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O Conselho de Estado no Segundo Reinado

Maria Fernanda Vieira Martins*


O Conselho de Estado no Brasil seguiu o modelo dos velhos conselhos áulicos europeus, as assembléias de notáveis com membros vitalícios, sofrendo a influência de uma prática político-administrativa tradicionalmente associada ao regime monárquico no velho continente. Assumiu a função de auxiliar a monarquia a exercer o papel de árbitro de conflitos e conciliação de interesses, facilitando o exercício do poder ao intermediar as relações da Coroa com os diversos grupos políticos, especialmente com as autoridades regionais/locais. Ligado diretamente ao poder central, a instituição atuou com ampla autonomia políticae extensa ação reguladora e normativa, funcionando como ponto de encontro de redes políticas e sociais que concediam representatividade ao Estado e legitimavam suas ações.

A instituição retornou à cena política brasileira com o fim do regime regencial, após a declaração da Maioridade de Pedro II, em 1840, ainda na vigência do Poder Moderador, base em que se assentava a monarquia constitucional brasileira. A edição anterior do Conselho fora criada por Pedro I ainda em 1823 e extinta no conjunto de reformas de caráter liberal representadas pela promulgação do Ato Adicional de 1834. Embora o Poder Moderador houvesse sido mantido pelo mesmo Ato que extinguira o primeiro Conselho de Estado, ambos se mantiveram, como idéia, unidos um ao outro. Na prática, o Conselho materializava a ação do Poder Moderador, representando uma saída conciliatória à aceitação do poder pessoal do monarca e garantindo sua aceitação pelas elites representantes dos diversos grupos que atuavam junto ao poder central, bem como nas províncias.

Após sua instalação, a partir da lei n. 234 de 23 de novembro de 1841, o segundo Conselho ficava sob a presidência de Pedro II, reunindo políticos de origens e tendências várias. Seus membros eram vitalícios e suas funções eram atender às consultas dos ministros e do próprio imperador, particularmente quando este houvesse por bem exercer as atribuições do Poder Moderador, nas declarações de guerra ou de paz, nas negociações com as nações estrangeiras, nos conflitos entre as autoridades administrativas e judiciárias, nos abusos das autoridades eclesiásticas.

A importância de seu papel como agente de negociação se traduziu na própria composição do Conselho. Os 72 conselheiros incluíram ministros, deputados, senadores, fazendeiros, negociantes, capitalistas, militares, magistrados. Eram, em geral, descendentes de antigas famílias que controlavam a política, os cargos administrativos e as atividades econômicas no país já no período colonial, elementos que se integravam a variadas redes sociais e econômicas, representantes de diversas facções das elites imperiais. Entre outros, podem ser citados alguns com longos mandatos, como Antônio P. Limpo de Abreu, visconde de Abaeté (1848-1883), Cândido J. de Araújo Vianna, marquês de Sapucaí (1850-1875) e Pedro de Araújo Lima, marquês de Olinda (1842-1870); representantes de importantes oligarquias regionais, como Antônio F. Cavalcanti de Albuquerque, visconde de Albuquerque (1850-1863) e Joaquim J. Rodrigues Torres, visconde de Itaboraí (1853- 1872); eminentes estadistas, como Honório H. Carneiro Leão, marquês de Paraná (1842-1857), Bernardo Pereira de Vasconcelos (1842-1850), José A. Pimenta Bueno, marquês de São Vicente (1859-1878), José M. da Silva Paranhos, visconde do Rio Branco (1866-1880), José T. Nabuco de Araújo (1866-1878) e Paulino J. Soares de Sousa, visconde de Uruguai (1853-1866).

