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Fotografia e História

Ana Maria Mauad*


A fotografia surgiu no século XIX como resultado da feliz conjugação do engenho, da técnica e da oportunidade. Niépce e Daguerre, dois nomes que se ligaram por interesses comuns, mas com objetivos diversos, são exemplos claros desta união. Enquanto o primeiro preocupava-se com os meios técnicos de fixar a imagem num suporte concreto, resultado das pesquisas ligadas a litogravura; o segundo queria o controle que a ilusão da imagem poderia oferecer, em termos de entretenimento, afinal de contas era ligado ao ramo das diversões. É bem verdade que no século XIX a distinção entre técnica e magia não eram tão claras quanto hoje, como bem ilustra o nome de uma das primeiras lojas a venderem material para eletricidade no Rio de Janeiro: “Ao Grande Mágico”.

Desde então a fotografia, ao longo de sua história, foi marcada por polêmicas ligadas aos seus usos e funções. Ainda no século XIX, sua difusão provocou uma grande comoção no meio artístico, marcadamente naturalista, que via o papel da arte eclipsado pela fotografia, cuja plena capacidade de reproduzir o real, através de uma qualidade técnica irrepreensível, deixava em segundo plano qualquer tipo de pintura.

O caráter de prova irrefutável do que realmente aconteceu, atribuído à imagem fotográfica pelo pensamento da época, transformou-a num duplo da realidade, num espelho, cuja magia estava em perenizar a imagem que refletia. Para muitos, dentre eles o poeta francês Baudelaire, a fotografia libertou a arte da necessidade de ser uma cópia fiel do real, garantindo um novo espaço de criatividade para esta.

Mas será a fotografia uma cópia fiel do mundo e de seus acontecimentos como concebia o pensamento dos oitocentos? Por muito tempo esta marca indefectível de realidade foi atribuída à imagem fotográfica, sendo seu uso ampliado ao campo das ciências dos mais diversos aspectos, desde a entomologia até os estudos das características físicas de criminosos, a fotografia foi utilizada como prova infalsificável. No plano do controle social a imagem fotográfica foi associada a identificação passando a figurar, desde o início do século XX, em identidades, passaportes e os mais diferentes tipos de carteiras de reconhecimento social. No âmbito privado, através do retrato de família, a fotografia também serviu de prova. O atestado de um certo modo de vida e de uma riqueza perfeitamente representada através de objetos, poses e olhares.

No entanto entre o sujeito que olha e a imagem que elabora existem muito mais que os olhos podem ver. A fotografia para além da sua gênese automática, ultrapassando a ideia de analogon da realidade, é uma elaboração do vivido, o resultado de um ato de investimento de sentido, ou ainda, uma leitura do real realizada mediante ao uso de uma série de regras que envolvem, inclusive, o controle de um determinado saber de ordem técnica.

A ideia de que, o que está impresso na fotografia é a realidade pura e simples, já foi criticada por diferentes campos do conhecimento. O ponto de partida é a desnaturalização da representação fotográfica a partir da comparação entre a imagem fotográfica e o objeto concreto. A primeira é bidimensional, plana, com cores que em nada reproduzem a realidade, quando não é preto e branco, ou seja não guarda nenhuma característica própria à realidade das coisas. O segundo passo é compreender que entre o objeto e a sua representação fotográfica interpõe-se uma série de ações convencionalizadas tanto cultural como historicamente, afinal de contas existe uma diferença bastante significativa entre uma carte de visite e um instantâneo fotográfico de hoje. Por fim, há que se considerar a fotografia como uma determinada escolha realizada num conjunto de escolhas possíveis, guardando esta atitude uma relação estreita entre a visão de mundo daquele que aperta o botão e faz ‘clic’.

Por outro lado, a tensão presente nos primeiros tempos de sua existência, entre arte e fotografia, foi aos poucos sendo superada pela definição de uma estética fotográfica, na qual a relação com o referente cumpre um papel fundamental. Do retrato de estúdio tradicional, sua encenação com diferentes níveis de artificialidade para compor à pose, até as fotocolagens e a intervenção, inclusive virtual, de outras escritas na composição da imagem, a fotografia foi redimensionando a sua relação com o referente sem perdê-lo de vista.

