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Acervo BN | Walkyrias: feminismo na alta sociedade carioca

11 jun 2022

Artigo arquivado em Acervo da BN
e marcado com as tags Brasil Republicano, Conquista do Direito ao Voto Feminino, Emancipação Feminina, Era Vargas, Estado Novo, Feminismo, Imprensa Feminina, Periódicos BN 100 Anos, Secult

Em agosto de 1934 uma revista de pompa e responsa surgiu no mercado editorial da capital federal, o Rio de Janeiro. Era Walkyrias, um fino mensário ilustrado de altos padrões gráficos e editoriais. Voltado ao público feminino de elite, fazia a cabeça não só de leitoras cariocas, mas de todo o Brasil. De fato, não era uma revista qualquer: por trás de sua concepção havia um projeto político e pedagógico de esclarecimento e comprometimento com a mudança da realidade da mulher brasileira. Dirigida por sua proprietária, a escritora, jornalista e militante feminista Jenny Pimentel de Borba, a publicação parecia focar, em primeiro plano, moda, literatura, artes visuais, artes cênicas e eventos sociais diversos, dando os devidos holofotes à movimentação cultural da high-society carioca: destacava respeitáveis senhoras, belas debutantes, graúdos homens de negócios e sisudas autoridades entre coquetéis, saraus, exposições, banquetes suntuosos, exibições teatrais, noites de gala em cassinos ou hotéis, festas anunciando bodas, solenidades, eventos esportivos, etc. Por outro lado, fruto de seu caráter moderno, liberal, engajado e cosmopolita, a revista surfava na conquista do direito ao voto feminino no Brasil, iniciada por um decreto presidencial de Getúlio Vargas em 1932 e concretizada na Constituição de 1934. Abordava, assim, o feminismo e a emancipação feminina na sociedade patriarcal - lançando mão, para tanto, de artigos de figuras como Bertha Lutz, Gilka Machado, Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, entre outras.

Impressa a cores e em alta qualidade, Walkirias foi mantida por Jenny Pimentel de Borba por todo o auge de sua carreira, sobretudo ao longo da década de 1930 e metade da década de 1940. Foi após o lançamento de sua revista que se viu na crista da onda no meio intelectual carioca, após publicar "Mendiga de amor", seu romance de estreia na literatura, em 1935. Fundou em seguida a Borba Editora, onde lançou outros quatro livros, até 1943. Por sua atuação na imprensa e como intelectual ligada aos meios oficiais, em 1948 Jenny foi ainda "diretora artístico-social" da revista de vulto Fon-Fon!, tendo passagem pelo magazine Café Society, entre janeiro e junho de 1955. Andou também pelos diários de grande circulação Correio da Manhã e Diário de Notícias. Walkirias, afinal, circulou ininterruptamente por cerca de 12 anos, caindo na irregularidade de sua periodicidade por volta de 1946, aparentemente conforme sua diretora assumia voos maiores na carreira - irônica e compreensivelmente, esse foi o momento em que a revista aparentava estar no ápice, com grande volume de publicidade e quase 80 páginas por edição.

Após sua editora colher os frutos do prestígio angariado sobretudo durante o Estado Novo, Walkyrias foi retomada em agosto de 1955, com o lançamento de um novo número 1, ano 21 de publicação. Mas, afinal, a revista circulou nessa segunda fase, onde aparecia com o subtítulo de "Revista das elites", com menos páginas - de cerca de 30 a 50 por edição. E acabou não vingando pela segunda vez. De um número para outro ocorriam hiatos consideráveis, de modo que em alguns dos anos seguintes apenas cinco edições foram lançadas. Ainda assim, Walkyrias foi até pouco depois da vidada de década, deixando de ser publicada somente após o lançamento de seu número 129, ano 26, de dezembro de 1960. Embora ainda fosse propriedade de Jenny, desde 1957 vinha sendo dirigida por Júlio Ruy da Costa Borba, seu marido, que previamente figurava em expediente como responsável pelo "controle artístico" e depois como "diretor técnico" da publicação.

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Natural de Serra Negra, no interior de São Paulo, onde nasceu a 6 de maio de 1906, Jenny Pimentel vinha de uma família tradicional e abastada. Não aceitavam seu comportamento autônomo e emancipado, e muito menos sua união com o gaúcho Júlio Ruy da Costa Borba. Casados em 1930, quando ela tinha apenas 24 anos, ambos migraram para o Rio de Janeiro, procurando vida nova. Dona de uma voracidade intelectual fora da curva e sabendo estabelecer suas conexões, em pouco tempo Jenny estreitou contato com importantes figuras da efervescência cultural modernista de seu tempo. Foi quando viu meios de lançar sua própria revista. Nascia, assim, Walkyrias, em agosto de 1934.

