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Cinema Novo

Cinema Novo: a luta por uma estética nacional

Alexandre Figueirôa*



Foi a partir de Os Cafajestes, de Ruy Guerra, em 1962, que a expressão Cinema Novo atingiu o grande público brasileiro. O filme, visivelmente influenciado pela Nouvelle Vague, foi o primeiro sucesso comercial de uma produção com pequeno orçamento e fora do sistema tradicional de produção das chanchadas e das grandes companhias. No entanto, Guerra não foi o primeiro, no Brasil, a descobrir que um filme poderia ser feito com pouco dinheiro. Em 1955 Nelson Pereira dos Santos produziu Rio 40 graus, o primeiro filme independente do ponto de vista de produção. Foi também o primeiro a testemunhar uma preocupação de retratar a realidade brasileira evidenciando posições políticas diante da situação de dependência econômica do Brasil. Dois anos depois, Nelson Pereira rodou Rio Zona Norte, uma obra dividida entre o realismo socialista e o realismo crítico, mas que já buscava um estilo personalizado de mise-en-scène. Em 1958, o cineasta produziu, em São Paulo, O Grande Momento, de Roberto Santos, um filme no qual estavam evidentes as reminiscências do neo-realismo italiano.

Em 1961, Glauber Rocha lançou seu primeiro longa-metragem, Barravento. Rodado na Bahia, o filme foi um fracasso de público e de crítica. No mesmo local e ano, foram igualmente realizados: Bahia de Todos os Santos, de Trigueirinho Neto, e a Grande Feira, de Roberto Pires. No Rio, Saraceni realizou o seu primeiro longa, Porto das Caixas. Na ocasião, o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes produziu Cinco Vezes Favela, com quatro episódios de Leon Hirszman, Carlos Diegues, Miguel Borges, Marcos Farias, e mais o curta-metragem de Joaquim Pedro de Andrade, Couro de Gato. Em 1963, já sob a égide do Cinema Novo, Nelson Pereira dos Santos realizou Vidas Secas, adaptação do romance de Graciliano Ramos. No mesmo ano, Carlos Diegues realizou a ficção Ganga Zumba, e Joaquim Pedro de Andrade o documentário de longa-metragem Garrincha, Alegria do Povo. Ruy Guerra, a partir de um roteiro no qual trabalhava desde 1954, realizou, no Nordeste, Os Fuzis. O filme seria gravado na Grécia, mas os incidentes causados pela fome no sertão levaram o cineasta a rodá-lo no Brasil.

Na mesma época, Glauber Rocha realizou Deus e o Diabo na Terra do Sol, obra que projetou o Cinema Novo no cenário internacional junto com os filmes de Nelson Pereira dos Santos e Ruy Guerra. Rocha publicou, em 1963, Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, obra que o cineasta procurava estabelecer os objetivos do movimento e seus princípios estéticos a fim de propor um projeto de cinema nacional economicamente autônomo, popular, ancorado na realidade, de bom nível artístico e dotado de uma linguagem moderna.

A produção de filmes do Cinema Novo acelerou-se a partir de 1964, com a realização de numerosos documentários inspirados no cinema direto e cujo conteúdo se debruçava sobre questionamentos sociais. Salienta-se nessa produção Maioria Absoluta, de Leon Hirszman, Integração Racial, de Paulo César Saraceni, O Circo, de Arnaldo Jabor, e os documentários Memórias do Cangaço, de Paulo Gil Soares; Subterrâneos do Futebol, de Maurice Capovilla; Nossa Escola de Samba, de Manoel Horácio Gimenez, e Viramundo, de Geraldo Sarno, filme considerado como o mais lúcido e o mais diretamente engajado desse grupo.

É necessário salientar a existência, nesse período, de outras produções rodadas por cineastas que não pertenciam diretamente ao movimento, mas cuja contribuição para a renovação da cinematografia brasileira foi evidente. Nesse sentido, assinala-se Roberto Farias com O Assalto ao Trem Pagador, em 1962, e Selva Trágica, em 1964; e Walter Hugo Khouri com Noite Vazia, em 1964.

