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Discurso de Abertura

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Discurso de Abertura

Discurso que o Ministro da Cultura Juca Ferreira preparou para a solenidade de abertura da Exposição Rio 450 anos – uma história de futuro, na Fundação Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. No entanto, Juca Ferreira acabou falando de improviso.


"Esse é o discurso que eu faria se os que me precederam não me tivessem inspirado a fazer diversos comentários a respeito do tema cultura, cidades e democracia", afirmou Juca. Disponibilizamos o texto como convite a uma reflexão sobre as cidades que queremos projetar para o futuro

Não resisti ao debate que propõe esta exposição. Este olhar para o futuro a partir de nosso passado e do nosso presente, aliás, me levou além da cidade do Rio de Janeiro. Me remeteu a nossas cidades, me instigou a refletir sobre as cidades brasileiras que queremos. Em mim ela surtiu este efeito. Pensar sobre a história do Rio nos inspira a pensar sobre a história do Brasil.

Todos sabemos que as cidades americanas têm características bem particulares, em muitos aspectos bem distintas das cidades europeias que quase sempre tomamos como referência de vida urbana. Muito diferenciadas também são as urbanidades organizadas tanto pelos povos anglo-saxões como pelos hispânicos e pelos lusitanos.

Em Raízes do Brasil, um clássico na interpretação de nosso país, Sérgio Buarque de Holanda fortalece suas ideias sobre características culturais definidoras do que veio a ser a ocupação do espaço urbano segundo a colonização portuguesa e segundo a colonização espanhola. Os portugueses, para Sérgio Buarque, teriam se pautado por um estilo semeador, aquele que ocupa o território jogando sementes ao léu, enquanto o modelo espanhol se aproximaria de um tipo que ele chama de ladrilhador, aquele que organiza os espaços de acordo com uma régua, ocupando o território com método e racionalidade.

Certo ou errado, o fato é que os espaços urbanos, ainda que sejam produto do mesmo impulso em qualquer canto do mundo, não são apenas resultado de uma adaptação ao meio físico, são produto da cultura de um povo, reproduzem uma maneira de lidar com a vida material e intelectual, ao longo de sua história. Serão sempre, em suma, produto de muitas determinações e circunstâncias históricas, articulações políticas, sociais, econômicas e ambientais, que interagem desde a sua formação, de uma maneira a tal ponto singular que, mesmo quando comparadas a outros espaços urbanos assemelhados, as cidades sempre se distinguirão umas das outras por características particulares, identidades peculiares e traçados únicos.

Os portugueses, em realidade, não foram relaxados, procuram aproveitar o relevo natural do solo e a geografia para povoar um novo mundo, muito cobiçado. Seguir a tradição de se posicionar no topo para não ser facilmente surpreendido pelo inimigo parecia aos portugueses algo mais sensato a considerar.

Fiz este preâmbulo para destacar que há diferentes maneiras de lidar com a urbis, no tempo e no espaço. De um ponto de vista brasileiro, devo dizer que, por exemplo, somente nos primeiros anos do século XIX é que as ruas de nossas cidades passaram efetivamente a ser espaço de sociabilidade para o andar de cima da sociedade. É emblemático o que diz sobre o assunto Gilberto Freyre em Sobrados e Mocambos [1]. Para ele, foi

"quando a rua foi deixando de ser o escoadouro das águas servidas dos sobrados, a partir daquela época as posturas municipais começaram a defender a rua, dos abusos da casa-grande que sob a forma de sobrado se instalara nas cidades com os mesmos modos derramados, quase com a as mesmas arrogâncias, da casa de engenho ou de fazenda: fazendo da calçada, picadeiro de lenha, atirando para o meio da rua o bicho morto, o resto da comida, água servida, às vezes até a sujeira do penico. A própria arquitetura do sobrado se desenvolvera fazendo da rua uma serva: biqueiras descarregando com toda com toda a força sobre o meio da rua as águas da chuva; as portas e os postigos abrindo para a rua; as janelas – quando as janelas substituíram as gelosias – servindo para os homens escarrarem nas ruas".

Este comentário de Gilberto Freyre sobre nossas cidades nos primeiros anos do século XIX reproduz, quase caricaturalmente, uma ótica da Casa Grande, é um registro parcial, próprio à elite colonial portuguesa e à nativa, em formação. Essas mesmas ruas já eram, há muito, palco de uma intensa convivência e sociabilização da maioria da população: formada por escravos, negros libertos, indígenas, e mestiços de todos os matizes. Aí neste ambiente novo, em construção, populações deslocadas de seus contextos foram criando um novo espaço social.