Em sua edição de estreia na imprensa, Walkyrias trazia, à guisa de editorial, um texto de Anna Amélia de Mendonça intitulado "Amazonas e feministas", acompanhado de uma fotografia tirada de um evento sufragista onde aparecem, numa mesa, Bertha Lutz, Maria Eugênia Celso, Maria Luiza Bittencourt, Heloísa Rocha, Carmen Portinho Lutz, Lina Hirsch e Georgina Barbosa Vianna. Ali, Anna Amélia expressava:
Eu venho da terra das Icamiabas, as mulheres guerreiras que abandonaram pelo amor humano da gloria, a gloria humana do amor. (...) Na sua ansia de conquistas e de victorias, ellas ambicionaram uma liberdade selvagem, affrontaram os encontros sangrentos, as lutas com o inimigo e com as feras, affirmando a bravura do sexo e proclamando a revolta contra o homem. Não quizeram permanecer submissas, embaladas ao aconchego da rêde de tucum, na doce dependencia do braço viril que abatia a caça e afastava o perigo. Adivinharam, na rudeza dos seus impetos, que a metade de um povo não deve pesar sobre a outra metade. Mas não souberam adivinhar que na harmonia das duas forças é que reside a força universal. (...) Fugitivas do amor, sonhadoras de um destino rebelde e inhumano, - gloriosas pela aventura e pela energia - eu vejo, na distancia dos seculos, o vulto guerreiro das walkyrias icamiabas, como um desfile de numes propiciadores, em guarda ao nosso generoso e sadio feminismo de hoje, feminismo pacifista e igualitário, maternal e humano, que prepara lentamente, mas seguramente, as brasileiras que despertam para o seu verdadeiro logar na vida nacional.

Já a edição número 4 de Walkyrias, de setembro de 1934, vinha com outro editorial, dessa vez do punho da própria diretora da revista. Em termos menos poéticos e mais concretos, Jenny Pimentel citava a nova Constituição de 1934 e seus desdobramentos na vida social brasileira, pregando a favor da eventual (e consequente) fundação de um partido político essencialmente feminino, voltado ao progresso nacional nos âmbitos "moral, artistico, social e pacifista":
Até ha pouco a mulher brasileira nem siquer possuia o direito do voto, e hoje é uma expressão a avalanche feminina de intellectuaes, de jornalistas, de operárias, que, hombro a hombro com o homem vêm prestando o seu concurso, dando uma prova de capacidade e offerecendo mesmo uma certa preoccupação áquelles que continuam ingenuamente a vel-a sempre como elemento inferior (...). É mistér, entretanto, que haja um Partido Feminino, essencialmente feminino na direcção da defesa de certos interesses, pois uma vez adquiridos os direitos politicos não deve deposital-os, compromettel-os, entregando o eleitorado feminino nas mãos de um partido cujo "condottiere" saberá, com habilidade de profissional politico manejar não só as "leaders" dos partidos já existentes, como todo o programma das associadas, de accordo com os interesses do seu grupo.

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Ao longo dos anos, os temas explorados por Walkyrias uniram o mundano ao engajado, mostrando, lado a lado, tanto conteúdo voltado à emancipação feminina quanto assuntos como moda, arte, beleza, lar e família, normalmente tidos, na imprensa tradicional, como de interesse feminino. Entre dicas de roupas e acessórios arrojados e reportagens apresentando a vida de invejáveis senhoras da alta sociedade no Brasil e no mundo, de acordo com as tradições do colunismo social então em voga, pipocavam assuntos como literatura feminina, o papel da mulher em determinadas tradições literárias, vida e obra de importantes feministas, direitos políticos para as mulheres, questões de saúde feminina, cirurgias estéticas, a mulher depois da Segunda Guerra Mundial, educação feminina, culinária e utilidades domésticas, decoração do lar, exemplos de mulheres pioneiras em determinadas profissões ou cargos públicos, relatórios de Convenções Nacionais Feministas, mulheres por trás de personalidades masculinas, apoio a iniciativas comerciais femininas (como o lançamento da Editora Ravaro, da escritora e jornalista Rachel Prado), industrialização do Brasil, esportes, a importância da atividade física para a saúde a a beleza, as atuações da Cruzada Nacional de Educação ou da Legião Brasileira de Assistência no país, humor e curiosidades, etc. Algumas vezes traduzidos do francês ou do inglês, poemas, textos em prosa, crítica, artigos e ensaios abordando o universo das artes davam o forte tom cultural da revista, sempre disposta a publicar medalhões literários. Feminismo, luxo, arte e beleza: eis os pilares de Walkyrias.

