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Curitiba Eclética

Curitiba Eclética: Projetos de Construção do Início do Século.

Marcelo Saldanha Sutil*


Aqueles que viveram no início do século vislumbraram a passagem da velha cidade, ainda de traços coloniais, para uma nova Curitiba. A cidade quadrilátera, da taipa e da pedra, do casario térreo, caiado e branco, das casas unidas parede a parede e de portas dando à rua, cedeu passagem para uma cidade mais alta e em constante construção.

Diariamente novos sobrados preenchiam as principais ruas do centro, requintados solares eram erguidos e loteamentos ampliavam os limites do quadro urbano. Os curitibanos observavam, maravilhados, construírem-se chalés, palacetes, modestas casas, prédios comerciais e residenciais, sob influências barrocas, góticas, renascentistas, toscanas, mouriscas, românticas ou todas ao mesmo tempo, numa mesma fachada e numa profusão de leituras e releituras traduzidas em uma só palavra: eclético.

As principais ruas do centro foram tomadas por sobrados e as remotas áreas de chácaras transformaram-se em aprazíveis redutos. Mesmo nos arrabaldes mais afastados, residências e pequenos armazéns ostentavam fachadas de alvenaria, platibanda e porões altos.

A Curitiba eclética era uma síntese de mestres-de-obras, carpinteiros, engenheiros, pedreiros e marceneiros que circulavam ao mesmo tempo numa cidade em obras. Técnica, belas artes e autodidatismo mesclavam-se a inúmeras referências de estilos e povos, sobretudo alemães e italianos.

Parte daquela cidade ainda resiste em velhos casarões isolados, pequenos conjuntos em bairros ou em vias tradicionais de Curitiba, como a Rua 15 de Novembro. A maioria dos exemplares, no entanto, foi soterrada pelos entulhos das demolições. Uma nova cidade é sempre erguida sobre a anterior.

O ecletismo

Tendência considerada durante décadas inimiga mortal a ser derrotado pela arquitetura moderna, o ecletismo vem passando por constantes estudos e reavaliações. Mais do que simples cópia ou mero pastiche, ele representou os anseios e as incertezas de uma classe e de uma época: a burguesia européia e o século XIX e início do XX.

O ecletismo foi uma corrente cultural caracterizada pela reutilização, mais ou menos livre, do vocabulário formal de estilos do passado. Estilos esses que teriam sido reinterpretados, nos edifícios, em concordância com a suposta analogia entre eles e a tipologia funcional.

Cronologicamente o eclético substituiu o neoclássico, porém muitas vezes coexistiram. Ambos diferem no fato de o neoclássico possuir uma preocupação maior em obedecer, com fidelidade, às regras de composição ditadas pelos tratados de arquitetura renascentista; já o eclético reconsiderou estas mesmas regras à luz de uma intenção decorativa, sem rigor e com mais liberdade, num momento em que prevaleceu a autonomia das partes. Se colunas e frontões já não significavam mais que simples formas plásticas, por que não tratá-las de maneira autônoma?

Nas palavras de Carlos Lemos, arquiteto paulista, o ecletismo foi “um estado de espírito”, uma coletividade embebida de uma libertação romântica que “todas as vezes acaba traindo a razão.”

Posturas municipais

A primeira vez que se mencionou a obrigatoriedade da aprovação de projeto arquitetônico para qualquer construção ou reforma a ser executada nos limites do quadro urbano de Curitiba, foi no Código de Posturas decretado pela Câmara Municipal em 1895.

As Posturas determinavam normas referentes aos usos dos espaços públicos, comércio, salubridade, casas de jogos e diversões, reformas e obras executadas nos imóveis. De certa forma, funcionavam como um “manual de civilidade urbana”.

Todos os projetos apresentados à Prefeitura para aprovação deveriam estar de acordo com as normas impostas pelo Código. No que concerne às construções, as Posturas garantiam o ordenamento e a racionalização da cidade. Medidas de vãos, padronização das alturas mínimas a serem seguidas nos edifícios e a preocupação com entrada de ar nas dependências das casas constavam entre os artigos do Código.

São muitos os exemplos de projetos onde aparecem anotações feitas pelo engenheiro da prefeitura determinando alterações baseadas nas Posturas. Normalmente, estas alterações faziam referências aos vãos com medidas irregulares e à falta de abertura de clarabóias para entrada de luz e ventilação nos cômodos.

Arquitetura de classe média e popular

As primeiras manifestações do ecletismo ocorreram nos sobrados e palacetes construídos por uma elite econômica. Engenheiros e arquitetos de renome assinavam projetos ou executavam réplicas de modelos europeus, como ocorreu com o Castelo do Batel, cópia fiel de uma propriedade do Vale do Loire na França.

A arquitetura das residências das camadas média e baixa da população estava longe do prestígio dos grandes nomes de engenheiros e construtores, mas perto o suficiente das obras destes para sofrer sua influência. Este vasto grupo de construções incorporou a mesma tendência eclética assumida pela elite. Uma tendência democrática e cosmopolita, sujeita às mais variadas leituras e influências.

No comércio local, anônimos mestres-de-obras e pequenos construtores encontrariam todo material necessário. As importadoras e as lojas de artefatos de construção ofereciam opções das mais variadas possíveis: das pilastras e jarros ornamentais, para as platibandas, às porcelanas, tapetes e bibelots. Seus catálogos eram avidamente consultados, e seus anúncios, impressos em todos os jornais e revistas da cidade. Não dispondo de meios suficientes para arcar com as despesas de um trabalho artesanal, como fazia a elite, a população curitibana, especialmente suas camadas médias, encontrava nesse comércio, a qualquer momento, o acessório para as suas obras.

