Os índios no papel

Os índios no papel

Os índios no papel

Marco Morel
Pós-doutor em História pela Universidade de São Paulo
Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

As fontes documentais sobre as populações indígenas apresentam diversas possibilidades, contrariando a noção de documentos homogêneos em acervos unívocos. Não se trata de ignorar o peso do batismo das letras, que nomeia e estigmatiza como forma de apropriação e domesticação do objeto enfocado. Mas além de uma crítica que corre o risco de ser maniqueísta e negativista, coloca-se a perspectiva de que os grupos indígenas, enquanto sujeitos históricos, conseguem eventualmente se apropriar e se “intrometer” nos documentos, gerando suas próprias narrativas e deixando as marcas de suas culturas. Às vezes sem palavras próprias e pela escrita em códigos alheios, ou através de atitudes que expressam identidades étnicas e se perpetuam nos registros grafados.

Denunciar a manipulação historiográfica e mesmo a unilateralidade dos documentos e de sua organização em arquivos pode ser um ponto de partida. Mas a possibilidade de detectar também as intervenções que os grupos indígenas, enquanto sujeitos históricos, efetivam no contato com os “brancos” e os traços destes movimentos nas linhas e entrelinhas da documentação produzida pela cultura letrada é uma das possíveis continuações do ponto de partida. Assim, considera-se a força simbólica das narrativas históricas e literárias que integram os movimentos de Conquista e expansão da civilização ocidental e, também, a reconquista simbólica destes registros da parte dos índios, vinculada às tentativas de Reconquista de seus territórios e de sua sobrevivência enquanto grupos étnicos diferenciados e não estáticos, isto é, em transformação.

Durante os três primeiros séculos após a chegada dos europeus no território que se tornou brasileiro predominaram textos sobre os índios comprometidos, em diferentes níveis, a projetos de colonização: os séculos XVI e XVII já apresentavam esta diversidade, seja na perplexidade da carta de Pero Vaz de Caminha, nos esforços de catequese dos primeiros jesuítas ibéricos como José de Anchieta e Manoel da Nóbrega, quanto nos complexos relatos franceses de Jean de Léry e André de Thevet permeados pelo humanismo renascentista e das aventuras do germânico Hans Staden, sem esquecer as primeiras histórias escritas pelos colonos, como Pero Gandavo, Gabriel Soares de Souza e Frei Vicente Salvador. A presença indígena transbordava nestas palavras impressas que circulavam pelos quatro cantos do mundo.

Ao longo dos períodos colonial, imperial e republicano gerou-se ampla documentação administrativa em suas variadas dimensões (militar, eclesiástica, financeira e jurídica, produzidas por autoridades locais e nacionais) que procurava dar conta do “problema” indígena nas vastas regiões do continente do Brasil e muitas vezes estes documentos estão encharcados no sangue das guerras, epidemias, trabalhos forçados e outras violências cometidas. Os papéis da Casa dos Contos, por exemplo, situada no epicentro da expansão civilizadora da mineração, expressam de forma intensa este movimento de Conquista sobre as populações indígenas, não na periférica floresta amazônica, mas em área integrante do pólo central de poder econômico e político da América portuguesa.

A partir de meados do século XVIII, e com mais intensidade no século seguinte, surge o conjunto de produções dos viajantes naturalistas, inicialmente tocados pela perspectiva da Ilustração, da multiplicidade orgânica das Ciências Naturais e do fixismo das espécies, posteriormente marcados pelo evolucionismo, pela Antropologia Física, pela interdisciplinaridade entre Geografia e História e pela interseção entre o exótico e o exato.

Tais homens de ciência (em que pese o aspecto pitoresco de suas narrativas ou a propalada boa intenção e seriedade de seus integrantes) engajavam-se num projeto de dimensões planetárias, que consistia em conhecer, classificar e, também, controlar, o conjunto do “mundo natural” ainda não codificado pela civilização ocidental: botânica, zoologia, mineralogia e etnologia. Nesse sentido, apesar de aparecerem como neutros ou até humanitários, os viajantes cientistas eram também os olhos de um grande império, o da civilização ocidental.

