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Apresentação

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Apresentação

Cada um de nós traz uma ideia de Machado.

Ideia vaga, talvez, difusa, mas eminentemente sua, apaixonada e intransferível. Como se guardássemos um fino véu que se estendesse sobre a cidade do Rio de Janeiro.

Paisagem pela qual vamos fascinados e diante de cuja natureza suspiramos.

Todo um rosário de ruas e de igrejas - Mata-Cavalos, Santa Luzia, Latoeiros e Candelária. Nomesguias e sonoridades perdidas. Morros derrubados. Praias ausentes. Tudo o que perdemos move-se ainda nas páginas de uma cidade-livro. Cheia de árvores e de contradições, por vezes dolorosas. Chácaras e quintais compridos. Aqueles mesmos quintais que assistiram aos amores de Bentinho e Capitu e dentro de cuja educação sentimental nos formamos.

Machado nos vem desde a escola - com "A cartomante" ou a "Missa do galo" - até a revelação inesperada de Brás Cubas; quando já consideramos nossa aquela terra ficcional, totalmente nossa, e por usucapião.

E assim aprendemos a ver as coisas que nos cercam.

Herdamos parte essencial de sua língua. O corte da frase. A espessura do substantivo. A parcimônia de atributos. Mas, acima de tudo, o modo de sondar a extensão de nosso abismo. Sabemos que o Cruzeiro do Sul está muito alto "para não discernir os risos e as lágrimas dos mortais". Mas acreditamos que "alguma coisa escapa ao naufrágio das ilusões". Esse fraseado lapidar salta dos livros e cria instrumentos de sentir. E não são apenas as frases. As personagens também se deslocam do papel e vagam incertas pelas ruas do Rio. Tal como as criaturas de Dostoievski em São Petersburgo.

Sabemos onde moram e para onde vão.

Aquelas ruas e praças são como espelhos que refletem distâncias desde sempre intangíveis.

Emerge desse mundo, José Dias com seu passo estudado. Marcela, tão ávida de esplendores. A severa beleza de Guiomar. E o sorriso-lágrima de Helena. O piano de Fidélia em Botafogo. E Quincas Borba nas escadarias da igreja de São Francisco.

Mas há também seres de carne e osso, contemporâneos de Machado, que lhe habitam as páginas, adquirindo foros de eternidade ficcional, como o "ateniense" Francisco Otaviano. A longa tristeza de Alencar no Passeio Público. As mãos trêmulas de Monte Alverne, apalpando o espaço que não podia ver. As meias de seda preta e os calçados de fivela do porteiro do Senado.

Para Machado de Assis a História podia ser comparada aos

"fios do tecido que a mão do tecelão vai compondo, para servir aos olhos vindouros; com os seus vários aspectos morais e políticos. Assim como os há sólidos e brilhantes, assim também os há frouxos e desmaiados, não contando a multidão deles que se perde nas cores de que é feito o fundo do quadro."

O centro e o fundo. As cores vivas e desmaiadas. A trama singular. Machado de Assis terá fixado o sentimento exato daqueles dias, que parecem ultrapassar o próprio tempo, como se fossem o patrimônio da memória coletiva e quase atemporal.

A exposição da Biblioteca Nacional é dedicada aos amigos e leitores de Machado. A idéia tinha de ser abrangente e republicana. E a escolha não podia não ser biográfica neste centenário, quando se redesenha o rosto de Machado.

Se a crítica avançou nesse território, ainda resta muito que fazer no espaço continental de sua obra. Falta uma biografia mais apurada, que retifique as anteriores, de Lúcia Miguel Pereira, Magalhães Júnior, Luis Viana Filho e Jean-Michel Massa - cujo livro A juventude de Machado de Assis constituiu um passo decisivo. O labirinto de pseudônimos, declarados ou não, ainda espera pelo fio de Ariadne. E a edição da obra completa parece deixar a descoberto zonas de silêncio e vazios demográficos.

A voz de Machado se faz sentir na exposição a partir da obra e da cidade. Como se tivéssemos de tentar aquele livro de memórias que ele sugeriu em carta a José Veríssimo. Memórias futuras, por onde se move o "narrador anfíbio". A exposição se inspira na "imagem ambígua do mundo" e na visão "unitária da natureza", que Machado persegue nas mudanças da Corte para a Capital Federal.

Esse tônus de época, assumido pela exposição, insere Machado no horizonte do Segundo Reinado e da República, delineando-lhe, ao mesmo tempo, o índice manifesto de sua contemporaneidade, tão claro nas obras maduras e cheias de frescor. Os ensaios de Alfredo Bosi, José Miguel Wisnik e Sérgio Paulo Rouanet vêm apontando recentemente para essa inesgotável permanência.

A exposição vai das peças mais visitadas às menos conhecidas, além daquelas redescobertas durante a montagem e devidamente assinaladas. Trata-se menos de uma semiologia de objetos e mais de uma sintaxe configuradora. Não a simples amostragem, mas o ruído da obra e da história, que formam um todo, longe do vácuo que se costuma interpor entre ambas, como se fossem esferas irredutíveis.

Seria o caso de combater alguns fantasmas que, muito embora eliminados pela crítica, perseguem uma estranha sobrevida?

A idéia, por exemplo, de um menino mais pobre do que realmente foi e de compleição mais frágil do que teve. E a lista seria longa: não consta que Machado tivesse tentado apagar suas raízes ou que lhe faltasse amor pela família; a existência da padaria Gallot, onde teria aprendido francês, carece de documentação plausível; o primeiro poema que publicou não foi "A palmeira", mas "À lima. Sra. D.P.J.A."; Carolina não ampliou as leituras de Machado nem tampouco lhe aperfeiçoou o estilo; o espaço entre a primeira e a segunda fase da obra, cuja fronteira seria Memórias póstumas de Brás Cubas, deixou de ser vista como um abismo; não faltam árvores e quintais no coração da narrativa e a natureza não está fora de seus quadros, como também as cartas que escreveu não respiram frias distâncias; por último, Machado jamais deixou de lado as questões políticas, como o caso Christie, a escravidão e a República.

Tudo isso já foi amplamente demonstrado. E, no entanto, esses falsos biografemas parecem inarredáveis.

E mesmo que fossem verdadeiros, a obra não perderia um milímetro de sua qualidade ficcional.

Seja como for, o fascínio exercido por Machado é a melhor parte de seu legado. Aquele enigma tão bem definido por Graça Aranha:

"O que se sabe das suas origens é impreciso; é a vaga e vulgar filiação, com inteira ignorância da qualidade psicológica desses pais, dessa hierarquia, de onde dimana a sensibilidade do singular escritor. E por isso acentua-se mais o aspecto surpreendente do seu temperamento raro, e divergente do que se entende por alma brasileira. Há um encanto nesse mistério original, e a brusca e inexplicável revelação do talento concorre vigorosamente para fortificar-se o secreto atrativo, que sentimos por tão estranho espírito. De onde lhe vem o senso agudo da vida? Que legados de gênio, ou de imaginação, recebeu ele? Ninguém sabe. De onde essa amargura e esse desencanto? De onde o riso fatigado? De onde a meiguicef A volúpia? O pudor? De onde esse enjôo dos humanos? Essas qualidades e esses defeitos estão no sangue, não são adquiridos pela cultura individual. A expressão psicológica de Machado de Assis é muito intensa para que possa ser atribuída ao estudo, à observação própria. Cada traço de seu espírito tem raízes seculares e por isso ele resistirá a tudo o que passa."

E aqui se estende seu olhar sobre o futuro.


Marco Lucchesi
Curador