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Gravura

A contemporaneidade da gravura em discussão

Bernadette Panek*


A gravura inicia seu papel na história como um utilitário do comunicar da imagem. Passa por alguns momentos determinantes na história das artes e com certeza permanece como afirmação em movimentos como o expressionismo alemão e a arte pop. Com o passar dos tempos a gravura foi se transformando e participando das mudanças da arte, já não se limita à simples existência de uma matriz e respectiva edição. Os valores dados às gravações, cortes e incisões realizados nas matrizes de cobre ou madeira, a fim de construir uma imagem, são agora relações encaradas conceitualmente. São estas as características também representadas por outros meios. Os limites entre as definições técnicas das obras não são mais tão claros.

A importância da gravura nas artes, aliada a uma tradição gráfica identificada em Curitiba, motivou a Fundação Cultural de Curitiba, através do Museu da Gravura, a organizar as Mostras da Gravura desde 1978. Esse original espaço nasceu com o intuito de acompanhar a contemporaneidade dos movimentos artísticos. E durante duas décadas as Mostras cumpriram seu papel.

Fazia-se necessário, no entanto, avaliar os limites e alcances das Mostras no contexto das artes plásticas, em especial, a mudança radical verificada a partir da X Mostra (1992), momento em que o diálogo com outros meios toma posição de destaque.

O lugar da gravura nas artes

A partir da primeira Mostra a gravura é tomada no seu sentido exclusivamente técnico, as considerações e os critérios adotados partiam deste princípio. A seleção e os convites eram realizados a artistas gravadores, que utilizavam matrizes tradicionais como a madeira, a pedra e o metal, salvo em alguns casos em que eram feitos convites especiais a artistas que estavam trabalhando com a serigrafia. Esta técnica só foi permitida nas salas Espontâneas a partir da IV Mostra, em 1981. Enquanto aqui nas Mostras se discutia a entrada ou não de obras em serigrafia, já na década de 1960, os artistas do pop americano revolucionavam completamente, entre outras coisas, a questão da “gravura”, Warhol extrapolou todo um conceito anterior de arte, envolvendo em especial a serigrafia.

Nos seminários e palestras organizados pela Fundação Cultural de Curitiba no decorrer das Mostras, eram sempre discutidos os assuntos relacionados com a técnica. A preocupação com a cópia original de uma gravura era discussão infalível. A denominação “gravador” ao invés de artista para quem trabalhasse com gravura também fazia parte dos debates, alguns concordavam outros não. Questionava-se inclusive o porquê da participação de gravuras de artistas pintores ou escultores.

A grande ruptura ocorre na X Mostra. A partir das reuniões realizadas com a curadoria (Uiara Bartira, Paulo Herkenhoff, Ivo Mesquita), inicia-se a preocupação de colocar a exposição como um evento de importância nacional e internacional não só no grupo fechado dos gravadores, mas sim no meio artístico. É colocada a necessidade de rompimento com o gueto dos gravadores e a necessidade de a Mostra assumir uma visão contemporânea e de relação com outras linguagens.

Na X Mostra e na XI(curadoria geral/Paulo Herkenhoff), a partir do conceito relacionado à reprodução da imagem, verificam-se as relações trabalhadas por artistas com a idéia de gravação, incisão, da existência ou não de uma matriz, multiplicação da imagem, transferência de matéria, matrizes não tradicionais, idéias estabelecidas com a gravação e a reprodução da imagem.

O artista procura meios para que o seu pensamento possa ser transmitido. Não interessa uma técnica em si, mas o meio que possa mais perfeitamente representar, traduzir a sua concepção. O artista executa sua obra sem fronteiras, segundo Debora Wye ele está sempre “redefinindo parâmetros”:

…as fronteiras tradicionais da arte impressa não são mais tão claras quanto costumavam ser.
Na imaginação popular, a quintessência da gravura pode ser uma delicada água-forte em preto e branco,
porém essa gravura ideal não existe. Os artistas estão continuamente redefinindo parâmetros.

Circunstância de ruptura com a tradição da imagem e da técnica. É o momento de interligação, do diálogo com outras linguagens. Na visão contemporânea, a gravura é também vista conceitualmente.

Uma discussão que sempre surgiu nos seminários foi a necessidade de manter esta Mostra específica, pelo fato de a gravura nunca conseguir um espaço nos grandes salões e eventos nacionais e internacionais. No entanto, há de se lembrar que, a partir de iniciativas criadas pelos “Clubes de Gravura” a arte gráfica teve importância na construção da arte contemporânea no Brasil, como se demonstra a seguir.

