D. JOÃO VI E A BIBLIOTECA NACIONAL

O papel de um legado

Em novembro de 1807, a família real portuguesa embarcava para o Brasil como estratégia para escapar da invasão napoleônica e manter o governo do império colonial português. Na bagagem, constavam os bens considerados mais importantes para a monarquia: documentos relativos à administração real, equipamentos necessários para a mesma atividade e o que era considerado tesouro real ou do Estado – ouro, joias, tapeçarias, alfaias em geral e, também, a Biblioteca dos Reis.

A dramática e confusa saída da Corte fez com que a Biblioteca, já embalada para o transporte, fosse esquecida no cais. Somente em 1810, seus "caixões" começaram a chegar ao Rio de Janeiro, o que se estendeu em mais duas levas, até o ano seguinte.

Inicialmente, o acervo foi depositado no andar superior do Hospital da Ordem Terceira do Carmo, mas sendo essas instalações consideradas inadequadas, foi transferido, atendendo ao disposto no decreto de 29 de outubro de 1810, para as catacumbas do Convento do Carmo. Essa data passou a ser considerada a de fundação da Biblioteca Nacional, que atendia pesquisadores devidamente autorizados pelo príncipe regente. Quatro anos mais tarde, ela seria franqueada ao público em geral.

A Biblioteca Real, ainda em Portugal, sempre foi vista como motivo de orgulho pela monarquia, sendo reconhecida pelos sábios como uma das mais preciosas da Europa. O terremoto de Lisboa, em 1755, destruiu seu acervo, cuja reunião fora começada por outro João, o I – o "da boa memória" (1385-1433). Entre as tarefas de reconstrução que então se impunham, a recomposição da Biblioteca foi prioritária.

A nova coleção foi montada com recurso a compras, doações e oportunas tomadias. No início do século XIX, aproximava-se, em termos quantitativos, dos 70.000 itens que possuía antes de 1755, entre manuscritos raros, incunábulos, livros, gravuras, mapas, moedas etc.

No Brasil, seu conjunto continuou crescendo, tanto por doações, como a da coleção de frei José Mariano da Conceição Veloso, especializado em Botânica (1811), quanto por compras, como a do acervo do jurista Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1815), da coleção de papéis e gravuras do arquiteto José da Costa e Silva (1818), e da livraria de D. Antonio de Araújo e Azevedo, o conde da Barca (1819).

No retorno à Europa, em 1821, D. João levou apenas uma parte dos manuscritos referentes à história de Portugal. Assim, quando da negociação da independência do Brasil, a coleção foi arrolada e avaliada em termos da indenização devida à família real portuguesa pelos bens e valores deixados no Brasil, atingindo a soma de 800 contos de réis. Seu pagamento constituiu uma parcela do empréstimo de 2 milhões de libras esterlinas com que se inaugurou a dívida externa brasileira com a Inglaterra.

O núcleo inicial, em uma parte trazido e em outra parte adquirido por D. João em terras fluminenses, é apenas uma parcela pequena do total de 9 milhões de peças (entre livros, manuscritos, periódicos, estampas, mapas, partituras etc.) que compõem atualmente seu acervo e fazem da Biblioteca Nacional uma das mais importantes do mundo.

A exposição D. João VI: o papel de um legado, inaugurada em novembro de 2008 no Centro Cultural da Justiça Federal, é agora disponibilizada ao internauta em sua versão virtual. Apresenta peças de variadas naturezas, como documentos administrativos, mapas, livros, manuscritos e gravuras referentes ao Período Joanino que pertencem ao acervo da Biblioteca Nacional. Nosso passeio se inicia com um panorama da Colônia às vésperas da transferência da Corte, passa pelos momentos cruciais da transmigração da Corte Portuguesa em 1807-1808, retrata a sua estadia no Brasil entre 1808 e 1821 – mostrando as transformações na Cidade do Rio de Janeiro para receber os novos moradores, a fundação da imprensa e diversos órgãos administrativos, a redescoberta do Brasil por exploradores europeus das mais variadas nacionalidades – e termina novamente no cais de Belém quando, por exigência daqueles que lá ficaram, El-Rey D. João VI é obrigado a retornar. Com esta decisão, assegurou sua permanência no trono, mas não conseguiu manter a unidade do Império. Essa constatação, no entanto, não invalida sua obra. Ao contrário, fica claro que, se a origem da Biblioteca Nacional se prende à ideia de um legado de D. João, a Casa se assume e é vista, como comprovam suas coleções, o grande número de usuários que as manuseiam e o próprio crescimento constante de seu acervo, como um legado que o Brasil de hoje deixará para o mundo de amanhã – um patrimônio que o presente preserva para o futuro.