A necessidade de se estabelecer uma ruptura criativa entre a fotografia artística e a fotografia documental induz à um erro na própria concepção da linguagem e estética fotográfica, como também na própria noção de criatividade. Ambas atuam na reelaboração do referente e engendram uma leitura do mundo a partir de um olhar, matizado pelas visões de mundo. Depois de feita uma foto nada será como antes. O que no processo faz diferença é a mediação estabelecida entre sujeitos que a visualizam, que a interpretam, que a captam, estabelecendo uma assim seu princípio intertextual. Os sentidos das fotografias são múltiplos e a beleza nelas inscrita não compõe uma estética padronizada.

Por todos esses aspectos as fotografias nos impressionam, nos comovem, nos incomodam, enfim imprimem em nosso espírito sentimentos diferentes. Quotidianamente consumimos imagens fotográficas em jornais e revistas, que com o seu poder de comunicação, tornam-se emblemas de acontecimentos, como aquela, já famosa foto da menina correndo nua com o corpo queimado de napalm, durante a guerra do Vietnã. A simples menção da foto já nos remete aos fatos e aos seus resultados.

Por outro lado, também faz parte da nossa prática de vida fotografar nossos filhos, nossos momentos importantes e os não tão significativos. Um elenco de temas que vai desde os rituais de passagem até os fragmentos do dia-a-dia no crescimento das crianças. Apreciamos fotografias, as colecionamos, organizamos álbuns fotográficos, onde narrativas engendram memórias. Em ambos os casos a marca da existência das pessoas conhecidas e dos fatos ocorridos, é o que salta aos olhos e nos faz indicar na foto recém chegada da revelação: – Olha só como ele já cresceu!

Desde a sua descoberta até os dias de hoje a fotografia vem acompanhando o mundo contemporâneo, registrando sua história em uma linguagem de imagens. Uma história múltipla feita de grandes e pequenos eventos, de personalidades mundiais e de gente anônima, de lugares distantes e exóticos e da intimidade doméstica, das sensibilidades coletivas e das ideologias oficiais. No entanto, a fotografia lança ao historiador um desafio: como chegar aquilo que não foi imediatamente revelado pelo olhar fotográfico? Como ultrapassar a superfície da mensagem fotográfica e, tal como Alice nos espelhos, ver através da imagem?

Não é de hoje que a história proclamou sua independência em relação a dominação dos textos escritos. A necessidade por parte dos historiadores em problematizar temas bem pouco trabalhados pela historiografia tradicional levou-o a ampliar seu universo de fontes, bem como a desenvolver abordagens pouco convencionais a medida que se aproximava das demais ciências sociais em busca de uma história total. Novos temas passaram a fazer parte do elenco de objetos do historiador, dentre eles a vida privada, o quotidiano, as relações interpessoais, etc. Uma micro história que para ser contada não necessita perder a dimensão macro, a dimensão social, totalizadora das relações sociais. Neste contexto uma história social da família, da criança, do casamento, da morte, etc, passou a ser contada, demandando, para tanto, muito mais informações que os inventários, testamentos, curatela de menores, enfim, toda uma documentação cartorial poderia oferecer. A tradição oral, os diários íntimos, a iconografia e a literatura, apresentaram-se como fontes históricas de excelência das anteriores, mas que, demandavam do historiador uma habilidade de interpretação, com qual não estava aparelhado. Tornou-se imprescindível que as antigas fronteiras e os limites tradicionais fossem superados. Ao historiador exigiu-se que fosse também antropólogo, sociólogo, semiólogo e um excelente detetive, para aprender a relativizar,desvendar redes sociais, compreender linguagens, decodificar sistemas de signos e decifrar vestígios, não perdendo, jamais, a visão do conjunto.

Nesse sentido, a fotografia é uma fonte histórica que demanda por parte do historiador um novo tipo de crítica. Não importando se o registro fotográfico foi feito para documentar um fato ou representar um estilo de vida, o testemunho é valido. No entanto há que se considerar a fotografia, ao mesmo tempo, parafraseando o historiador francês Jacques Le Goff, como imagem/documento e imagem/monumento. No primeiro caso considera-se a fotografia como índice, como marca de uma materialidade passada, onde objetos, pessoas, lugares nos informam sobre determinados aspectos desse passado, tais como: condições de vida, moda, infra-estrutura urbana ou rural, condições de trabalho, etc. No segundo caso, a fotografia é um símbolo, àquilo que, no passado, a sociedade estabeleceu como a única imagem a ser perenizada para o futuro. Sem esquecer jamais que todo documento é monumento, portanto se a fotografia informa ela também conforma uma determinada visão de mundo.