O Cinema Novo se organizou melhor a partir da criação da Difilm, em 1965. O grupo tinha o costume de trabalhar junto há algum tempo, a fim de enfrentar as difíceis condições de produção. Os diretores sabiam que, apesar da vontade de fazerem filmes para atingir qualquer tipo de público, eles haviam fracassado na maior parte de seus primeiros trabalhos por causa das deficiências técnicas e imprecisões da narrativa. Além disso, os cineastas estavam engajados num caminho intelectual que levava os filmes a apresentarem uma problemática social a qual o espectador médio brasileiro não estava habituado a ver na tela. A isso ainda se acrescentavam problemas de distribuição no mercado brasileiro. Ele era mal organizado e os proprietários das salas estavam sempre amarrados a compromissos com as companhias americanas. A única garantia até aquele momento era fazer pressão sobre os donos de cinemas por meio do Sindicato dos Produtores, para que a lei de reserva de mercado, introduzida em 1963 – obrigando as salas a apresentarem filmes brasileiros pelo menos 56 dias no ano – fosse aplicada. A criação de uma empresa de distribuição permitia os cineastas agirem concretamente sobre o mercado. Sua intenção, portanto, era se tornar dona da indústria cinematográfica brasileira. No entanto, eles sabiam que, para melhorar o nível técnico das produções, seriam necessários grandes investimentos e que não era possível fazer um filme e pagá-lo apenas com o mercado interno.

Antes do golpe de Estado, os filmes do grupo eram financiados pelos bancos que emprestavam o dinheiro aos produtores/cineastas. Os realizadores recebiam até o apoio dos industriais brasileiros progressistas, seus aliados políticos junto ao governo reformista de esquerda no poder e com um forte componente nacionalista. Isso justificava, por exemplo, a realização de filmes consagrados ao Nordeste, no primeiro período do Cinema Novo. Uma outra fonte de financiamento procedia de uma lei do Estado do Rio, que consagrava um percentual das taxas sobre os espetáculos para ajudar o cinema. No entanto, ela não determinava como e nem em qual setor distribuí-lo. Em 1963, o governador do Rio Carlos Lacerda criou uma comissão de auxílio à indústria cinematográfica, por intermédio da qual, com o dinheiro recolhido antecipadamente pelo Estado, concedeu financiamento à produção e brindes em função da qualidade e das receitas. Sem se referir a critérios precisos e reconhecidos, ele experimentou conquistar os cineastas, atribuindo brindes aos filmes do Cinema Novo, e deixando-os fazer filmes sem impor censura ao roteiro.

Ruy Guerra, todavia, insurgiu-se contra esse sistema. Ele reclamava a redistribuição sem discriminação do dinheiro da receita recolhido sobre o mercado do Rio. Guerra queria lançar uma campanha contra essa maneira de conceder prêmios sem critérios, mas os outros não estavam de acordo e acusaram-no de radical e agressivo. No entanto, o sistema de Lacerda, antes que a ditadura pusesse fim ao seu mandato, impôs restrições. O Desafio, de Paulo César Saraceni – primeiro filme a abordar diretamente a situação política após o golpe de Estado –, financiado pela Comissão do Rio, foi censurado durante vários meses e impedido de participar do programa oficial do Festival Internacional do Rio, em 1965.

Apesar de alguns infortúnios políticos, como a prisão de Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade numa manifestação contra a ditadura, o grupo do Cinema Novo prosseguiu sua trajetória. Em 1965 e 1966, o grupo se lançou no universo urbano com A Falecida, de Leon Hirszman, A Grande Cidade, de Carlos Diegues, e em filmes de temáticas diversas, e menos engajados politicamente, dentre os quais se destacam Menino de Engenho, de Walter Lima Júnior, e O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro de Andrade. Em São Paulo, o cinema adquiria uma outra face, mas alguns filmes que ali foram realizados guardavam, apesar disso, relações com a produção do Cinema Novo do grupo do Rio, ao qual estavam diretamente associados. É o caso de São Paulo Sociedade Anônima, de Luiz Sérgio Person, e A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos.

A partir de 1967, o Cinema Novo iria inserir-se no debate ideológico e cultural em curso no Brasil, cujas preocupações concentravam-se nos problemas de política geral e no impasse internacional do Brasil e da América Latina frente aos questionamentos quanto à relação entre o Terceiro Mundo e os países desenvolvidos. O filme de Glauber Rocha Terra em Transe foi um dos primeiros a abordar essas transformações, o que lhe causou problemas com a censura. Ele foi seguido por Opinião Pública, de Arnaldo Jabor. No entanto, temas mais divertidos foram também investidos por cineastas do Cinema Novo, tais como pode ser visto em Todas as Mulheres do Mundo, de Domingos de Oliveira, e Garota de Ipanema, de Leon Hirszman, realizados em 1967.

