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Painel de Abertura

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Painel de Abertura


A filosofia moderna, a partir da obra de Emanuel Kant, incorporou a ideia de que o entendimento humano é marcado, de modo apriorístico, por intuições de espaço e de tempo. A experiência com as coisas do mundo, essencial para que haja conhecimento, dá-se em um ambiente cognitivo no qual aquelas intuições são referencias fundamentais. Somos, portanto, animais que percebem as coisas como se estivessem no tempo e no espaço. Tais traços são-nos indeléveis. Mas, muito antes da obra de Kant, no século XVIII, e como que a confirmála por antecipação, o espírito humano lançou-se à colonização imaginária do espaço. Nessa faina, talentos descritivos sempre estiveram associados a investimentos de imaginação. A própria ideia de um mapa, não depende ela da simulação de um ponto de vista não vivido pela experiência ordinária?

Com efeito, a cartografia pode ser entendida como um dos primeiros e mais importantes esforços cognitivos dos humanos. O impulso cartográfico atende ao mesmo tempo a um desejo de saber onde se está fixado e ao salto imaginativo de vasculhar o tamanho do mundo. É o que se depreende, por exemplo, da belíssima imagem, inscrita na Etymologia de Santo Isidoro de Sevilha – “o último acadêmico do mundo antigo” –, escrita na primeira metade do século VII: um mapa tipo “T e O”, no qual as três partes do mundo aparecem representadas: Europa, Ásia e África. De modo significativo trata-se da imagem mais antiga, registrada por esta exposição.

É mais do que certo que, há muito, já não mais vemos e imaginamos o mundo à moda de Isidoro de Sevilha. Mas, em um sentido fundamental, estamos dele muito próximos: nossas representações do espaço são movidas por atos de imaginação e revelam hábitos culturais, intelectuais e científicos que, ao longo do tempo, definem canônicas da espacialidade. Cada mapa coagula em si mesmo uma combinação de modos de representação e de saberes. Isso vale tanto para a indicação dos ventos, presente no planisfério de Johann Schnitzer, de 1486, que acrescenta ao mapa clássico de Ptolomeu a direção do sopro dos ventos, quanto para a Carta Coreográfica, de Pedro Torquato Xavier de Brito, de 1862, acompanhada de um quadro de informações estatísticas sobre o Brasil.

Não há, pois, representação do espaço na qual a imaginação não exerça suas artes. Ela está presente mesmo no notável mapa de Delarochette, de 1807, devotado à descrição seca e ao registro sobre o suporte, na qual o que se quer é um máximo de nitidez. Nenhuma “fantasia”, exceto a de que um país pode ser mostrado coreograficamente, sem qualquer alusão a não ser a aquilo que o espaço “naturalmente” apresenta.

Mais do que multidisciplinar, a cartografia tem parte com a beleza. Provoca-nos, tanto no desejo de conhecer e representar o mundo, quanto na flexão das papilas gustativas da emoção estética.

Com a exposição Historica Cartographica Brasilis in Biblioteca Nacional, a Biblioteca Nacional não apenas exibe uma amostra de seu extraordinário acervo. O exercício da imaginação sobre o espaço, outra forma de dizer “cartografia”, é um modo de criar mundos. Ao exibir alguns fragmentos dessa arte, a Biblioteca se revela como um universo que contém incontáveis universos.



RENATO LESSA
Presidente da Biblioteca Nacional





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