A instituição era acionada mediante a apresentação de consultas canalizadas pelos ministros e secretários de Estado, provenientes do próprio Executivo ou de outras instâncias administrativas, em especial dos presidentes das províncias ou de autoridades jurídicas locais. Essas eram, em princípio, direcionadas a uma de suas quatro seções: Justiça e Estrangeiros, Império, Fazenda e Marinha e Guerra. A grande maioria das consultas era decidida nesse âmbito, a partir de pareceres submetidos ao imperador. Entretanto, aquelas que chegavam à reunião geral do conselho, com a presença de todos os conselheiros em exercício, denominado Conselho pleno, traziam a indicação do imperador da necessidade de audiência do Conselho reunido ou eram enviadas diretamente pelo Executivo, sem que antes tivessem sido analisadas pelas seções, em especial quando se tratavam de questões de caráter sigiloso, quando se referiam à implantação de projetos e reformas propostos pelo próprio governo, crises e conflitos emergenciais entre os poderes etc.

Através do órgão planejava-se elaborar nova legislação e regulamentar a existente, tanto a partir de suas seções como ainda através da constituição de comissões específicas para discussão de antigos problemas estruturais — processo eleitoral, centralização administrativa, reforma do judiciário, regime de terras, tráfico de escravos e abolição gradual, entre diversos outros — caros ao programa político que levara ao poder os regressistas — os articuladores do retorno do imperador ao trono brasileiro, base do Partido Conservador — e que, em última instância, visava a consolidação do poder central. Sua ação incluiu os debates acerca da organização e distribuição das atribuições das diversas instâncias e órgãos da administração, conflitos de jurisdição entre autoridades administrativas e judiciárias, crises e funcionamento de instituições financeiras, questões internacionais, serviços públicos, processos eleitorais etc.

Em princípio, o Conselho dedicou-se à definição de competências e esclarecimentos gerais em função do caos gerado pelo amplo programa de reformas de alto teor jurídico-administrativo, inerente ao próprio processo de centralização e fortalecimento da autoridade do Estado. Tal processo vinha acompanhado de um ímpeto legislativo fundamental à organização administrativa, com sucessivas reformas que se sobrepunham e que vinham se realizando desde a época regencial. Nesse momento, o Conselho assumia o papel de órgão responsável pela inteligência da lei. Assumia, no entanto, extra-oficialmente, uma vez que tal atribuição não constava explicitamente em sua lei de criação, nem em seu regimento interno.

De fato, a seção de Justiça do Conselho poderia ser considerada a verdadeira responsável pela construção de uma unidade administrativa e jurídica no país. Funcionando, na prática, como uma instância superior, fixou os limites legais, definiu a compreensão da legislação, reformou-a quando julgou necessário, propôs novas leis e regulamentações. A Seção também serviu como árbitro em questões jurídico-administrativas que constantemente opunham os poderes central e provincial ou, como parecia mais comum, na administração dos conflitos entre as próprias autoridades provinciais. Tal atuação mostrou-se fundamental no que se referiu aos freqüentes impasses políticos e eleitorais que envolveram o Legislativo, o Judiciário e o Executivo diante da disputa permanente de poder, ao menos em meados do século, quando era maior a resistência de antigos poderes locais à influência reguladora e centralizadora dos presidentes de província e chefes de polícia nomeados pelo governo central. Juntamente com a Seção do Império, procurou fixar as atribuições dos cargos provinciais e municipais, muitas vezes chocando-se frontalmente com os antigos Tribunais de Relação, onde em geral se encastelavam os magistrados representantes dos poderes locais.

Em função do destaque que concediam ao controle do que chamavam conflitos de jurisdição, o governo dava plena execução prática às prerrogativas centralizadoras da Justiça e administração pública, demonstrando todo seu ímpeto em manter sob rígida observação a máquina administrativa do Estado. Nesse processo a instituição utilizou-se amplamente do Poder Moderador para justificar o controle da autonomia das províncias — que se refletia na possibilidade de questionar as leis de suas assembléias —, bem como suas ingerências sobre o Legislativo e o Judiciário, medidas que por sua gravidade e repercussão necessitavam efetivamente do respaldo político que apenas um fórum de negociação como o Conselho de Estado poderia fornecer.

