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Apresentação - Rio de Janeiro 450 Anos

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Apresentação - Rio de Janeiro 450 Anos

Rio de Janeiro 450 Anos: Uma História do Futuro

Marco Lucchesi


São Sebastião do Rio de Janeiro é uma das cidades mais inquietas e inabordáveis do mundo.

Basta nomeá-la para que prontamente se dissolva e fuja por entre os dedos. Não é como tantas cidades, que vestem folgadamente o corpo de sua inteira jurisdição. A geografia carioca desconhece limites. Não há tecido que possa cobrir sua nudez. Trata-se menos de uma cidade do que um manancial de metáforas, uma coincidência de opostos. O Rio é uma enorme federação de desejos, atraída pelo futuro, e a ele devotada, sem nenhum sinal de resistência.

Adicta do futuro, em vista do qual não mede esforços para apressá-lo, é ao mesmo tempo saudosa de um passado incerto, de que se percebe exilada, ou amnésica, pelo tanto que apagou com seu apetite demolidor. Uma Roma em guerra com a barbárie da especulação. Machado de Assis resume a vertigem de que sofrem os cariocas: “Mudaram-me a cidade ou mudaram-me para outra”.

Mas a cidade é tatuada na pele do presente, antes de assumir o passado que perdeu e o futuro entressonhado. Porque o Rio vive, uma vez mais, um novo redesenho, desde os anos 90. Ampliou seus tentáculos, e promove, dentro de sua identidade polifônica, todas as vozes e os centros que a constituem, da Cidade de Deus, de Paulo Lins, aos subúrbios de Lima Barreto, cuja “falta de percepção do desenho das ruas põe no programa um sabor de confusão democrática, de solidariedade perfeita entre as gentes que as habitavam”. Uma pós-metrópole, em franca expansão, que se espera mais solidária e democrática, com grandes desafios para os quais se mobilizam novos atores urbanos, formando um arquipélago de identidade e resiliência, da Mangueira ao Alemão, do Santa Marta à Rocinha.

Uma cidade ferida de contradições, que não perde a força lúdica, ao dançar a vida, cantando, ao mesmo tempo, a cidade possível e desejada. Podemos atingir a cidade que virá numa perspectiva coral: nas letras de Vinícius e Cartola, no sonho de liberdade das prisões, no desenho das crianças, em que não falta sol, na procissão de São Jorge, com seu vermelho inconfundível, nos grafites urbanos, que fazem da cidade um livro aberto, anônimo e coletivo, na parada gay, nos rituais de candomblé, nos rostos das mães, que perderam brutalmente os próprios filhos, nos projetos que não saíram do papel, como o túnel Rio Niterói, nos tempos de dom Pedro II.

Não se poderá jamais esgotar as possibilidades de conjugação de tempos e modos de uma cidade curinga, como a nossa, filha de metamorfose plurissecular, que cresce nas alturas para sequestrar horizontes e que se alonga, por toda a parte, com artérias novas e meios velozes, no convívio das ruas antigas e atuais, que se complementam.

Para Pedro Nava, “flanar nas ruas do Rio exige amor e conhecimento. Não apenas o conhecimento local e o das conexões urbanas. É preciso um gênero de erudição.” Um conhecimento fundado em níveis diversos, como quem lê um palimpsesto, através das camadas do tempo, sobreposições e pentimenti, como a presença quase corporal, viva, mítica do morro Castelo, embora inatingível, perdido na memória afetiva da cidade, com a igreja de São Pedro dos Clérigos, o Convento da Ajuda e o Palácio Monroe.

A leitura do palimpsesto tornou-se candente nos dias que correm com a demolição da perimetral, o projeto da zona portuária e os trilhos para os veículos leves, que devolveram, por exemplo, a visibilidade do Valongo e de São Francisco da Prainha.

Esse diálogo de sobreposição traduz a passagem da metrópole à pós-metrópole, como interpreta Vittorio Gregoretti: “a ideia de cidade, território e natureza, que representaram, por milênios, elementos dialéticos estreitamente relacionados entre si, mostram-se hoje como narrativa histórica incompleta e apontam para uma vasta diversidade de casos.”

A incompletude no Rio passa também pela necessária redemocratização da cidade, com projetos que promovam maior justiça na ocupação do solo urbano, sensíveis ao movimento dos sem-teto, criando um transporte coletivo mais integrado e sob controle da sociedade.

O Rio de Janeiro vive uma era de desafios, que esperam o mapeamento cognitivo proposto por Edward Soja, para se alcançar uma clara consciência política do espaço. Só assim o Rio poderá se transformar numa das maiores cidades do hemisfério sul na promoção da paz e da justiça.

O intenso trabalho de pesquisa foi todo realizado no impressionante acervo da Biblioteca Nacional, com seu reconhecido índice de diversidade, cuidadoso sistema de guarda e catalogação. Além das doações pontuais da curadoria, buscamos um conjunto de visões que registrasse o quotidiano da cidade em 2015, nas lentes de Adriana Lorete, Carlos Ivan, Felipe Varanda, Ivo Gonzalez, Marcelo Carnaval, Marcia Foletto,
Pablo Jacob, Pedro Kirilos, Pedro Stephan e Paulo Moreira. Também as crianças do CIEP Presidente João Goulart (Morro do Cantagalo/Ipanema) foram especialmente convidadas para desenharem uma cidade projetada no futuro, com alta densidade lírica, que atravessa um quotidiano simultaneamente conhecido e transfigurado. E como a cidade é de todos, não faltaram os alunos-detentos da escola Angenor de Oliveira Cartola, do Complexo de Bangu I, traduzindo aquela ideia de Paulo Freire da Educação como prática da liberdade, que é valor definitivo para os cariocas. Assinale-se também o novo lote de quadros comprados pela Biblioteca Nacional de Dorith de Pénasse Mouwen e Okky Offerhaus, herdeiras de Hesshaimer, bem como as gravuras cedidas gentilmente pelo IPLANRIO . Tudo isso passa a fazer parte do acervo.


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