Tal perspectiva nos remete ao circuito social da fotografia (FABRIS, 1992) nos diferentes períodos de sua história. Incluindo-se, nesta categoria, todo o processo de produção, circulação e consumo das imagens fotográficas. Só assim poderemos restabelecer as condições de emissão e recepção da mensagem fotográfica, bem como as tensões sociais que envolveram a sua elaboração. Desta maneira, texto e contexto estarão contemplados.

Os textos visuais, inclusive a fotografia, são resultado de um jogo de expressão e conteúdo que envolve, necessariamente três componentes: o autor, o texto propriamente dito e um leitor (VILCHES, 1992). Cada um destes três elementos integra o resultado final, à medida que todo o produto cultural, envolve um ‘locus’ de produção e um produtor, que manipula técnicas e detêm saberes específicos à sua atividade; um leitor ou receptor, concebido como um sujeito transindividual, cujas respostas estão diretamente ligadas às programações sociais de comportamento do contexto histórico no qual se insere, e por fim um significado aceito socialmente como válido, resultante do trabalho de investimento de sentido.

No caso da fotografia o papel de autor, imputado ao fotografo, é evidente, no entanto, há que se concebê-lo como uma categoria social, quer seja profissional autônomo, fotógrafo de imprensa, fotógrafo oficial ou um mero amador “batedor de chapas”. O grau de controle da técnica e estéticas fotográficas variará na mesma proporção dos objetivos estabelecidos para a imagem final. Ainda assim, o controle de uma câmera fotográfica impõe a exigência de uma competência mínima, por parte do autor, ligada fundamentalmente a manipulação de códigos convencionalizados social e historicamente, para a produção de uma imagem possível de ser compreendida. No século XIX este controle ficava restrito à um grupo seleto de fotógrafos profissionais que manipulavam aparelhos pesados e tinham de produzir o seu próprio material de trabalho, inclusive a sensibilização de chapas de vidro. Com o desenvolvimento da indústria ótica e química, ainda no final do XIX, ocorreu uma estandardização dos produtos fotográficos e uma compactação das câmeras, possibilitando uma ampliação do número de profissionais e usuários da fotografia. No início do século XX, já era possível contar com as indústrias fotográficas do tipo KODAK e a máxima da fotografia amadora: “Você aperta o botão e nós fazemos o resto”.

Paralelamente ao processo de desenvolvimento tecnológico o campo fotográfico foi sendo constituído a partir do estabelecimento de uma estética que variava entre profissionais do retrato em busca da feição mais harmoniosa para seu cliente, do paisagista que buscava a nitidez da imagem e a amplitude de planos e do fotografo amador-artista, geralmente ligados às associações fotoclubísticas, que defendiam a fotografia como expressão artística, baseada nos mesmos cânones que a pintura, para tanto não poupavam a imagem fotográfica de uma intervenção direta, tanto através do uso de filtros como pelo próprio retoque, entre outras técnicas. Técnica e estética eram competência do autor.

À competência do autor existe uma competência correspondente ao leitor, cuja exigência mínima é saber que uma fotografia é uma fotografia, ou seja, o suporte material de uma imagem. Na verdade é a competência de quem olha que fornece significados à imagem, sendo que uma tal compreensão se dá a partir de regras culturais, que fornecem a garantia de que a leitura da imagem não se limite a um sujeito individual, .mas que acima de tudo seja coletiva. Portanto se a cultura comunica, a ideologia estrutura a comunicação e a hegemonia social faz com que se predomine a imagem da classe dominante como modelo para as demais.

Por outro lado, é importante compreender que o controle dos meios técnicos de produção cultural envolve tanto àquele que detêm o meio, quanto o grupo a que ele serve, caso seja um fotografo profissional. Nesse sentido, não seria exagero afirmar que o controle dos meios técnicos de produção cultural, até por volta da década de 1950, foi privilégio da classe dominante ou frações desta.

Na qualidade de texto que pressupõe competências, para sua produção e leitura, a fotografia deve ser concebida como uma mensagem que se organiza a partir de dois segmentos: expressão e conteúdo. O primeiro envolve escolhas técnicas e estéticas, tais como: enquadramento, iluminação, definição da imagem, contraste, cor, etc. Já a segunda é determinada pelo conjunto de pessoas, objetos, lugares e vivências que compõem a fotografia. Ambos os segmentos se correspondem no processo continuo de produção de sentido na fotografia, sendo possível separá-los para fins de análise, mas compreendê-los somente como um todo integrado.

