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Acervo da BN | "A tempa da carnavá está berto": imprensa carnavalesca da Blumenau do início do século XX

13 maio 2022

Artigo arquivado em Acervo da BN
e marcado com as tags Blumenau, Carnaval, Imigração Alemã No Brasil, Santa Catarina, Secult

Ah, o carnaval. Tempo de esbórnia e inacreditáveis chutes de balde. Baldes intactos, no caso, só os cheios de beberagem. Se, por acaso, a festa de Rei Momo acaba sendo transferida no calendário, como ocorrido no Rio de Janeiro em 2022 e também no passado, podem ter certeza: ela acontecerá duas vezes. Pois sim: é um evento amado de Norte a Sul. E é por isso mesmo que, hoje, aqui, daremos destaque à movimentação foliã não no Rio, ou em São Paulo ou na Bahia ou no Recife. Estamos falando de Blumenau, no interior de Santa Catarina. Que Oktoberfest que nada! Ocorre que no início do século XX, mais precisamente às vésperas e ao longo da década de 1920 - há mais ou menos cem anos - a então pequena cidade rural cheia de colonos de origem alemã caía na folia de forma tão empolgada que inúmeros jornais carnavalescos circulavam pelas ruas da cidade, com troças, informes, versinhos, malhação de autoridades e maluquices em geral. Então, pesquisadores, atentem! Trazemos hoje, neste espaço, quatro periódicos da simpática imprensa carnavalesca blumenauense de antanho. É como se imprimia nas páginas de Zé Pereira, um simpático jornalzinho local de 1917, à maneira do macarrônico ítalo-paulistano de Juó Bananére, só que no dialeto equivalente de sua região, o deutschenrolado-germano-brazuco: "A pove da Blumenau precise se divirte. A tempa da carnavá está berto. Nois imo faz essa jorná pra mode de não entra eng eskesimento as carnavás de 1917". Não entraram mesmo, caro redator! Cá estamos hoje falando de vocês, mais de cem anos depois! Mas, diga lá: como seria o carnaval de vossa mercê, nessa época e em vossa pujante urbe? "Tudas as que qué besnaga e mascas teng pra vende na Hairng". Não entendi nada. "Os jents que qué dansá na baile vai pra Hinkeldei e na Butzke nos itopavas, e as das nariz mais finas vae tude tutinhe na Schützenhaus". Ah, sim... Mas não vá cair na tentação, hein, ilustre repórter? "A nossa reportelajem está fazida pra nossa gompanheiro di trabalhe a senhor Friedel B. Junior que bede pras nosses leidores um poquito di Schnaps paqué só bode trabalhá com alcool". Bom... Se é assim...

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Zé Pereira - Jornal Independente (1917-?)

Zé Pereira foi um tabloide editado em Blumenau (SC), em data incerta – possivelmente iniciado em 1917. Com o subtítulo "Jornal Independente", era altamente irreverente e mordaz, de humor crítico e galhofa. Lançado no carnaval, fazia parte da tradicional imprensa carnavalesca e de opinião local, assumindo ares festivos e trazendo, em alguns momentos, troças maledicentes com algumas figuras blumenauenses. Jacob V. Müeller assinava como seu redator-chefe e Benedicto Ex-Bernardino como seu redator-gerente (aparentemente, ambos os nomes eram pseudônimos, uma brincadeira, como também era o endereço do escritório e da redação do jornal, na "Velha Nova").

Em sua edição inaugural, Zé Pereira trazia um editorial de apresentação assinado por Jacob Müeller, intitulado "Com licença". Ali, em tons queixosos e críticos ao governo, Müeller (ou quem quer que fosse o autor), argumentava em rigor pessoal:
Perguntarão como é que (...) posso eu trocar a agulha, a tesoura e o cêpo de gola pelo manuseio do calamo do doutrinador. (...) Por ventura a tesoura não representa o instrumento mais usado do jornalismo moderno? E as commissões que (...) desempenhei, por incumbencia dos saudosos ministros de agricultura do meu parente espiritual Marechal Urucubaca, não constituem uma escola proveitosa para o conhecimento exacto dos negoci[o]s publicos? Os fructos que ora colhe a Commissão de Pacificação dos Indios, quem poderá contestar serem produzidos por sementes lançados (sic) pelo obscuro obreiro da Patria que subscreve estas linhas? E a campanha nobilissima e triumphal, denominada dos Mata-Cachorros? Está na Memoria de todos o heroismo e abnegação com que demos combate a um inimigo temeroso que só agora conseguiu de novo alçar o collo porque o Governo, em hora impensada, resolveu dissolver o bravo exercito de que fiz parte. (...) Vive tambem na saudade dos blumenauenses o tempo em que, nesta Comarca, fui á columna da ordem e da segurança. Rematou esta minha trajectoria pelos dominios da Policia a mesta falta de reconhecimento. Despediram-me, porque não se amolda ao relaxamento de disciplina e obliteração da noção de dever, correntes na epoca, o meu temperamento austero e marcial.