Mesmo nas casas mais simples, tendeu-se ao uso de alguma espécie de ornamentação, que, antes de cumprir as exigências da legislação, atendia, talvez, a uma necessidade de diferenciação e afirmação do próprio morador perante as demais casas da vizinhança. Residências de dimensões variáveis, mas que tendiam, não obstante a repetição do mesmo modelo de planta, a uma personalização da fachada, que a despeito da pouca extensão, na maior parte dos exemplos, tinham muitos dos recursos externos de decoração utilizados nos palacetes.

Arquitetura de madeira

Tão características da cidade, as casas de madeira formaram um extenso cenário na paisagem curitibana. Vistas com restrições pelas autoridades que, se possível, impediriam sua construção, elas foram inicialmente erguidas nas ruas da região central.

De menor custo, as casas de madeira tornaram-se comuns, o que, de certo modo, contrariava a idéia de uma cidade urbanizada pela alvenaria. O Código de Posturas de Curitiba, então vigente, proibia as paredes externas de madeira em algumas ruas do centro; algo, no entanto, freqüentemente encontrado, não obstante a existência da legislação.

Traço marcante de muitas das construções de madeira, foram as casas com fachada em alvenaria, uma maneira de se fugir às exigências e proibições das posturas municipais; tal subterfúgio servia para melhor aproveitar o lote e atender à legislação. O modelo foi assimilado e, em pouco tempo, mesmo em regiões mais afastadas do centro, não atingidas por determinadas normas das posturas, era encontrado.

Embora estivessem associadas à moradias populares, residências de maior porte, projetadas para uma elite econômica, também foram construídas em madeira. Em Curitiba, o melhor exemplo foi a propriedade da família Gomm, de 1913, hoje conhecida como a Casa do Batel. Planejada segundo os padrões da Nova Inglaterra, é um dos mais belos imóveis da cidade.

Os chalés

Os chalés são construções que exemplificam bem a adaptação de um estilo europeu trazido pela elite econômica ou pelos imigrantes, e que posteriormente acabou assimilado e popularizado. Tornaram-se comuns na paisagem não só curitibana, mas praticamente em todas as regiões do país.

No Brasil, o chalé pretendia adotar características de residências rurais, construídas em madeira, de algumas regiões européias, numa leitura claramente romântica. O seu telhado em duas águas dispostas no sentido contrário ao da tradição colonial, com as empenas voltadas para a rua, já indicava a necessidade do afastamento do prédio em relação aos limites do lote, transformando a repetitiva paisagem luso-brasileira.

De madeira ou de alvenaria, com pequenas sacadas de ferro, algumas vezes com lambrequins e janelas venezianas, os chalés foram bucolicamente descritos por memorialistas e cronistas que viveram em Curitiba no início do século. Desde os mais simples aos mais elegantes, não foram privilégio de uma classe em especial. Habitá-los tornava-se a representação de um estilo de viver e morar que evocava e unia a tranqüilidade dos campos às modernas técnicas construtivas.

Os projetos apresentados à Prefeitura nas primeiras décadas do século, demonstram toda a diversidade de modelos construídos, alguns claramente réplicas de construções européias (um projeto intitulava-se “chalé normando”), outros já adaptados às condições locais ou influenciados pelos mais diversos estilos, numa leitura própria do ecletismo.

O espaço interno

O período de transição entre os séculos XIX e XX foi um tempo de mudanças no espaço interno das residências. Os antigos padrões coloniais de moradia, no velho esquema das peças seguindo-se umas às outras, desaparecia.

No interior das casas, as transformações realizadas foram lentas. Primeiro, acrescentaram-se novas soluções, como corredores, racionalizando melhor a distribuição do espaço interno; e jardins laterais, propiciando a abertura de mais janelas, para depois serem eliminados os velhos hábitos dos moradores.

Nos projetos de construção realizados naquele período, a mudança gradativa fica visível. Casas com propostas ainda tradicionais conviviam na mesma rua com residências consideradas inovadoras para a época. Em alguns exemplos, novas tendências de distribuição dos ambientes começavam a aparecer. Em certas casas, por exemplo, seria possível circular pelas áreas social e íntima de maneira independente.

Outra novidade para a época, foi o surgimento da denominação copa da maneira como o termo hoje é conhecido: aposento intermediário entre a sala de jantar e a cozinha, local onde normalmente a família realiza as refeições. Anteriormente, este nome era dado ao grande armário onde eram guardadas as louças, os remédios, os bules de chá, ou seja, objetos e utensílios do dia-a-dia. Os primeiros quartos de empregada doméstica no interior da residência, normalmente dando para cozinha, também pertencem ao período.

Em parte, as transformações foram influenciadas por novas técnicas e materiais construtivos, e por noções de sanitarismo. Cômodos abafados e mal iluminados não eram condizentes às então modernas noções de higiene e saúde.

*Formado em Desenho Industrial (PUC-PR) e História (UFPR), é mestre e doutor em História (UFPR) e coordenador de pesquisa histórica da Fundação Cultural de Curitiba.

Veja aqui a galeria de projetos arquitetônicos da Fundação Cultural de Curitiba.

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