Foi desta convivência que se forjou uma língua geral, por exemplo, com fragmentos do português, do tupi e, em menor escala, de outras línguas indígenas e de várias línguas africanas. Muitas das características das nossas cidades, dos seus modos de ser, dos seus traços identitários, das suas manifestações culturais e celebrações coletivas, que vieram a se consolidar como partes do jeito de ser mais permanente do povo brasileiro, nasceram aí, neste ambiente, efervescente, cheio de vida e, ao mesmo tempo, fétido e sujo.

Em cada fase de nossa história podemos falar de um tipo bem próprio de sociabilidade, assim como de sociabilidades nos diferentes espaços de uma cidade, nos centros, nos bairros, e nos espaços delimitados para o público. Diferentes, portanto, também são os modos de sociabilidade de cada cidade.

Neste início de século, nossas grandes cidades tornaram-se sinônimos de inchaços, graves problemas de mobilidade, gigantescos obstáculos habitacionais e urbanos, violência, e poluição de todo tipo. Nossos mais graves problemas ambientais, aliás, ou estão concentrados nas cidades ou são consequência do modelo de ocupação do território que estabelecemos a partir delas.

Nossas ruas, que deveriam ser também um espaço de socialização e de reencontro, estão se transformando num mero canal de deslocamento, de tráfego. Um espaço que não nos interessa, e que tentamos transpor da maneira mais rápida possível e, no qual, ironicamente, nos vermos presos na armadilha do trânsito. O momento do traslado através dos espaços públicos torna-se o tempo mais desperdiçado do nosso dia, quando não deveria ser assim. Só estamos confortáveis e seguros entre quatro paredes, quando conseguimos esquecer a cidade material e mergulhar nas cidades eletrônicas dos nossos celulares, computadores e televisões.

Um dos preços que pagamos pelo modelo de vida que escolhemos é a perda gradual dos espaços festivos de reencontro e de compartilhamento de atividades. O espaço tradicionalmente oferecido pelas praças, pelas praias, pelas feiras livres, pelos parques e jardins. Espaços para onde as pessoas se deslocam por saber que ali encontrarão experiências interessantes e enriquecedoras, encontrarão o reforço dos laços sociais e comunitários. É sempre uma visão triste quando cruzamos um bairro residencial e vemos uma praça vazia, mesmo quando é bem cuidada, limpa, com boa iluminação... Onde estão as pessoas a quem essa praça se destina?

A cidade moderna nos aglomera num só espaço, e nos afasta uns dos outros. É preciso reverter essa cultura do isolamento e buscar formas de mobilidade que envolvam não somente o lazer mas também o trabalho e o estudo. A cidade deveria ser vista como um prolongamento da nossa casa, e não como um espaço hostil do qual precisamos nos separar.

Fato é que até hoje as políticas urbanas no Brasil secundarizam a natureza cultural de suas ações. Não bastasse ser a cultura de um povo, em seu sentido mais amplo, quem efetivamente determina o modelo de desenvolvimento que devemos ter.

Devolver a cidade ao cidadão parece ser o maior desafio de nosso tempo. Temos, diante de nós, o desafio de tornar as cidades brasileiras espaços que valorizem formas democráticas de convivência no território onde se habita. Esta é a questão que nos está posta. Somos hoje esmagadoramente urbanóides. No Brasil, já passa de 90% a população que habita meios urbanos. É nas cidades que crescemos e formamos nossa sensibilidade. Mais do que nunca, é coletivamente que moldamos nossas identidades citadinas, tanto funcionalmente como afetiva e simbolicamente.


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[1] Gilberto Freyre – Sobrados e Mocambos – Editora Record – págs.13 e 14 – Rio de Janeiro/São Paulo. 2000.


Publicado em

http://cultura.gov.br/o-dia-a-dia-da-cultura/-/asset_publisher/waaE236Oves2/content/uma-reflexao-sobre-as-cidades-brasileiras-que-queremos/10883?redirect=http%253A%252F%252Fwww.cultura.gov.br%252Fo-dia-a-dia-da-cultura%253Fp_p_id%253D101_INSTANCE_waaE236Oves2%2526p_p_lifecycle%253D0%2526p_p_state%253Dnormal%2526p_p_mode%253Dview%2526p_p_col_id%253Dcolumn-1%2526p_p_col_count%253D1