Com a primeira leva dos cientistas-viajantes no Brasil, começa a surgir um novo tipo de contato com as tribos indígenas, vistas não apenas como inimigos a derrotar ou conquistar, ou povos a serem incorporados à religião, à civilização e à nação. Tornavam-se, ao mesmo tempo, interessantes objetos de estudos. A impressionante viagem do baiano Alexandre Rodrigues Ferreira pelas regiões Norte e Centro Oeste, os relatos publicados no jornal O Patriota, o trágico e fecundo empreendimento de Georg Heinrich Langsdorff, as conhecidas contribuições de Jean-Baptiste Debret, M. Rugendas, Auguste de Saint-Hilaire e M. Wied-Neuwied, ao lado de muitos outros, compõem um amplo, diversificado e sistemático corpo de conhecimentos pela iconografia e pela escrita sobre as populações indígenas. A viagem de Von Martius e Spix, surgida no contexto da abertura do Brasil às “nações amigas” durante a instalação da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, resultou, após anos de estudos e elaboração, na primeira classificação abrangente das línguas indígenas no país, ainda hoje usada como referência básica.

Na segunda metade dos oitocentos aparecem, ao lado dos viajantes individuais, as comissões e expedições científicas, como as de Gonçalves Dias, de Manoel Ferreira Lagos e Francisco Freire Alemão e Charles F. Hartt, buscando complementar e completar em nosso território o grande inventário global, ainda hoje inconcluso.

Os índios eram captados pelo desenho científico, aquarelas, litografias, pinturas a óleo e pela nascente fotografia. E tornavam-se alvos de variados escritos: memórias, relações, relatos etnográficos, descrições antropométricas, estudos monográficos, corografias, mapas, artigos na imprensa periódica, correspondência privada, crônicas históricas e historiografia, além de destacados nas grandes Exposições nacionais e internacionais. Ocorria, ao mesmo tempo, instigante paradoxo: quanto mais visíveis como objeto da ciência, menos visíveis ficavam os índios em sua condição de agentes históricos.

A associação vigente durante séculos entre os índios e o “mundo natural”, por mais que pareça, justamente, naturalizada, pode induzir à permanência da concepção de que aqueles não produzem cultura, na medida em que se confundem com a Natureza ou estão mais próximos dela. Os contatos de cinco séculos entre os povos chamados de indígenas e os representantes da civilização ocidental nas terras brasílicas ocorreu entre grupos diversos de ambos as partes, gerando, ao lado de violências e guerras, interações e influências recíprocas. Não é a toa que estudos de genética das populações apontam que um terço da população considerada branca no Brasil atual possui ascendentes indígenas. Além de se constituírem como Outro, os índios somos nós, modificados ambos ao longo do tempo. A noção do índio genérico, anônimo e unificado é uma dentre as armadilhas legadas por gerações e gerações de intelectuais comprometidos com a perspectiva da colonização e, posteriormente, da homogeneização nacional.

Na época da chegada dos primeiros europeus calcula-se a existência aproximada de 1.200 línguas diferentes (que abrangiam número maior de etnias e, estas, de tribos). Hoje ainda existem cerca de 180 línguas faladas no interior da nação brasileira, na qual o português tornou-se sem dúvida hegemônico. Muita coisa desapareceu nestes cinco séculos, mas nem tudo se extinguiu. Cada uma destas línguas e suas respectivas identidades étnicas se constituem numa expressão específica de complexo patrimônio de conhecimentos sobre a fauna, flora, clima, medicina, técnicas de alimentação, terras, modos de vida, tradições históricas e visões de mundo. Boa parte deste patrimônio cultural e histórico das populações nomeadas como indígenas foi descrito, enquadrado, moldado e apropriado em imagens e palavras nos papéis que hoje constam dos acervos públicos, como o da Fundação Biblioteca Nacional, e que agora navegam para as telas dos computadores.

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