A fase seguinte iria revelar que o cinema brasileiro estava dividido entre aqueles que procuravam permanecerem fiéis aos princípios do Cinema Novo e prosseguir o trabalho de distribuição iniciado pela Difilm. Durante os anos de 1968 e 1969, o grupo em torno do Cinema Novo fazia crescer suas conquistas. Nesse período, o cinema brasileiro havia produzido, no Rio e em São Paulo, 87 filmes. Desde sua criação, em 1965, a sociedade de distribuição já tinha trinta filmes em circulação e, ao contrário das sociedades habituais, a Difilm investia os lucros em novas produções, entre os quais se encontravam Fome de Amor, de Nelson Pereira dos Santos; O Bravo Guerreiro, de Gustavo Dahl; Os Herdeiros, de Carlos Diegues; O Profeta da Fome, de Maurice Capovilla; Brasil Ano 2000, de Walter Lima Júnior, e as duas obras mais importantes desse período: Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade; e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha.

A modernização da cultura de massa no Brasil não deu, no entanto, ao cinema a imagem esperada pelo grupo do Cinema Novo. Para superar uma marginalização incômoda frente à sua ambição política, os cineastas reformularam seu projeto e começaram a pensar em novas medidas para tornar economicamente viável o cinema brasileiro, no interior do qual eles formavam um grupo ideologicamente hegemônico. Esse processo, segundo Ismail Xavier, em seguida prolongar-se-ia na defesa e na consolidação da Embrafilme, companhia oficial que, a partir de 1969, monopolizaria a produção brasileira.

Do ponto de vista político, os anos 60 assinalaram, entretanto, o endurecimento do regime militar. Um Conselho Superior de Censura foi criado pelo Ministério da Justiça: alguns filmes e seus realizadores tiveram aborrecimentos, enquanto as produções caça-níqueis e oportunistas – filmes históricos e patrióticos – se multiplicaram. Após esses acontecimentos, o grupo do Cinema Novo, a partir de 1969, questionou-se sobre sua própria identidade e sobre sua existência, enquanto seus cineastas faziam filmes inspirados pelo movimento “tropicalista” – do qual Macunaíma tinha sido o precursor. Alguns, para fugirem da repressão, partiram para o exterior – foi o caso de Glauber Rocha – e os que ficaram, para evitarem problemas com a censura, iriam recorrer a um cinema de estilo alegórico. Asilo Muito Louco, de Nelson Pereira dos Santos, Os Deuses e os Mortos, de Ruy Guerra, e Pindorama, de Arnaldo Jabor, são exemplos dessa última fase do Cinema Novo, movimento cuja experiência iria, no entanto, alargar sua influência sobre o cinema brasileiro ainda durante vários anos.

Uma estética nacional

No início dos anos 60, o Cinema Novo apresentava-se como uma conseqüência crítica da realidade brasileira. Em um primeiro momento, inspirou-se num nacionalismo romântico, mesmo no que dizia respeito à atividade da esquerda revolucionária. Pouco a pouco, evoluiu para uma tomada de consciência do subdesenvolvimento da sociedade brasileira historicamente excluída do mundo moderno, mas na qual o cinema deveria encontrar seu caminho de emancipação.

O Cinema Novo procurava, sobretudo, uma independência cultural para o filme brasileiro. Isso não significava ter apenas temas nacionais, mas encontrar um cinema capaz de traduzir a realidade nacional a partir de uma estética original autenticamente brasileira. Uma das suas fontes foi a renovação do documentário brasileiro, observada a partir da realização de curtas-metragens, dos quais Aruanda, de Linduarte Noronha e Rucker Vieira, foi um dos precursores.

O grupo do Cinema Novo iniciou igualmente um processo de atualização cultural – vindo em grande parte da Nouvelle Vague –, introduzindo novas maneiras de filmar que rompiam com os anos 50. Os novos cineastas, embora marcados num primeiro momento pelo cinema americano, entusiasmaram-se pelos movimentos de renovação, entre os quais o cinema-direto de Jean Rouch ou o cinema-reportagem dos americanos da escola de Leacock foram muitas vezes lembrados.

Glauber Rocha conferia uma dimensão política ao novo cinema. Ela seria o encontro de um cinema de autor, de uma consciência social e da criação de uma linguagem do subdesenvolvido que, dentre outros gestos, adotava na ficção os traços estilísticos do documentário. Para os cineastas, o que era verdadeiramente novo na sua relação com o cinema de autor era a possibilidade de mudar a realidade brasileira.