O Clube de Gravura de Porto Alegre (1950), do qual participam Carlos Scliar, Vasco Prado, Glênio Bianchetti, trabalha uma estética e política ligada ao realismo social, tentando recuperar a figura e valorizar a vida popular, com o intuito de provocar uma conscientização no público; opunha-se ao abstracionismo trazido pela Bienal de São Paulo. O Atelier Coletivo de Recife (1952), com a participação de Gilvan Samico, Aloísio Magalhães, estruturado com objetivos similares ao do Clube da Gravura de Porto Alegre, com enfoque nas formas de expressão plástica. O ateliê de gravura do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1959), do qual participam Edith Bering, Rossini Perez, com a participação dos gravadores europeus Friedlander e Hayter, cujas presenças marcaram o desenvolvimento da gravura abstrata no Brasil. O Estúdio de Gravura em São Paulo (1960), criado por Lívio Abramo e Maria Bonomi, tinha o objetivo de estabelecer um conceito de cultura e expressão artística.

Outro ponto relevante são as participações e premiações nas Bienais Internacionais de São Paulo que delatam a força da presença da gravura e com certeza criam um ambiente propício às discussões e inquietações relacionadas à linguagem gráfica. Oswaldo Goeldi recebe na primeira Bienal (1951) o prêmio nacional de gravura pelo conjunto de obras. O segundo prêmio fica com Lívio Abramo, que na seguinte receberia o primeiro prêmio nacional de gravura, momento em que são apresentadas gravuras de Kokoschka, Munch e Morandi. Este prêmio nas próximas Bienais seria recebido respectivamente, por Marcelo Grassmann, Fayga Ostrower, Arthur Luiz Piza, Isabel Pons, Roberto De Lamonica e Maria Bonomi. A partir da IX Bienal são extintas as premiações tanto para a gravura como para a pintura e para a escultura. A V Bienal traz ao Brasil gravuras de Manet, Cézanne, Renoir, Gauguin, R.Dufy, Degas, Fragonard, Delacroix, Corot, Hayter, Helen Frankenthaler, Sam Francis e as xilogravuras Ukiyo-e. Na VII Bienal a presença da gravura nacional foi marcante com as obras de Darel Valença, Renina Katz, Arthur L. Piza e Maria Bonomi e como representação internacional estavam as gravuras de Emil Nolde. A VIII Bienal contava com salas especiais de Darel Valença e Roberto De Lamonica; a obra de Lívio Abramo e Fayga Ostrower fizeram parte da sala geral brasileira, que apresentava também as gerações de Odetto Guersoni e Rossini Perez, o grupo carioca liderado por Ana Letycia, o grupo do Sul com Zorávia Bettiol, e o paulista com Maria Bonomi. A XI Bienal apresentou uma retrospectiva da gravura nacional. Na XIV Bienal Maria Bonomi fez parte do “Conselho de Arte e Cultura”, e na XVIII Renina Katz fez parte deste Conselho, participando dos critérios adotados nestas Bienais. Da XV Bienal fizeram parte as gravuras de Arnaldo Pedrosa d’Horta, Arthur L. Piza e João Câmara. Na Bienal seguinte, como representação internacional estavam as litografias de Paul Devaux. Na XVIII Bienal foi realizada, com curadoria de Tício Escobar, a exposição das xilogravuras do “Jornal Cabichui”, (1865/1870). Na XIX estava presente novamente a obra de Oswaldo Goeldi. Certamente grande número desses artistas brasileiros fizeram parte de eventos internacionais, tendo como representação a gravura.

A técnica e a linguagem precisam acompanhar os tempos, as transformações, as necessidades, os questionamentos contemporâneos. Uma obra é aceita pelo seu valor artístico e não por sua técnica. Caso contrário torna-se maneirismo e não arte.

Nessa perspectiva, a Mostra da Gravura Cidade de Curitiba obteve inúmeros avanços. Agora entende-se a gravura como um componente da arte contemporânea e não mais simplesmente como uma técnica e um gueto dentro das artes. A gravura foi colocada num patamar diferenciado, como arte e não técnica. A gravura agora é uma linguagem que se inter-relaciona com outras linguagens e influencia certos movimentos da arte. Ela não fica presa a si mesma, não tem mais a necessidade de ser tão específica. De certa maneira, pode-se aludir a uma libertação da técnica. Talvez ela não se desvencilhe de suas origens, mas se encontra aberta a novos questionamentos.

*Doutoranda em História da Arte pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.

Conheça aqui as gravuras de Fernando Calderari, pertencentes à Fundação Cultural de Curitiba.

Conheça as gravuras de Poty Lazzarotto, pertencentes à Fundação Cultural de Curitiba:

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