Após o golpe constitucional que instaurou o Estado Novo no Brasil, em 1937, Walkyrias parece ter dado menos ênfase ao conteúdo explicitamente feminista e politicamente engajado em suas edições - moda, beleza, artigos de luxo e cultura parecem ter sido assuntos mais explorados no momento, embora algumas matérias dando conta de ações estatais do governo de Getúlio Vargas tenham despontado em suas páginas, eventualmente. Aos poucos, em muitas ocasiões, sobretudo na fase pós-1955 da revista, conteúdo provavelmente pago destacando grandes feitos de políticos e empresários deram o tom de edições quase completas de Walkyrias.

Inicialmente, a redação e a administração de Walkyrias funcionavam no segundo andar do antigo número 33 da Avenida Passos, na região central do Rio de Janeiro. Seu número 1, impresso na gráfica Morena & Valeriano, no número 154 da Rua Buenos Aires, foi vendido a 1.500 réis, mas as edições seguintes, tiradas pela livraria e tipografia Pimenta de Mello & Cia., do número 34 da Rua Sachet (atual Travessa do Ouvidor), vieram com preço de capa menor, de 1.000. Somente com a Segunda Guerra Mundial o valor voltaria aos 1.500 réis iniciais. Assinaturas anuais, todavia, podiam ser feitas a 25 mil réis. Ao longo de sua trajetória, Walkyrias contou com representantes distribuindo a revista por diversas capitais brasileiras - em sua fase pós-1955, chegou mesmo a possuir agentes na Europa.

A partir da edição número 14 do ano 2 da revista, de setembro de 1935, a redação e a administração da mesma passaram a funcionar na sala 13 do primeiro andar do número 279 da Avenida Presidente Wilson, ainda no Centro carioca. No ano de 1939, entretanto, Walkyrias se instalou brevemente no primeiro andar do número 32 da Rua Evaristo da Veiga, para depois, no segundo semestre do ano, passar a funcionar no segundo andar do número 111 da Rua Buenos Aires. Em meados dos anos 1940, momento em que aparentava boa saúde financeira e laços estreitos com o governo federal, a revista ocupara o segundo andar do número 51 da Rua da Quitanda, para, a partir de 1955, em sua fase de retomada, manter sede em seu último endereço, com redação, administração e departamento de publicidade no terceiro andar do prédio de número 3102 da Avenida Atlântica, em Copacabana.

Quando de seu lançamento, a revista se anunciava como "um dos mais eficientes meios de publicidade", publicando, de fato, muitos anúncios de casas têxteis das cercanias da Avenida Passos. Mas não só isso: ao longo dos anos, o material publicitário que trazia refletia o poder aquisitivo de seu público-alvo: finos vestuários e artigos de beleza (sobretudo perfumes e joias), filmes em cartaz nos cinemas, modernos aparelhos de rádio, hotéis, cigarros, seguros e serviços bancários, prataria, artigos de armarinho ou voltados ao consumo infantil, etc.

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Jenny faleceu em um abrigo para idosos na cidade de Nova Friburgo, na serra fluminense, em 30 de junho de 1984, pouco mais de um ano depois do passamento de Júlio Ruy, seu marido de longa data. Na literatura, a intelectual teve cinco filhos: os romances Mendiga de amor (1935), 40 graus à sombra (1940), Mormaço (1941), Braza (1942) e Paixão dos homens (1943). Mas, talvez, Walkyrias tenha sido sua contribuição de maior projeção cultural. Na revista, além de figurar como diretora e articulista, Jenny ainda ilustrava muitas de suas capas. E constantemente se mostrava. Era personalidade ativa no jet set carioca e nos meios governamentais, sempre clicada em eventos sociais de diferentes naturezas.