Historicamente a fotografia compõe juntamente com outros tipos de texto de caráter verbal e não-verbal, a textualidade de uma determinada época. Tal ideia implica a noção de intertextualidade para a compreensão ampla das maneiras de ser e agir de um determinado contexto histórico, à medida que os textos históricos não são autônomos, necessitam de outros para sua interpretação. Da mesma forma, a fotografia para ser utilizada como fonte histórica, ultrapassando seu mero aspecto ilustrativo, deve compor uma série extensa e homogênea no sentido de dar conta das semelhanças e diferenças próprias ao conjunto de imagens que se escolheu analisar. Nesse sentido o corpus fotográfico pode ser organizado em função de um tema, tais como: a morte, a criança, o casamento, etc.; ou em função das diferentes agências de produção da imagem que competem nos processos de produção de sentido social, dentre estas a família, o estado, a imprensa, a publicidade, entre outros. Em ambos os casos a análise histórica da mensagem fotográfica tem na noção de espaço a sua chave de leitura, posto que, a própria fotografia é um recorte espacial que contem outros espaços que a determinam e estruturam, tais como: o espaço geográfico, o espaço dos objetos (interiores, exteriores e pessoais), o espaço da figuração e o espaço das vivências, comportamentos e representações sociais (MAUAD, 1990).

Do ponto de vista temporal a imagem fotográfica permite a presentificação do passado, como uma mensagem que se processa através do tempo, colocando, por conseguinte, um novo problema ao historiador que além de lidar com as competências acima referidas, deve lidar com a sua própria competência, na situação de um leitor de imagens do passado. Retomamos, neste ponto, a pergunta anterior: como olhar através das imagens? Por tudo que já foi dito, considerando-se a fotografia como uma fonte histórica que demanda um novo tipo de crítica, tal como, uma nova postura teórica de caráter transdisciplinar, algumas pistas para responder tal questão já foram dadas. Resta, no entanto, indicar qual o locus interpretativo do historiador, nesta cadeia de temporalidades.

Já foi dito que as imagens são históricas, que dependem das variáveis técnicas e estéticas do contexto histórico que as produziram e das diferentes visões de mundo que concorrem no jogo das relações sociais. Nesse sentido, guardam as fotografias, na sua superfície sensível, a marca indefectível do passado que as produziu e consumiu. Um dia já foram memória presente, próxima àqueles que as possuíam, as guardavam e colecionavam como relíquias, lembranças ou testemunhos. No processo de constante vir a ser recuperam o seu caracter de presença, em um novo lugar, em um outro contexto e com uma função diferente. Da mesma forma que seus antigos donos, o historiador entra em contato com este presente/passado e o investe de sentido, um sentido diverso daquele dado pelos contemporâneos da imagem, mas próprio à problemática ser estudada. Aí reside a competência daquele que analisa imagens do passado: no problema proposto e na construção do objeto de estudo. A imagem não fala por si só é necessário que as perguntas sejam feitas.

*Doutora em História Social, professora do departamento de história e do PPGH da UFF. Pesquisadora do LABHOI/UFF e do CNPq.

Conheça as fotografias de Júlia Wanderley, pertencentes à Fundação Cultural de Curitiba:

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Conheça aqui as fotografias de estúdio da Fundação Cultural de Curitiba.

Conheça aqui as fotografias de Juan Gutierrez sobre a Revolta da Armada, pertencentes ao Arquivo Histórico do Museu Histórico Nacional.

Bibliografia:

DUBOIS, Phillipe. O ato fotográfico, Lisboa, Vega, 1992
FABRIS, Annateresa. Usos e Funções da Fotografia no Século XIX, SP, Edusp, 1992.
LE GOFF, Jacques. “Documento/Monumento”, IN: Enciclopédia Einaudi, Vol.1, Lisboa, Imp.Nacional, 1985.
LEITE, Míriam Moreira. Retratos de Família, SP, Edusp, 1993.
MAUAD, Ana Maria. Sob o signo da imagem: a produção da fotografia e o controle dos códigos de representação social pela classe dominante, no Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX, Niterói, UFF, Programa de Pós Graduação em História Social, Tese de Doutorado, 2v., 1990.
NEIVA, Eduardo, “Imagem, História e Semiótica”, IN:Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, SP, USP, Nova Série, n° 1, 1993.
NEWHALL, Beaumont, The History of Photography, NY, The Museun of Modern Arts, 1982. VILCHES, Lorenzo. La Lectura de la imagem: prensa, cine, tv, Barcelona, Ed. Paidós, 4ª reimp. 1992.

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