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A Revolta da Vacina

Patrícia Melo e Souza*


Apesar das divergências estatísticas, sabe-se que a Revolta da Vacina, ocorrida em 1904, foi o maior motim da história do Rio de Janeiro. Alguns historiadores consideram-na, pela violência de que se revestiu, da mesma importância, no espaço urbano, que a guerra de Canudos e a revolta do Contestado, no espaço rural. A resistência da população contra a obrigatoriedade da vacina, que tinha a intenção de prevenir o contágio da varíola, foi o fósforo que acendeu o fogo. Mas muitos ingredientes já fervilham no caldeirão em que havia se transformado a cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Uma cidade com cerca de 700 mil habitantes e graves problemas urbanos: rede insuficiente de água e esgoto, toneladas de lixo nas ruas, cortiços superpovoados. Um ambiente propício à proliferação de várias doenças, como tuberculose, hanseníase, tifo, sarampo, escarlatina, difteria, coqueluche, febre amarela e peste bubônica. O Rio era conhecido pelos imigrantes que aqui aportavam como “túmulo dos estrangeiros”.

Os anos tumultuados do início da República, marcados pela decretação de estado de sítio, por prisões, assassinatos e exílios, inclusive de jornalistas, como Gentil de Castro, assassinado, e José do Patrocínio, forçado a sair do Rio, reduzira um pouco a virulência da imprensa do período imperial. Mas não eliminara a beligerância. Os problemas sociais se acumulavam, com a grande massa de mão-de-obra miserável, sem direitos trabalhistas ou perspectivas de um futuro melhor. Do outro lado, empresários e fazendeiros pressionavam o governo, ávidos pela modernização dos portos e desenvolvimento da cidade, mudanças que atrairiam capital externo e permitiriam o perfeito escoamento da mercadoria para o estrangeiro. No campo das religiões, o sincretismo com as crenças afrodescendentes já tinha expandido sua influência, saindo da ala dos empregados e chegando ao imaginário coletivo dos freqüentadores da sala de estar, misturado a folclores e lendas. No campo da filosofia, o Positivismo e as idéias de Augusto Comte ganharam seguidores entre médicos e militares.

Em meio a esses pontos de tensões, Oswaldo Cruz, cientista jovem e idealista, ganhou do presidente Rodrigues Alves a missão de livrar o Rio de Janeiro das doenças infecto-contagiosas que dizimavam à população. Depois de campanha vitoriosa no combate à febre amarela, era chegada a hora do combate à varíola, que podia ser evitada preventivamente com o uso da vacina.

Mas a idéia encontraria forte resistência por parte da população. Depois de muito debate entre os deputados e outras autoridades, em 9 de novembro de 1904, o jornal A Notícia publica, com exclusividade e sem autorização formal, o projeto de regulamentação da Lei da Vacina Obrigatória, elaborado e redigido por Oswaldo Cruz. A lei, não regulamentada, fora aprovada em 31 de outubro. O povo, enfurecido, saiu às ruas e, durante uma semana, enfrentou a polícia, o Exército, a Marinha e o Corpo de Bombeiros.

As agitações começaram no dia 10 de novembro, com grandes ajuntamentos no centro da cidade. A polícia reagiu a tiros e com a ação da cavalaria. Barricadas e combates transformaram os bairros da Gamboa e da Saúde em praça de guerra. Os cadetes da Praia Vermelha se sublevaram, os sindicatos marcharam ao lado do povo. Saldo: segundo uns, 30 mortos, mais de cem feridos, quase mil presos – a metade deles deportada para o Acre, e sete estrangeiros banidos do país; segundo outros, centenas e talvez milhares de mortos.

A revolta eclodiu durante a gestão do prefeito Pereira Passos. Era uma fase fundamental de transformação da sociedade brasileira, que ainda mantinha profundas características do período colonial, na sua passagem para uma sociedade burguesa moderna. Tal transformação não se fez sem elevado custo social. A principal exportação do Brasil era o café, principalmente o dos fazendeiros paulistas. Eles constituíam a base de sustentação do presidente Rodrigues Alves, que adotou a política antiindustrialista do antecessor, o presidente Campos Sales (1898-1902), garantindo assim o funcionamento e até o reforço do modelo agrário-exportador.

Tanto a revolta da população contra uma lei que se destinava a protegê-la quanto os meios violentos que as autoridades empregaram para impor a medida hoje parecem surpreendentes. Em nenhum momento antes da determinação, o governo levou à população informações que pudessem esclarecer a importância da ação profilática. Diante da falta de adesão e informações, criou-se um ambiente fértil para todo tipo de especulação.

A polêmica apaixonou a imprensa da época e provocou debates inflamados. Afinal, a varíola, a febre amarela e a peste bubônica dizimavam a população carioca. Mas a campanha do médico sanitarista Oswaldo Cruz, visando a erradicar o primeiro desses males, foi veemente repugnada.

O pânico e a indignação do povo confundiu-se com a revolta contra a demolição das habitações populares causada pelas obras de reurbanização da cidade, a exploração nas fábricas e a prepotência das autoridades. E mesmo intelectuais, como Rui Barbosa, engajaram-se contra a obrigatoriedade da vacinação. O tema ganhou proporção inesperada, surpreendendo à administração pública.