O texto de Müeller, aparentemente "sério", contrastava, na capa da edição, com uma lista que satirizava figuras da sociedade blumenauense, assinada por "Um Implicante". Ali, o autor afirmava implicar "com as construcções navaes do Kuenzer", "com o Panamá do Damm", "com as fitas do Julio Sachtleben", "com as tabellas do bilhar do O. Grande", "com a urucubaca do motocicle do E. Menda", "com o busso do Koschel", "com o sobrecapote do professor de Joinville", "com o novo terno do filho do colector", "com o Atelier do Eurico B.", "com a careca do Coquinha", "com a abstinencia dos empregados do Salinger", "com a vitrina da casa Rischbieter", "com a bengala do Hercílio Z.", "com os passeios de aranha do Julio Sachtleben na Garcia", "com as cavações de alguns gabolas no bairro do Jammertal", entre outras coisas.

Além de textos como os expostos, Zé Pereira ainda trazia versos humorísticos, anúncios, textos em alemão – com tipografia gótica, a exemplo de "Ein casus Urukkubakkae Vehementis" –, entre outras coisas, como uma recomendação de livros bem-humorada, a citar "O Allemão tal qual se falla. Novo metodo de aprender Allemão sem precisar estudar, por Joaquim Castro". Ou ainda "O Amor ou a Arte de saber conquistar corações, por Nestor Marg., 250 réis. Quem comprar ou ler esta obra pode ficar certo que o coração da sua pequena ha de ficar duro como um tijolo de barro vermelho".

Ainda dentro de sua proposta irreverente e zombeteira, Zé Pereira publicou, ao menos nesta sua primeira edição, alguns textos em português gramaticalmente errado, imitando a sonoridade da fala em português de imigrantes alemães – a mesma fórmula humorística consagrada com o personagem Juó Bananére, de Alexandre Marcondes Machado, na imprensa ítalo-paulistana. Assim, em sua edição inaugural, Zé Pereira trazia textos assinados por "Klisto" e "Friedel", que diziam:
A pove da Blumenau precise se divirte. A tempa da carnavá está berto. Nois imo faz essa jorná pra mode de não entra eng eskesimento as carnavás de 1917. Tudas as que qué besnaga e mascas teng pra vende na Hairng. Os jents que qué dansá na baile vai pra Hinkeldei e na Butzke nos itopavas, e as das nariz mais finas vae tude tutinhe na Schützenhaus. A nossa reportelajem está fazida pra nossa gompanheiro di trabalhe a senhor Friedel B. Junior que bede pras nosses leidores um poquito di Schnaps paqué só bode trabalhá com alcool.

No caso de "A Bailada Mascarada", relatava-se: "Sabáde esteve no Schützencasa uma baila muita ponite. Non stava a nossa chefe. Stava a nossa representador que nos diz todos os coises ponitesda baile. Elle viu um senhora muito gorde que non é senhora... qu'é o Langenhaus".

A julgar apenas pela edição inaugural analisada aqui, Zé Pereira circulou com quatro páginas, por 200 réis o exemplar. É possível, pela ausência de data ou de numeração nesta edição, que esta seja a única edição publicada deste jornal.

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Kiriri (1920-?)

Kiriri foi um tabloide lançado em Blumenau (SC) possivelmente no início de fevereiro de 1920. A única edição consultada nesta pesquisa é o seu nº 2, ano 1, de 14 de fevereiro de 1920, o sábado de carnaval daquele ano. Foi, afinal, uma publicação lançada exclusivamente para a comemoração da festividade do momento. Assim, sua linha editorial transparecia um espírito festivo, brincalhão e irreverente.

Com redação no nº 7 da Rua Scharfe Ecke e dirigido por João Firamfolho – provavelmente um pseudônimo –, o jornal trazia, em seu nº 2, uma croniqueta assinada por Zé Bituva que dizia:
Amigos! Hoje mais do que hontem nos devemos sentir o coração balouçar neste oceano de alegrias. O dia de hoje para mim é um dia de jubilo e o meu ideal é beber, beber, beber até cahir e não fugir da turumbamba... Mas, permittam, que eu vos diga o quanto a minha alma se transborda de cerveja. E bem verdade amigos meus, que tudo filo neste dia... uma lança perfume, um saquinho de confetti, uma serpentina e um copito de cerveja 'Polar' e todos me olham attravessado, como se fosse um pau d'água, e eu, que sou caboclo do norte, pequeno mas forte vou cantando, vou pulando aqui no salão. De vez em quando levo uma queda e dou um grito: Ai! Ai! Todos correm espavoridos e eu como um gato dou outro pulo, todos pensavam que quebrei o pescoço mas... que nada... foi o paiol da polvora que bateu no duro.