Fernão Ramos sugere distinguir três fases no Cinema Novo, as quais reuniriam as obras em grupos em função de seus discursos ideológicos e de seus traços estruturais comuns. Esse reagrupamento, sem ser rígido, é útil para mostrar como os elementos do discurso ideológico do Cinema Novo se articulavam com o momento histórico e como interferiam na especificidade cinematográfica de uma busca do cinema nacional. O primeiro momento corresponde ao de representação de um Brasil longínquo e ensolarado de onde emergem os conflitos sócios-políticos. Os cineastas questionavam a percepção da realidade social pela população e introduziam personagens capazes de representar a possibilidade de uma tomada de consciência política para instaurar uma nova ordem social, de conformidade com aquilo em que acreditava a esquerda na época.

O manifesto Estética da Fome, de Glauber Rocha, explicitou e consolidou as posições ideológicas do Cinema Novo. Essas posições iriam refletir o que pensava a geração de intelectuais e de artistas brasileiros marcados por uma consciência histórica sempre atenta aos vínculos entre o cultural e o político, e cuja criação era pensada em termos de revolução e de reação. A violência à qual Rocha se referia no manifesto, assinala Fernão Ramos, era, sobretudo, uma violência do estilo, que rompia com as expectativas do espectador concernentes à representação da miséria. O compromisso do autor, com a realidade, era de expressar, pela imagem, a verdade dessa realidade, cuja estética seria uma ética e sua encenação uma política. Ele propunha assim romper definitivamente com a utilização da denúncia social como espetáculo.

O contexto ideológico iria, no entanto, mudar após o golpe de Estado. Foi uma das origens da crise que caracterizou o segundo momento do Cinema Novo, representado, sobretudo, pelos filmes Terra em Transe, de Glauber Rocha, O Desafio, de Paulo César Saraceni, e O Bravo Guerreiro, de Gustavo Dahl. Segundo Fernão Ramos, nesses filmes encontra-se um diálogo sincero da geração do Cinema Novo com o universo onde ela se insere, com suas dúvidas e suas culpas.

O enfraquecimento dos projetos nacionalistas e a constatação de que a revolução brasileira não aconteceria, criaram o que Ismail Xavier chama um clima de “crise da história”, e cujo exemplo mais explícito nas obras do Cinema Novo encontra-se em Terra em Transe. Em seguida, o Cinema Novo abandonou o ideal de um cinema popular que não se concretizava e voltou-se para um cinema possível. Esse período revelou também o conflito entre o ideal de um cinema de autor e a realidade econômica da produção. Gustavo Dahl e Glauber Rocha experimentaram vencer as contradições colocadas por essa situação propondo uma nova linha para o Cinema Novo, em que a organização de um modelo de produção industrial não recusava a expressão do autor e o compromisso ético com a verdade.

O grupo do Cinema Novo iria prosseguir, portanto, sua busca de uma estratégia a fim de não abandonar seus princípios ideológicos, sua agressividade e, ao mesmo tempo, conseguir estabelecer uma comunicação com o público. A solução apresentou-se com a elaboração de uma linguagem cuja forma narrativa inspirava-se na linguagem das manifestações culturais populares. O espetacular e o uso de elementos alegóricos iriam assim caracterizar a produção de filmes durante o terceiro momento do Cinema Novo. Brasil Ano 2000, de Walter Lima Júnior, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha, Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, Os Herdeiros, de Carlos Diegues, e Os Deuses e os Mortos, de Ruy Guerra, confirmam essa tendência.

As obras cinematográficas iriam, de igual modo, refletir o “tropicalismo”. Esse movimento cultural divulgado em todos os domínios da arte brasileira representou a revisão ideológica do fim dos anos 1960 e a retomada da discussão sobre o caráter nacional. Esse movimento restabeleceu o diálogo com o modernismo dos anos 1920 e o manifesto antropofágico de Oswald de Andrade. No Cinema Novo, a concepção tropicalista, segundo Ismail Xavier, iria manifestar-se como uma recuperação, pela paródia, de um humor antes reprimido, que se orientava para uma proposta de comunicação. Isso foi o ponto de partida de uma revalorização, pelo cinema, mesmo o mais crítico, dos códigos da cultura popular, na qual o carnaval, o futebol, a religião não mais eram percebidos como as manifestações de um processo de alienação. Essa tendência iria afirmar-se no decênio seguinte, período, no entanto, em que o Cinema Novo não foi senão o reflexo daquilo que tinha sido.


*Doutor em Etudes Cinématographiques et Audiovisuels (Universite de Paris III). Professor da Universidade Católica de Pernambuco.

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