Georges Bernanos e o Brasil

Daquilo que poderia parecer um acidente de percurso, uma escala no Brasil que finalmente vai se estender por sete anos (1938-1945), Georges Bernanos fará mais tarde uma predestinação: “[…] desde que voltei ao meu país, compreendo melhor do que antes que minha estada no Brasil não foi apenas um mero episódio de minha singela vidinha, mas estava inscrita desde sempre na trama de meu destino. Amei o Brasil por uma série de razões, mas em primeiro lugar, e antes de tudo, porque eu nascera para amá-lo” (Carta a Raul Fernandes, Bandol, 1° de março de 1946).

Fugindo da França e da Europa, após sua estadia nas Ilhas Baleares e seu panfleto contra o terror franquista, Os grandes cemitérios sob a lua, Georges Bernanos aspirava realizar um antigo projeto que três amigos de juventude tinham concretizado bem antes dele: se instalar no Paraguai. Ele embarca em Marselha no dia 20 de junho de 1938, com destino a América do Sul. Mas nem Assunção nem Buenos Aires ofereciam oportunidades que se adaptassem ao magro pecúlio que ele reunira. Portanto, é no Rio de Janeiro que ele ancora, no início de setembro. Logo circundado por um grupo de intelectuais católicos que admiram e auxiliam o autor de Diário de um pároco de aldeia (1936), ele inicia uma busca incerta que o leva dos hotéis cariocas a Pirapora, nas profundezas setentrionais de Minas Gerais, passando por Itaipava, Juiz de Fora e Vassouras, antes de finalmente estabelecer sua “tribo”, em agosto de 1940, perto de Barbacena, na Cruz das Almas.

A meio caminho entre Belo Horizonte e o Rio de Janeiro, esta propriedade a qual ele acrescentou três construções vai representar para o escritor um período de estabilidade e de retorno a um certo equilíbrio, mesmo se com frequência ele reside no Rio, especialmente em 1944-1945. Enquanto sua filha Claude administra a fazenda, ele peleja contra a liquidação pétainista na mídia internacional, como a da França livre, a BBC, e nos jornais brasileiros, opinando regularmente, a partir de junho de 1940, n’O Jornal, um dos órgãos dos Diários Associados pertencentes à Assis Chateaubriand. De maio de 1940 a maio de 1945, ele redige mais de trezentos artigos ou mensagens radiofônicas, alguns deles tendo permanecidos inéditos, em marcha “à honra como quem marcha ao canhão”. (Essais et écrits de combat, tomo II, Paris: Gallimard, “Bibliothèque de la Pléiade”, 1995, p. 203).

Portanto, se o Brasil foi para Bernanos uma terra de exílio, um refúgio onde “digerir a vergonha” do “espírito de Munique”, após também ter sido por algum tempo a terra onde sonhou refundar uma aldeia, uma paróquia da “antiga França”, o escritor ali teceu rapidamente sólidas amizades. Entre os mais próximos, ele encontrou apoios preciosos de gente que não mediu esforços para lhe abrir um espaço de vida e de expressão: Virgílio de Mello Franco, Raul Fernandes, Geraldo França de Lima e Pedro Octavio Carneiro da Cunha, ou ainda Edgar de Godoy de Mata Machado, tradutor de Diário de um pároco de aldeia, a crítica Lucia Miguel Pereira, que por algum tempo traduziu seus artigos, e seu editor no Rio, Charles Ofaire (Atlântica editora), o primeiro a publicar Monsieur Ouine (romance finalizado em Pirapora, em 1941), Lettre aux Anglais (1942) e Le Chemin de la Croix-des- Âmes (coletânea de intervenções publicada em quatro volumes, de 1943 a 1945). A isso é preciso acrescentar seu diálogo com intelectuais e poetas católicos de renome: Augusto Frederico Schmidt, Jorge de Lima (cuja tradução espanhola de Poemas é prefaciada por Bernanos), Alceu Amoroso Lima (que trouxera ao Brasil o casal Maritain em 1936), Austregésilo de Athayde, Murilo Mendes…, que darão sobre ele vibrantes testemunhos de consideração e de amizade.

Sua fama, claro, foi bem diferente da de Jacques Maritain, que desempenhou um papel relevante, tanto no Brasil quanto na América Latina, para a difusão do neotomismo e a evolução política do catolicismo à democracia. Obstinado pela liberdade de tom e de pensamento, Georges Bernanos não tem a maleabilidade diplomática do teólogo que, outro sinal de diferenciação, durante a guerra escolheu com sua mulher o exílio americano. Aliás, o escritor terá tido com o editor de Sob o sol de Satã (1926) uma relação em geral mais tensa do que amistosa. Esbravejava, vituperava, com o risco de por vezes incomodar seus interlocutores, desestabilizados por tiradas como aquela contra “o Alto Banco israelita” que originou uma polêmica com Otto Maria Carpeaux (janeiro-maio de 1944). Monarquista invocando uma nova “revolução de 89”, ele irrita também os meios gaullistas, às vezes quase tanto quanto serve-lhes à causa, como por exemplo ao resistir aos chamados do general que o queria ao seu lado. Em todo caso, naqueles tempos conturbados, Georges Bernanos encarnou, com seu verbo potente e livre, tanto junto a intelectuais brasileiros frequentemente opostos à ditadura de Getúlio Vargas, quase sempre francófilos e hostis às forças do Eixo, quanto junto à parcela da colônia francesa que não se resignando ao regime de Vichy às vezes ainda permanecia, por causa do estatuto, presa a uma certa reserva, Bernanos encarnou a dignidade e a continuidade de um certo “modelo” francês.

Documentos associados

Se os textos que Georges Bernanos redigiu no Brasil — essencialmente escritos de luta, mas também diários e correspondência —, decepcionam a curiosidade exótica ou pitoresca, é porque seu desejo e seu olhar estão mobilizados pelo campo de batalha europeu e seus próprios ideais de cristandade cavalheiresca. Não se poderia deduzir disto uma indiferença em relação ao país e a sua cultura, que é, ao contrário, objeto de uma grata benevolência e, além disso, contraponto ideal ao american way of life que ele abominava. Georges Bernanos leu inúmeros livros brasileiros quando de sua estada no Brasil, confessando um fraco por dois dentre eles: as picarescas Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida (1854), do qual uma versão francesa foi publicada justamente nesse período por seu editor Charles Ofaire (Mémoires d’un sergent de milices, tradução de Paulo Rónai, Atlântica editora, 1944); e o frescor das recordações de infância de Helena Morley, Minha vida de menina, publicado também durante essa época, em 1942, e que tem como cenário Minas Gerais do fim do século XIX. Em janeiro de 1945, ao declinar o convite para participar do primeiro congresso da Associação Brasileira de Escritores (ABDE), ele enviou a seus membros uma calorosa mensagem onde disse: “[…] da admiração e gratidão que sinto pelos escritores brasileiros, em particular pelos romancistas e poetas cujas obras foram muitas vezes um reconforto para minha solidão de Cruz das Almas.”