Ao todos, o nº 2 de Kiriri trazia notas sociais – referentes ou não ao Carnaval –, sonetos, versos humorísticos, crônicas, anedotas, recados, notas gerais e notícias. A maioria dos textos do tabloide era publicada em alemão, como em boa parte da imprensa blumenauense. Contando seis páginas, a edição ainda tinha diversas ilustrações.

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 Die Schnauze - Órgão cômico, musical, sem fins lucrativos, satírico, popular e científico para o padrão de patronos e opositores (1920-1936)

Lançado em Blumenau (SC), Die Schnauze foi um jornal da imprensa carnavalesca local. Festivo e dotado de humor crítico, mordaz, foi publicado pela primeira vez em 28 de fevereiro de 1920, a partir de quando manteve periodicidade anual, aparecendo no carnaval dos anos subsequentes sempre em dias diferentes. Ao que se sabe, foi um dos mais longevos periódicos de carnaval blumenauenses, senão o mais longevo do gênero, já que saiu até seu número 17, de fevereiro de 1936. Publicado totalmente em alemão, sua capa possuía uma grande ilustração de um homem com a boca escancarada, dentro de onde se encontrava o título Die Schnauze – cuja tradução para o português pode ser “O Nariz” ou “O Focinho”.

Die Schnauze teve sua redação chefiada pelo escritor e poeta Feodor Axthelm, que por muitos anos foi o gerente da tipografia do jornal Der Urwaldsbote, pertencente a G. Arthur Koehler. Assim, Die Schnauze acabou sendo impresso nessa mesma tipografia de Koehler. M. J. Emand foi responsável pelos anúncios do tabloide carnavalesco, que funcionou no nº 606 da chamada Rua das Aspargas. Nenhum destes nomes, no entanto, aparece no cabeçalho do jornal; por outro lado, publicava-se com frequência textos assinados pelo nome Peter Schaufelthal.

 

Ao lngo dos anos, os textos de apresentação no cabeçalho de Die Schnauze foram mudando. Mas inicialmente, no canto superior esquerdo de cada capa, o tabloide se apresentava como um “Órgão cômico, musical, sem fins lucrativos, satírico, popular e científico para o padrão de patronos e opositores”. No cabeçalho de Die Schnauze existiram ainda pequenos textos ou notas como “Stiftungsfest des Musikvereins Lyra”, ou ainda, no caso da edição nº 1, “Blumenau – Theater Frohfinn”, possivelmente indicando o local para os bailes de Carnaval de 1920. Jocoso, ali o jornal se dizia uma publicação diária, não sendo publicado somente nos domingos e dias de semana. O próprio preço de capa de Die Schnauze era quase uma piada, propositalmente alto, de 500 réis por edição. Ademais, o tabloide se apresentava “sempre educado, instrutivo e divertido”.

Circulando quase sempre com quatro páginas, Die Schnauze, dentro de sua proposta humorística, publicava textos de comédia, anedotas e versos para serem musicados, feitos muitas vezes para os seus anunciantes e patrocinadores, e contra seus rivais, satirizando-os. Mas, além disso, o tabloide também possuía rigor científico e informativo, publicando notícias locais gerais, notícias internacionais, crônicas, avisos, correspondência, anúncios, etc. Diversas ilustrações estampavam as páginas de Die Schnauze, que, em suas três colunas de texto por página, dispunha seu conteúdo textual quase sempre em letras góticas, de acordo com a tradição da imprensa alemã.

Logo na segunda página de sua primeira edição, de 1920, Die Schnauze publicava um comunicado de uma “alta autoridade policial” local, com normas para o bom andamento do Carnaval daquele ano:


  1. Todos terão que trazer alegria, ressentimentos e ciúmes devem ser deixados diante da porta do salão. Os policiais têm ordens de prender todos que demonstrarem mau humor. (…) 2. Em baixo de mesas e cadeiras não é local de permanecer, mesmo após a décima garrafa. 3. Somente as damas com mais de 50 anos poderão ser beijadas. 4. Banhar-se em locais interditados é terminantemente proibido. 5. Acender cigarros ou charutos no farol merecerá castigo imediato. 6. Estelionatários e agiotas serão considerados criminosos e presos. 7. As lanternas não podem ser apagadas no caminho de casa. Para evitar tentações é preferível esperar o amanhecer. 8. As ordens dos policiais deverão ser obedecidas imediatamente.



