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Projeto Resgate Barão do Rio Branco

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Pará

por Caio C. Boschi
Apresentação do Projeto Resgate Barão do Rio Branco, com ênfase à documentação do Pará

 

“O documento não é o feliz instrumento de
uma história que seria nela mesma, e de pleno
direito, memória; a História é, para uma
sociedade, uma certa maneira de dar estatuto de elaboração à massa documental
de que ela não se separa.”


Michel Foucault. Arqueologia do saber.


Tendo em vista a unidade de propósitos, a concepção metodológica, a co-autoria e a forma semelhante pela qual os trabalhos ora apresentados se realizaram, não me parece impróprio reproduzir, na sua essência, e feitas as necessárias adaptações, o texto introdutório elaborado para figurar em Inventário análogo referente à série documental respeitante a Minas Gerais, trabalho este que inaugurou um conjunto de ações desenvolvidas ao abrigo do prestigioso Projeto Resgate da Documentação Histórica “Barão do Rio Branco”.

Efetivas correntes historiográficas ou meros modismos historiográficos, qualquer que seja o vetor do modus operandi adotado pelo historiador, este terá sempre, como elemento-chave e determinante no exercício de seu ofício, as fontes pelas quais opta e com as quais interage para levar a efeito seu trabalho. Cada vez mais, o leque dessas opções se amplia, ao sabor do progresso das expressões e dos registros humanos que se vão produzindo. Dentre eles o documento escrito pode perder a preeminência, mas não sua importância.

Por isso, não deve causar estranheza o fato de o senso comum julgar que o documento escrito, como tipo especial de material de memória, para retomar ao campo conceitual foucaultiano, tende a um lugar secundário, possivelmente dispensável na construção do saber histórico.

Este curto texto de Apresentação não visa a situar tal problemática, sequer bordejá-la. O propósito aqui não é o de fazer a apologia das fontes escritas, mas sim o de dar a público, isto é, de dar a conhecer, de forma mais abrangente, a massa documental constituída por mais de doze mil dossiers ou pequenos conjuntos documentais (manuscritos avulsos) relativos ao Pará e pertencentes ao acervo do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), de Lisboa.

Ao fazer essa divulgação e estimulando sua consulta, está-se proporcionando uma melhor apreensão das formas discursivas veiculadas pelos documentos.

A postura metodológica de cada consulente e o uso que fará dos documentos ora estampados, de forma sumariada, transcendem as expectativas do signatário e de seus demais autores.

O AHU, organismo subordinado ao Instituto de Investigação Científica e Tropical, armazena o maior volume de documentos manuscritos - para além dos cartográficos e iconográficos - relativos às ex-colônias portuguesas. No que respeita ao Brasil, e não incluindo os códices, lá se depositam algumas centenas de milhares de documentos manuscritos avulsos, acondicionados em, aproximadamente, duas mil “caixas”, em latas de folha-de-flandres, grosso modo, em bom estado de conservação.

Esse monumental acervo é formado, fundamentalmente, pela documentação proveniente da extinta Seção Ultramarina da Biblioteca Nacional de Lisboa, à qual se somou outra parte oriunda do denominado “Arquivo do Ministério das Colônias”.

Seu conteúdo, como se pode deduzir pelo enunciado dos organismos depositários, compreende a documentação da rotina burocrática de variados órgãos metropolitanos, em particular daqueles vocacionados para a administração do Ultramar português, como sejam: o Desembargo do Paço, a Mesa da Consciência e Ordens, a Casa da Índia e, sobretudo, o Conselho Ultramarino (particularmente, de sua criação, em 1642, até as primeiras décadas do século XVIII) e a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos (hegemônica, desde sua instituição, em 1736).

Pelos órgãos de procedência dos documentos, já se pode deduzir a sua natureza e a sua tipologia. Na essência, expressam e materializam as relações político-administrativas entre a Metrópole e a Capitania, isto é, traduzem-se na correspondência trocada entre a administração central, em Lisboa, e a administração da e na Capitania, em suas multifacetas: governação propriamente dita e a administração fazendária, de pessoal, eclesiástica, judiciária e militar.

Quanto à tipologia, são eles, predominantemente, cartas régias, decretos, alvarás, provisões, portarias, requerimentos, cartas e ofícios, cartas patentes, consultas e pareceres, passaportes, além de relatórios, mapas estatísticos e cartografia.