Além dos escritos e desenhos de Jenny Pimentel e de feministas como Bertha Lutz e Gilka Machado, Walkyrias contou, como integrantes de sua redação ou como colaboradores eventuais, com os serviços de diversas figuras de vulto: Maria Eugênia Franco, Lygia Fagundes Telles, Esther Leão, Lúcia Miguel Pereira, Margarida Lopes de Almeida (filha de Júlia Lopes de Almeida), Tarsila do Amaral, Ítala Gomes Vaz de Carvalho, Zenaide Andréa, Rachel Prado, Anita Paim, Francisca de Vasconcellos Basto Cordeiro, Vera Pacheco Jordão, Aurora Jardim Aranha, Elisabeth Bastos, Barbara Norton, Anésia de Andrade Lourenção, Eurídice Taís, Vera Pacheco Jordão, Zuleika Lintz, Esther Ferreira Viana Calderon, Niomar Moniz Sodré, Adalgisa Nery, Nair Rego Barros, Joanita Borel Machado, Henriqueta Lisboa, Violeta Branca, Dinah Silveira de Queiroz, Cecília Meireles, Sylvia Patricia, Maria Eugenia Celso, Josefina Peña, Consuelo Pimentel Marques, Helena Ferraz, Mercedes Dantas, Dilke de Barbosa Rodrigues, Solange Fernandez de Gamboa, Laurina Lialdi, Yolanda Jordão Breves, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Herbert Moses, José Carlos de Macedo Soares, Ronald de Carvalho, Henrique Fabregat, Olegario Marianno, Moacyr de Almeida, Aci Carvalho, Paschoal Carlos Magno, Pereira da Silva, Santa Rosa, Luís Sá, entre outros.

 

Explore os documentos:

Em sua edição de lançamento, de agosto de 1934, Walkyrias trazia um manifesto assinado por Bertha Lutz e o relato da "Festa da victoria" na Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, quando da conquista do direito ao voto para mulheres no Brasil, dois anos antes:

http://memoria.bn.br/DocReader/337234/1

http://memoria.bn.br/DocReader/337234/14

http://memoria.bn.br/DocReader/337234/43

 

Em seu número 3, de outubro de 1934, Walkyrias mostrava a recepção que a revista teve no restante da imprensa, em cerimônia na Associação Brasileira de Imprensa (ABI):

http://memoria.bn.br/DocReader/337234/138

 

Emancipação feminina na publicidade: anúncio da S. Paulo Cia. Nacional de Seguros de Vida dizia às leitoras de Walkyrias: "Não hesite! Não siga o erro de seu marido e assine sua proposta"

http://memoria.bn.br/DocReader/337234/60

 

A sexta edição de Walkyrias, de janeiro de 1935, vinha com o relatório da Segunda Convenção Nacional Feminista, então sob a presidência de Lily Lages. Na mesma edição, Elisabeth Bastos discutia "O rouge, o baton, o lar e o feminismo":

http://memoria.bn.br/DocReader/337234/324

http://memoria.bn.br/DocReader/337234/386

 

Literatura: entre poemas e contos, de autoras e autores brasileiros ou traduzidos, Walkyrias trazia vozes femininas em suas páginas, a exemplo de Violeta Branca, na edição número 29 do ano 3, de dezembro de 1936:

http://memoria.bn.br/DocReader/337234/1702

 

Entrando em fase cada vez mais ligada ao Estado, Walkirias passa a publicar matéria governista no pós-1937. Em sua edição número 87, de dezembro de 1941, a "palavra presidencial" de Getúlio Vargas ganhava destaque. Ainda assim, a mesma edição abordava a atuação feminina em diversos setores laborais, muito por conta das necessidades econômicas do Ocidente em plena Segunda Guerra Mundial:

http://memoria.bn.br/DocReader/337234/4005

http://memoria.bn.br/DocReader/337234/4016

http://memoria.bn.br/DocReader/337234/4017

 

Entrando em 1943, edição número 102 de Walkyrias destaca a brigada feminina do Natal dos Pobres no Palácio do Catete, comandado por Darcy Vargas:

http://memoria.bn.br/DocReader/337234/4474

http://memoria.bn.br/DocReader/337234/4475

 

Walkyrias: uma revista bem relacionada no mundo diplomático. Em 1946, o presidente Eurico Gaspar Dutra é fotografado lendo um exemplar de Walkyrias no Palácio do Catete, em entrevista com Jenny Pimentel de Borba. A mesma edição mostra a posse do general Juan Domingo Perón na Argentina, tecendo elogios às relações diplomáticas entre os países da América do Sul:

http://memoria.bn.br/DocReader/337234/6359

http://memoria.bn.br/DocReader/337234/6360

 

Em 1955, Walkyrias tem publicação retomada:

http://memoria.bn.br/DocReader/337234/6687