A partir do nº 4, ou do nº 5, de 15 de março de 1924, o preço do jornal aumenta para mil réis. Em sua 9ª edição, de 11 de fevereiro de 1928, pela primeira vez Die Schnauze circula sem ser impresso em letras góticas – característica que a partir deste momento é usada esporadicamente.

Em sua 15ª edição, de 3 de fevereiro de 1934, Die Schnauze aparece pela primeira vez com o seu logotipo diferente: o homem que antes figurava com a boca escancarada aparece com lágrimas nos olhos e a boca fechada por um cadeado. Revelando que alguma perseguição foi feita ao tabloide, a edição, ao lado do logotipo adulterado avisava: “Nossos adversários! É um tremendo erro de vocês acreditar que estamos liquidados. (…) Die Schnauze vai continuar pregando”. Aparentemente, o periódico vinha colecionando inimigos poderosos em Blumenau, acarretando uma crise financeira em sua administração. Mesmo assim, no ano seguinte, a edição nº 16 foi publicada em 2 de março, tendo o logotipo do jornal voltado ao normal. O título do editorial desta edição avisava: “Ainda estamos vivos!”. Ali afirmava-se que ninguém mais “cuspiria veneno” em Die Schnauze.

Apesar da crise, Die Schnauze lançou pelo menos mais uma edição, o nº 17, datado apenas de fevereiro de 1936 – mas não se sabe se o jornal continuou sendo editado depois deste momento. Nesta última edição consultada, o tabloide ainda brincava com o seu alto preço, rimando, em alemão, os dizeres “Quem ter ter o nosso Schnauze, que apenas pague por um moinho”.

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A Ortiga - Revista carnavalesca (1924-?)

A Ortiga foi, segundo seu subtítulo, uma “Revista carnavalesca” lançada em Blumenau (SC) no Carnaval de 1924. Sua primeira edição não trazia numeração, datada apenas do ano de 1924. Seus responsáveis, aliás, eram identificados como “Eu – Tu – Elle”. Apesar de seu subtítulo, o periódico foi um jornal tabloide de quatro páginas.

Como boa representante da imprensa carnavalesca, A Ortiga foi altamente irreverente e festiva, com humor ácido e crítico, por vezes maledicente. Satirizava figuras locais e coisas de Blumenau, em geral, como a presença de pulgas no cinema da cidade. Na edição do carnaval de 1924, única analisada aqui, e talvez a única que tenha sido lançada sob seu título, o pequeno periódico se apresentava da seguinte forma: “O fim da presente revista não é atacar a integridade moral de quem quer que seja, inda que haja uma ou outra critica de caracter benignissimo. Entretanto se a carapuça servir em alguem, está á sua disposição”. Na capa desta edição, acima deste aviso, havia uma travessura: sob o título “Attenção”, anunciava-se que “Os nomes das bellezas que vão caminhando para o grupo das tias encontrar-se-hão na 3ª pagina”. Lá, escrevia-se apenas: “Que susto hein?!! … Felizmente meu nome não está!!!...”

Em sua edição inaugural, A Ortiga publicou croniquetas bem humoradas, comentários mordazes, versos em troça, provérbios e pensamentos, piadas (muitas vezes fazendo sentido estritamente local, ao retratarem com escracho figuras locais), avisos e informes de utilidade pública, curiosidades, entre outras amenidades, como o questionamento aparentemente irônico: “Quando teremos outro baptisado nesta cidade?”. Em sua proposta de humor travesso, o periódico chegou, inclusive, a publicar uma carta de amor achada nas ruas da cidade, sob o título “Ingrata” – questionando, ao fim, quem poderia ser a mulher.

A galhofa de A Ortiga com os blumenauenses, ainda na edição supracitada, dava-se em textos como “Coisas do H...”: “Applicar remedio por onde não deve. Calçar as meias ás avessas porque tem um buraco no outro lado. Apanhar muita sova na cabeça e por isso não ter mais cabelo. Fallar no telephone fóra da hora. Escolher uma senhora que tem 11 irmãs para que só lhe caiba 1/12 de sogra”. Ademais, o periódico afirmava, com propriedade, que “Estão na berlinda meninos e meninas da cidade de Blumenau”, pontualmente: “Figueiredo por gostar de ternos brancos”, “Bonetti por ser o mais travesso”, “Velho Blohm por ser o mais engraçadinho”, “Velho Creuz por ser almofadinha”, “Strauch Banco por ter rosto de boneca”, “Czernewitz por gostar da rua B. Retiro”, “Pfau por ser estudioso”, “Gertrud por ser bonitinha”, “Hilda por ter olhos azues”, “Hackländer por ser a mais timida”, “Strobel por não saber comprimentar (sic)”, “Victorino por ser o mais querido das meninas”, “Alfredinho por ser o mais enjoado”, “Iris por não gostar de decotte”, “Elzinha por ser a mais falladeira”, etc.

 

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