Alexandre Rodrigues Ferreira

Ronald Raminelli
Doutor com est�gio p�s-doutoral na EHESS-Paris
Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense
Laborat�rio Companhia das �ndias

            Comandada pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, a Viagem Filosófica foi a mais importante expedição científica portuguesa do século XVIII. Ela percorreu o interior da América portuguesa durante nove anos e produziu um rico acervo, composto de diários, mapas populacionais e agrícolas, cerca de 900 pranchas e memórias (zoológicas, botânicas e antropológicas). Os diários, a correspondência e umas poucas memórias somente foram publicados a partir da segunda metade do século XIX, sobretudo na Revista do Instituto Histórico. Na década de 1870, os três primeiros volumes dos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro divulgaram uma enorme lista de manuscritos oriundos da viagem. No entanto, somente na década de 1970, o Conselho Federal de Cultura editou uma parte representativa das pranchas e memórias. Deve-se destacar, porém, que ainda há documentação da maior importância que continua inédita em arquivos portugueses e brasileiros. Na Fundação Biblioteca Nacional e no Arquivo Histórico do Museu Bocage estão depositados os principais registros textuais e visuais da expedição.

             O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira era morador da Bahia e filho de comerciante, e estabeleceu-se em Coimbra ainda muito jovem, com 14 anos. Na Universidade, matriculou-se, inicialmente, em Instituta (1770) e depois na Faculdade de Leis (1773), sem comparecer no auto de encerramento. A partir de 1774, iniciaram-se seus cursos na Faculdade de Filosofia Natural com duração de três anos. Consta ainda matrícula na Faculdade de Matemática, em 4 de novembro de 1775. Acabou formando-se em Filosofia Natural em 2 de julho de 1778 e obteve ainda o título de doutor em 10 de janeiro de 1779. Suas escolhas iniciais apontavam para carreira de magistrado, forma mais segura e direta de inserção na burocracia metropolitana ou colonial. Ao escolher filosofia natural, ele se arriscava a não encontrar cargo na burocracia, ou a desempenhar funções sem o mesmo prestígio dos magistrados. A rápida passagem pela Faculdade de Matemática, talvez, fosse uma estratégia para alcançar o título de cavaleiro da Ordem de Cristo, pois os melhores alunos seriam agraciados com essa mercê e teriam a preferência para ocupar qualquer cargo nos Amoxarifados, segundo o Estatuto da Universidade de Coimbra de 1772. Seu excelente desempenho na Faculdade de Filosofia permitiu-lhe, porém, exercer o primeiro cargo de naturalista na burocracia estatal. Teria ele a tarefa de percorrer as possessões “com a laboriosa comissão de ele ser o primeiro vassalo Português, que exercitasse o nunca visto em Portugal, nem antes do feliz reinado de Sua Majestade, exercitado emprego de Naturalista”.

            Contando com recursos precários, Ferreira comandou a Viagem Filosófica que percorreu as capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá entre 1783 e 1792. O grupo era composto de um naturalista, um jardineiro botânico, Agostinho do Cabo, e dois riscadores (desenhistas), José Codina e José Joaquim Freire. A Viagem Filosófica foi planejada pela Secretaria de Estado de Negócios e Domínios Ultramarinos e pelo naturalista italiano Domenico Vandelli, radicado em Portugal desde o fim do período pombalino. No mesmo ano da partida da Viagem Filosófica, duas outras expedições foram lançadas aos domínios lusitanos. Empreendidas por bacharéis em Coimbra, as viagens de Manuel Galvão da Silva e Joaquim José da Silva pretendiam investigar Goa, Moçambique e Angola.

            Inicialmente planejada para ser composta por quatro naturalistas, a Viagem Filosófica à América ficou resumida a um apenas, sem contar com os drásticos cortes financeiros e materiais. Nessas condições, ficaram sobre os ombros de Alexandre R. Ferreira e uns poucos auxiliares as tarefas de coletar espécies, classificar e prepará-las para o embarque rumo a Lisboa. Estudavam ainda o desempenho das lavouras, os percursos de rios e produziam mapas populacionais e agrícolas. Cabia-lhes também verificar as condições materiais das vilas e fortalezas destinadas a suportar as possíveis invasões estrangeiras. Esses aspectos constituem o corpo dos diários e memórias produzidos ao longo da Viagem Filosófica.

            Há mais de um século a historiografia se divide em relação ao caráter científico dessa viagem. A farta bibliografia dedicada a Ferreira prima por exaltar seus feitos, tornando-se, por vezes, obras apologéticas, estudos de exaltação ao naturalista esquecido e abandonado pela sorte. Em 1895, Emílio A. Goeldi, no entanto, apontou a insuficiência das memórias sobre botânica e zoologia. Faltou ao naturalista, ressaltou Goeldi, educação profissional. Em resposta às provocações, Carlos França escreveu, em 1922, um artigo em defesa do naturalista, apontando a qualidade científica das memórias e culpava Vandelli, considerado “estrangeiro traidor”, por inviabilizar o aproveitamento posterior do material coletado por Ferreira. O americano William J. Simon destacou a importância de Alexandre R. Ferreira para o progresso do conhecimento na História Natural. Rómulo de Carvalho descreveu a enorme coleção deixada por Ferreira. Ao longo da jornada, ele compôs dezenas de memórias e centenas de desenhos, recolheu artefatos da cultura indígena e espécies dos três reinos. Recentemente, P. E. Vanzolini considerou que a expedição almejava, sobretudo, metas de caráter administrativo e estratégico, assegurando aos portugueses a posse e exploração de fronteiras ainda indefinidas e disputadas por metrópoles européias.

            Para além da polêmica, deve-se destacar que, nem sempre, a Viagem Filosófica pautou-se nas normas setecentistas para a coleta e descrição do material. As memórias sobre plantas e animais destacaram, sobretudo, o caráter econômico e utilitarista, em detrimento dos avanços científicos. O farto material permaneceu, por quase um século, desconhecido e não foi devidamente estudado pelos sábios portugueses, nem mesmo por Ferreira. Ao retornar a Lisboa, o naturalista dedicou o resto de sua vida à administração metropolitana, sendo nomeado vice-diretor do Real Gabinete de História Natural e do Jardim Botânico e administrador das Reais Quintas da Bemposta, Caxias e Queluz. Jamais retornaria os trabalhos com as espécies e amostras recolhidas na viagem; as memórias não foram aperfeiçoadas, aprimoradas e publicadas. Boa parte desses fragmentos da natureza amazônica seria, mais tarde, conduzida a Paris como botim de guerra. Em poucas ocasiões, Alexandre Rodrigues Ferreira observou a natureza e as comunidades indígenas como um naturalista setecentista, mas antes como um leal funcionário da coroa lusitana. A Viagem Filosófica, portanto, era parte de um empreendimento colonial destinado a empreender reformas de caráter ilustrado em um território desconhecido e disputado pelas metrópoles européias. Desgostoso, entrevado e alcoólatra, Ferreira morreu em 1815.  

            Apesar dos percalços, nas pranchas e memórias dedicadas aos tapuias, Ferreira esboçou uma classificação muito original para identificar as diferentes etnias da Amazônia. Nesse sentido, ele recorreu aos corpos, às deformidades físicas e aos artefatos para identificar os grupos e entender a sua capacidade de controlar a natureza. As roupas, armas e moradias eram indícios do grau de organização social das comunidades. A forma de controlar a natureza era, enfim, indício da evolução técnica dos povos. Embora pouco explorada, essa abordagem era, à época, extremamente inovadora, o que demonstra a inserção do naturalista nos debates dedicados a explicar a diversidade de raças e costumes.