Em suma, trata-se de documentos típicos de se identificarem com os fundos dos arquivos públicos, como em qualquer parte do mundo. Neles ficam nitidamente privilegiadas as fontes que dão suporte e vida às pesquisas mais voltadas para as histórias político-administrativas das instituições e para a história militar e diplomática. Vale dizer, então, que, abastecendo-se desse gênero de documentos, o AHU determina quem constitui a sua clientela preferencial.

Por decorrência e para ficar apenas num exemplo, o interessado na investigação histórica voltada para temas da memória coletiva, em especial para o cotidiano social e mental, certamente estará mais bem nutrido nos arquivos paroquiais (ou eclesiásticos) e notariais.

No acervo em causa, dada sua natureza, repita-se, o destaque no seu aproveitamento será principalmente, para os temas concernentes às estruturas político-administrativas, à atuação dos aparelhos do Estado, sem embargo, é claro, daqueles destinados à análise das realidades sociais que subjazem às instituições políticas.

Testemunhos de uma realidade viva, esses documentos retratam as vicissitudes da complexa e truncada estrutura administrativa do Estado Absolutista português. Através deles pode-se, quando nada acompanhar a dinâmica, o fluxo e o refluxo da administração da época. Obviamente que, não obstante o zelo burocrático exigir e ter proporcionado a sua preservação e a par do seu alentado volume, a documentação aqui contemplada é tão-somente parte do universo dos documentos produzidos pelos organismos e individualidades apontadas.

Até 1998, data do início da execução deste trabalho, a documentação em pauta encontrava-se depositada em 131 “caixas”, de forma dispersa, sem nenhuma organização ou tratamento arquivísticos, exceto uma vaga e não necessariamente correta datação com que se etiquetava a frente das referidas “caixas”.

A tarefa compreendeu várias fases, que foram da identificação dos documentos, da sua datação crônica e tópica até a sua cotação (numeração sistemática) e reinserção, agora definitivas, nas unidades de instalação. Entrementes, a documentação foi toda ela lida e buscou-se, tanto quanto possível, fazer-se a reintegração ou junção das peças, de modo que a cada capilha correspondesse um dossier ou um processo, na acepção técnico-administrativa do termo.

Da leitura paleográfica dos dossiers fez-se uma ficha-resumo do seu conteúdo, sob a forma de sumário. O resultado é o que se publica a seguir. Logo se compreende que, pelo seu vulto, foi trabalho que demandou uma ampla e diversificada equipe composta de profissionais das áreas de História, de Documentação e de Informática. Para mim, foi um prazeroso privilégio ter participado desse empreendimento.

Tendo arrastado suas atividades por muitíssimo mais tempo do que o desejável e o planejado, com obstáculos e dificuldades de variada natureza, sendo integrada majoritariamente por portugueses, além de brasileiros, pode-se depreender que a equipe e, sobretudo, o trabalho por ela produzido sejam suscetíveis de reparos e de erros.

Por exemplo, assinale-se que o texto dos verbetes-sumários, tendo autores tão díspares nas suas formações acadêmicas e nas suas afinidades com a paleografia e com a análise dos discursos, permanece com incorrigíveis redações, em razão, sobretudo, de haver sido acordado previamente, como norma de trabalho, que os sumários teriam suas respectivas autorias plenamente respeitadas.

Os responsáveis pela leitura paleográfica do núcleo arquivístico aqui considerado são, em sua quase totalidade, cidadãos portugueses. O conhecimento que possuíam da História do Brasil, à época do início dos trabalhos, ainda se mostrava bastante lacunar, mesmo em suas linhas gerais. Nenhum dos autores dos verbetes conhecia ou conheceu pessoalmente o Pará. A muito rarefeita bibliografia concernente à história paraense, de Seiscentos até o início do Dezenove, disponível em instituições portuguesas não propiciou, assim, suprimir tal lacuna básica, com óbvios reflexos na produção do trabalho.