Para o escritor Sérgio Lamarão, da Universidade Federal Fluminense, “conduzida de forma arbitrária, sem os necessários esclarecimentos à população, a campanha da vacina obrigatória canalizou um crescente descontentamento popular. Deve ser entendida como uma conseqüência do processo de modernização excludente concentrado, no tempo e no espaço desencadeado pela reforma do prefeito Pereira Passos, como foi considerado pelas autoridades, como uma reação explosiva da massa ignorante ao progresso e às inovações”.

O episódio não pode, entretanto, ser reduzido a uma reação ao progresso, como pretenderam alguns intelectuais e uma parte da imprensa da época. A Revolta da Vacina também tem sido interpretada como fruto de manipulações políticas de segmentos da elite brasileira descontentes com o governo liderado por Rodrigues Alves. Entre eles, militares ligados a Floriano Peixoto, intelectuais positivistas, republicanos radicais, monarquistas e a população atingida pela reorganização do espaço urbano empreendida pelo prefeito Pereira Passos.

Com o propósito de modernizar a capital, o então presidente da República Rodrigues Alves dera plenos poderes ao prefeito Pereira Passos e ao médico sanitarista e diretor da Saúde Pública, Oswaldo Cruz, para porem em prática um grande projeto urbano, que podia resumir-se na palavra modernização – mas um tipo de modernização que se processou “de cima para baixo”, sem a anuência de muitas camadas da população carioca.

O projeto expandiu-se ao longo de três eixos: melhoramento do porto do Rio de Janeiro, remodelação urbana e saneamento. O presidente Rodrigues Alves tinha uma visão global da reorganização ou modernização da cidade, e de seu alcance nacional e internacional.

“O meu programa de governo vai ser muito simples. Vou limitar-me quase que exclusivamente a duas coisas: o saneamento e o melhoramento do porto do Rio de Janeiro”, dizia. O prefeito Pereira Passos, ele mesmo filho de um cafeicultor do Vale do Paraíba, havia assistido, em Paris, a uma das fases mais difíceis da reforma da capital francesa levada a cabo por Georges-Eugène, cortiços e prédios velhos foram demolidos (ao todo, 614 habitações) e, em seu lugar, surgiram grandes avenidas, modernos edifícios, praças e jardins. O lado negativo foi que milhares de moradores desalojados à força, sem opção, tiveram de se mudar para a periferia da cidade e para os morros. Foi a intensificação do processo de crescimento das favelas na cidade.

Oswaldo Cruz, por sua vez, criou as Brigadas Mata-Mosquitos, grupos de funcionários do Serviço Sanitário que, acompanhados de policiais, invadiam as casas – e tinham até mesmo autoridade para mandar derrubá-las nos casos em que as considerassem uma ameaça à saúde pública – para desinfecção e extermínio dos mosquitos transmissores da febre amarela. Para acabar com os ratos, transmissores da peste bubônica, mandou espalhar raticida pela cidade e tornou obrigatório o recolhimento do lixo pela população. E, finalmente, para erradicar a varíola, lançou a vacinação obrigatória.

Os moradores da cidade, principalmente aqueles dos bairros mais pobres, estavam revoltados com a perda de suas casas, a truculência dos mata-mosquitos e assustados com as notícias divulgadas pelos jornais de oposição sobre os supostos perigos da vacinação. Os alvos eram o prefeito, o “bota-abaixo” e Oswaldo Cruz, o “general mata-mosquitos”. O projeto de regulamento da vacina obrigatória, por sua vez, foi apelidado “código de torturas”. Debates agitados no Congresso eram acompanhados pela agitação nas ruas, promovida pelo Apostolado Positivista, por oficiais descontentes do exército, monarquistas e líderes operários, todos eles mais tarde aglutinados na Liga contra a Vacina Obrigatória.

A vacina contra a varíola havia sido descoberta 200 anos antes, pelo médico inglês Edward Jenner. E, apesar de ter eficácia comprovada há pelo menos cem anos, grande parte da população desconhecia e temia os efeitos que ela poderia causar. Existiam ainda argumentos mais curiosos, como o de que a vacinação era um atentado ao pudor das mulheres, que teriam de desnudar os braços (ou, conforme boatos mais radicais, de despir-se) para os vacinadores. Para os seguidores do candomblé, a varíola era um castigo dos deuses e não deveria ser evitada. Outros acreditavam que, ao tomar a vacina, o ser humano adquiriria as feições da vaca, animal do qual foi produzida inicialmente a substância.

A Revolta da Vacina não durou muito. A reação popular levou o governo a suspender a obrigatoriedade da vacina e a declarar estado de sítio em 16 de novembro de 1904. No entanto, sua repercussão foi imensa e seus efeitos, tanto no campo da Saúde Pública como nas áreas política, econômica e social, se fizeram sentir por longo tempo.

*Jornalista. Assessora da Secretaria Especial de Comunicação Social/Prefeitura do Rio de Janeiro.

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