Interpretando e propondo as leis do Estado, em todas as suas instâncias, a instituição procurou conduzir o ritmo das reformas. Tais aspectos demonstravam sua legitimidade na representação de interesses tanto quanto seu envolvimento com os temas mais caros à política, reafirmando ainda seu papel como espaço de negociação e administração de conflitos. Esse era, na verdade, um importante componente no ideário político imperial e talvez ele seja o principal responsável pela longevidade do Conselho de Estado, garantindo seu prestígio mesmo quando se generalizava o clamor por uma feição mais democrática ao governo, após a década de 1870. Em diversos sentidos a arte de governar relacionava-se ao controle das atividades regulamentares e dos ritos administrativos, e era esse controle que garantiria o sucesso da política imperial; a política fazia-se cotidianamente, nas micro-relações, nas ações normativas regulares empreendidas em diferenciadas esferas de poder.

Cabe reafirmar que, malgrado o discurso em prol da imparcialidade e da neutralidade, as elites representadas no Conselho, através da instituição, faziam cumprir as leis que elas mesmas elaboravam, interpretavam e defendiam. Os próprios princípios de sua ação encontravam sustentação em bases autoritárias, assim entendidas pelo seu caráter inibidor da representação, da autonomia provincial e da liberdade dos poderes constituídos. Essas bases eram principalmente as prerrogativas do Poder Moderador e as leis de criação do Conselho e de Reforma do Código Criminal, cujo caráter centralizador não havia escapado à oposição, especialmente aos rebeldes de 1842. Com esses instrumentos davam execução a um projeto de organização político-administrativa que se mantinha excludente e que seguia adiando as reformas essenciais à sua modernização.

Na medida em que se pacificava o Império essas fraturas surgiam cada vez mais nítidas. Os impasses e a incapacidade de lidar com as novas conjunturas esvaziaram a ação política do Conselho a partir do terceiro quartel do século. De fato, um novo debate político renascia no final da década de 1860 trazendo de volta à discussão a questão da representação política e da manutenção do poder pessoal do imperador. O Senado vitalício, o Conselho de Estado e o próprio Poder Moderador começaram a ser violentamente criticados, o que denotava que aquele formato institucional havia efetivamente se esgotado. Os excessos da centralização imobilizavam perigosamente a administração provincial e os anseios de mudanças ganharam nova força com as tendências republicanas e o ímpeto reformista e da chamada geração de 1870.

Ao longo de todo o II Reinado o Conselho de Estado resistiu, juntamente com o Senado, como a mais estável e sólida das instituições monárquicas e foi suprimido apenas com o desaparecimento da própria monarquia, cuja existência acompanhou e cuja ação procurou regular e controlar. Sua atuação colocou em prática um amplo programa de organização da estrutura de governo, que procurou, após o processo de Independência, os caminhos para adequação do Brasil à nova ordem internacional. Portanto, o sucesso com que se conduziu o Conselho de Estado na obra de reorganização da estrutura jurídico-administrativa do Estado nos primeiros anos do reinado de Pedro II o levou também a, progressivamente, ultrapassar os limites que o separavam dos poderes constituídos em 1824. Embora os instrumentos legais que definiam seu exercício já oferecessem uma abertura considerável para ampliação de seu espectro de ação, na prática suas ações deliberativas, em detrimento de seu caráter consultivo, particularmente a transformação em tribunal de recursos, as audiências obrigatórias em determinadas contendas judiciárias, as ingerências sobre o Legislativo nas propostas de dissolução da Assembléia Geral e seus embates com o Executivo quanto à atuação do Poder Moderador, cada vez mais pareciam exteriorizar as contradições inerentes ao regime, no qual o espírito liberal que teoricamente predominara na elaboração do texto constitucional mostrava-se incapaz de proteger suas instituições. A extensão dos poderes do Conselho de Estado demonstrava que a organização político-administrativa imperial ainda amparava-se em uma cultura política baseada em princípios autoritários e excludentes, não representativos, aspectos esses que se revelavam mais nítidos quanto mais se avolumavam as crises que abalavam o sistema monárquico imperial.

*Doutora em História Social/UFRJ. Coordenadora de Documentação e Pesquisa da Fundação Oscar Niemeyer.

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