Não é necessário conhecerem-se os meandros e os caminhos (por vezes bastante) sinuosos da leitura paleográfica, seja de que momento histórico for, para se saber, desde logo, que nem sempre o documento contém os elementos básicos para a elaboração de um sumário de seu conteúdo. A começar pela data, por vezes omitida no texto ou, noutros casos, obtida por aproximação através de um ou mais indicadores constantes no referido texto. Portanto, por mais que se procurasse ser conclusivo e completo na fixação dos elementos centrais inerentes à redação dos verbetes-sumários, alguns destes serão aqui referenciados com a falta de dados essenciais, inclusive porque parte da documentação - felizmente pouco expressiva do ponto de vista numérico - encontra-se “em mau estado” ou em precárias condições de legibilidade.

Por outro lado, muitos documentos não proporcionaram sua identificação correta ou completa quanto à data ou quanto aos nomes do emissor ou do destinatário. No primeiro caso, procurou-se, através de um ou mais elementos constantes do documento, atribuir-lhe uma datação. Para tanto, adotou-se a seguinte convenção na redação dos sumários:

▪ a inserção da abreviatura ant. significa documento produzido anteriormente ao ano a seguir indicado;

▪ a inserção da abreviatura post. significa documento produzido posteriormente ao ano a seguir indicado;

Uma vez terminada a tarefa, cumpre divulgá-la. Ou melhor, cumpre comunicá-la, torná-la disponível à consulta. Todos sabemos que a riqueza documental só se evidencia quando é anunciada. Ao mesmo tempo, buscou-se otimizar o tempo do pesquisador. Somente agora se pode considerar que o núcleo documental em causa se aproxima da noção de inventário/catálogo que lhe é conferida nesta oportunidade, permitindo extrapolar o horizonte delimitado e restritivo dos trabalhos de investigação individualizados. Claro está que a simples consulta aos sumários, conquanto abrevie o tempo da investigação e evite o nem sempre cuidadoso manuseio do documento, não dispensa a leitura deste. Se o catálogo permite selecionar e distinguir documentos, nada supera a sensação do contato direto com a fonte e da sua leitura efetiva e completa, única forma de o estudioso inteirar-se das potencialidades de exploração da estrutura informativa do documento.

Ao mesmo tempo, tendo uma visão mais ampla do fundo arquivístico em tela, um delineamento mais nítido do organograma e da dinâmica administrativa da História do Pará, por certo, há de surgir. Muitos equívocos historiográficos poderão vir a ser desfeitos, novas problematizações emergirão, sem falar em um conhecimento mais amplo e vertical das estruturas administrativas do Pará Colonial e das suas congêneres metropolitanas, bem como das que se lhes seguem na primeira metade do século XX.

Essa massa documental, em diálogo com a de outros acervos, entrecruzando com a sua contraface depositada em instituições brasileiras, em particular com a do Arquivo Público do Estado do Pará, provavelmente abrirá novos horizontes interpretativos.

Ainda assim são necessárias outras ressalvas ao presente trabalho. Por mais exaustiva e zelosa que tenha sido sua execução, ele não atinge a totalidade do acervo que lhe dá título. Um número ainda não projetável, mas que não se supõe elevado, de manuscritos avulsos referentes ao Pará foi identificado e descartado das “caixas” de outras capitanias da América portuguesa. Esse trânsito de fontes fez-se, na verdade, em movimento de mão-dupla, pois, durante o presente trabalho, foram encontrados inúmeros documentos inseridos em “caixas” da capitania em causa, embora pertencessem, na realidade, aos fundos de outras capitanias, para onde foram oportunamente deslocados. Outros há que, por absoluta imprecisão (por exemplo, de nomes de emissor, destinatário e data) restarão à margem da catalogação.

O que se quer dizer é, pois, que, enquanto todo o gigantesco acervo de manuscritos avulsos relativos ao Brasil não tiver merecido o tratamento técnico semelhante ao que aqui se relata, será impossível e impróprio afirmar-se que o Pará ou qualquer outra capitania tem seu acervo no AHU totalmente identificado, cotado e inserido, corretamente, nas unidades de instalação.

Tal como ora se apresenta a documentação e, principalmente, dado que nos foi possível catalogá-la, apraz-nos verificar que o texto dos verbetes a seguir serve de elemento básico e está transcrito na reprodução microfílmica promovida pelo nunca assaz louvado Projeto Resgate, desenvolvido pelo Ministério da Cultura do Brasil.

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