (1643-1843); Lista de Secretários de Estado - Secretaria de estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, de 1736 a 1821 e Lista Cronológica dos Ministros, contendo a Relação dos membros do Poder Executivo que geriram os negócios das colônias, desde a criação da Secretaria de Ensino da Marinha e Domínios Ultramarinos, por Alvará de Julho de 1736.

7 Também foram incluídos no Acervo da Capitania do Ceará dois documentos, que se encontravam no Acervo da Capitania do Piauí: O da Caixa 19, doe. 12/PI, 1802, abr.5, foi transferido para Caixa I3ICE e o da Caixa 20, doe. 37/PI. 1803, nov/28 foi transferido para CX 14/CE. As Capilhas 21 e 22, da Caixa 17/CE, foram transferidas para o Acervo da Bahia, pois são referentes à Capitania de Ilhéus.

8 Para tanto, levamos em consideração as definições e classificações de documentos existentes, sendo-nos valiosa a orientação do Sr. José Cintra Martinheira, Arquivista e Vice-Diretor do Arquivo Histórico Ultramarino, a fim de que pudéssemos identificar a tipologia documental: Carta Régia, Regimentos, Estatutos, Alvarás, Cartas, Carta de Lei, Avisos ou Cartas de Secretários, Consultas, Portarias, Ofícios, Resoluções e Cartas Parente.

9 Vale ressaltar que os documentos inicialmente catalogados por Maria Célia de Araújo Guabiraba somavam 1100. Com o meu trabalho pude identificar 1363 e, de acordo com a revisão final da pesquisadora Avanete Pereira Sousa, o total de documentos cresceu para 1436, microfilmados em 22 rolos.

10 G: AHU-ACL-CU - 017, Cx. I, D.3.

11 CT: AHU-ACL-CU - 017, Cx. I, D.8.

12 CT: AHU-ACL-CU - 017, Cx. I, D. 26

13 CT: AHU-ACL-CU - 017, Cx. ID.37.

14 CT: AHU-ACL-CU Cx. I, D.55.

15 Cf. Parecer do Conselho Ultramarino e Requerimento dos índios da Ibiapaba, de 1720 in CT:AHU-ACL-CU - 017, Cx. I, D. 65.

16 CT: AHU-ACL-CU - 017, Cx. I, D. 254.

17 Carta do Ouvidor do Ceará Grande. Alexandre de Proença Lemos, ao Rei (D. José 1), sobre a Missão dos índios da Ibiapaba.... in CT: AHU-ACL-CU - 017, Cx. 6, D. 415.

18 Carta do Capitão-Mor, Luis Quaresma Dourado, ao Rei, (D. José I), de 12 de Novembro de 1753 in CT: AHU-ACL-CU - 017, Cx. 6, D. 373.

19 CT: AHU-ACL-CU - 017, Cx. 4, D. 266.

20 CT: AHU-ACL-CU - 017, Cx. 6, D. 415 e 416. Cf. SERAFIM LEITE, Pe. In História da Companhia de Jesus no Brasil. T. III. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1943, p. 65; sobre o número de índios é interessante consultar o "Mapa das Vilas de brancos e índios da Capitania do Ceará "in 10 CT: AHU-ACL-CU - 017, Cx. 9, D. 592.

21 CT: AHU-ACL-CU - 017, Cx. 11, D. 672 e D-649.

22 1802, out., 12, Queluz in CT: AHU-ACL-CU - 017, Cx. 17, D. 946.

23 Consulta do Conselho Ultramarino ao Rei (D. João V), sobre o falecimento do Capitão-mor do Ceará, Francisco de Miranda Costa.... in CT: AHU-ACL-CU - 017, Cx. 5, D. 333.

24 Carta da Câmara da Vila do Icó ao Príncipe Regente (D. João), sobre a grande seca de 1791-94 e a extrema miséria em que se encontra o povo da Capitania do Ceará, agravada pelos pesados impostos in CT: AHU-ACL-CU - 017, Cx. 15, D. 832.

25 A emancipação do Ceará da subordinação a Pernambuco foi determinada pela Carta Régia de 17 de Janeiro de 1799.

26 Oficio n. 14, do Governador da Capitania do Ceará, Bernardo Manuel de Vasconcelos, ao Visconde de Anadia, (Ministro do Reino), de 30 de Junho de 1802 in CT: AHU-ACL-CU - 017, Cx. 6, D. 926.

27 A respeito das mudanças radicais ocorridas na economia brasileira na II metade do século XIX, torna-se imprescindível a consulta a obra de Richard Grahan - Grã-Bretanha e o Início da Modernização no Brasil: 1850-1914. Trad. Roberto Machado de Almeida. São Paulo. Brasilien- se, 1973. Quanto à situação do Ceará, além do trabalho do Prof. Geraldo da Silva Nobre, Historicidade da Associação Comercial do Ceará: 1866-1991. Fortaleza, Stylus Comunicações, 1991, é imprescindível consultar a obra da Professora Denise Takeya, Europa. França e Ceará: as origens do capital estrangeiro no Brasil, Natal, UFRN, Ed. Universitária, 1995. O mérito desse último livro consiste em aprofundar a temática da presença estrangeira no comércio brasileiro, demonstrando inclusive que não se deve radicalizar a respeito da primazia britânica no comércio exportador em todas as cidades portuárias do Brasil. Baseando-se em exaustiva pesquisa, fica demonstrado que em Fortaleza a Casa Boris Freres, pertencente a imigrantes franceses, liderava o comércio de importação e exportação. Veja-se, em especial, o Capítulo 5: Produção e Comércio no Ceará: a estruturação do espaço agroexportador na província, p-94- 113.

28 Cl. GUABIRABA Exportação dos Principais Produtos do Ceará apud LEMENHE, Maria Auxiliadora. As Razões de uma Cidade: conflito de hegemonias. Fortaleza, Stylus Comunicações, 1991, p. 101.

29 (post. 1782) - Ofício do Capitão-mor do Ceará, João Batista de Azevedo Coutinho de Mon- tauri, ao (Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar) in CT: AHU-ACL-CU - 017, Cx. 9. D. 590.

30 NOVAIS, Fernando. O Brasil nos Quadros do Antigo Sistema Colonial in MOTA, Carlos Guilherme (Org.) Brasil em Perspectiva 10ª ed„ São Paulo, Difel, 1978, P62.

* Departamento de História da UECe.

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