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Acervo da BN | O Carapuceiro: aventuras morais de um padre buliçoso

02 dez 2020

Artigo arquivado em Acervo da BN
e marcado com as tags Brasil Imperial, Crítrica de Costume, Imprensa humorística, Pernambuco, Revoluções Pernambucanas

Para um jornal brasileiro durar bastante tempo – digamos, mais de dez anos –, lá pelos idos de 1830, em plena (e por que não dizer caótica?) Regência, é porque era muito bom mesmo. Ou muito ruim: na história da imprensa brasileira, muitas folhas periódicas conquistaram longevidade na base da mansidão, da exposição de amenidades eclipsando questões espinhosas, desconfortáveis para autoridades. Isso quando não apelavam para a nua e crua manutenção de valores áulicos, caso daqueles bajuladores de governos X, Y ou Z, quando não dos três ao passar do tempo, e de muitos mais, quaisquer que venham pela frente. Verdade seja dita: certa ou errada, imprensa livre a dar pitacos ou a tirar sarro inconsequente não tende a durar muito, não. Ainda mais se tiver como alvo política ou questões morais. E é por isso que certo jornalzinho histórico pernambucano saiu da curva. É bem verdade que se estropiou um pouco, mas conseguiu, com algumas interrupções, circular por 14 anos, de 1832 a 1847. E, embora o fizesse de forma moderada, sem deixar de colocar o dedo em certas feridas. Ou melhor: sem deixar de fazer a carapuça servir ao devido bestunto. Conheçamos hoje ao serelepe hebdomadário O Carapuceiro.

Lançado a 7 de abril de 1832 no Recife (PE), O Carapuceiro era impresso na Typografia Fidedigna, por J. N. de Mello. Conquistou o público leitor não só em Pernambuco, muito por sua linha voltada à política local e nacional – comentando fartamente a instabilidade política em torno do recém-iniciado Período Regencial –, sem deixar de lado temas como comportamento e questões morais. O responsável por tamanho sucesso foi o clérigo beneditino Miguel do Sacramento Lopes Gama, seu fundador, editor e principal redator, que chegou a ser conhecido como o “Padre Carapuceiro”. Além dos textos rigorosamente políticos do autor, a crítica de costumes realizada pelo mesmo nas páginas da folha, ao todo 48 artigos que certamente formaram o conteúdo mais popular d’O Carapuceiro, rendeu a Lopes Gama uma posição de importância frente à historiografia social do período, sobretudo quanto à história da vida privada: o religioso retratava de forma caricata e mordaz o cotidiano da burguesia recifense do período. Sua crítica social, afinal, não poupava nem a classe eclesiástica nem o tradicional e inocente festejo popular do bumba-meu-boi, do qual realizou, aliás, a primeira descrição de cunho etnográfico. Todavia, apesar do subtítulo d’O Carapuceiro, “Periódico moral, e só per accidens político”, tais crônicas não cediam terreno para o moralismo ou para o conservadorismo então vigentes de forma explícita. Ainda assim, continham boa carga de misoginia, além de terem sido acusadas de particularmente achincalhantes da europeização pós-abertura dos portos, ou seja, vistas como a serviço dos valores mais arcaicos da sociedade patriarcal.

Quando havia retornado a Pernambuco de seus estudos com o ordem beneditina na Bahia, o jovem Lopes Gama fora nomeado lente – professor, na terminologia da época – de retórica do prestigiado Seminário de Olinda pelo último governador e capitão geral da província, Luís do Rego Barreto, algoz da Revolução Pernambucana, que fora levado ao poder imediatamente após o fracasso do levante de 1817 – movimento que havia sido gestado, curiosamente, no próprio Seminário. Lopes Gama, para todos os efeitos, ingressou no campo jornalístico após a deposição de Luís do Rego em 1821, na chamada “Convenção de Beberibe” – movimento constitucionalista hoje visto como o primeiro passo da Independência do Brasil. O padre decidira colaborar com a “Junta de Goiana”, governativa, de caráter liberal – e, diz-se, separatista –, encabeçada por Gervásio Pires Ferreira, de cujo diário oficial tornou-se diretor, em 1823. A articulação política que derrubou a junta e fortaleceu a adesão pernambucana ao Império, a mando de Dom Pedro I, gerou uma agitação político-partidária que conduziria à Confederação do Equador, em 1824, algo que Lopes Gama criticara intensamente. Todavia, n’O Conciliador Nacional, o jornal que redigia à época, exercia uma posição moderada, sábia e cautelosa, que seria a marca que manteria durante o Período Regencial. Não sem antes passar pela direção do Diário do Governo de Pernambuco, Lopes Gama, doente, deixou a imprensa no pós-Confederação do Equador, de intensa repressão política na província sobretudo por conta do aparecimento da Sociedade Colunas do Trono e do Altar. No ano de 1828, ao fim da Guerra da Cisplatina, no Prata, Lopes Gama aproveitou o relaxamento no regime para retornar às lides jornalísticas, de fininho, atuando como colaborador do Diário de Pernambuco e lançando um novo periódico: O Constitucional, editado entre 1829 e 1831. O Carapuceiro surgiria logo em seguida, botando as mangas de fora.

Aproveitando o clima de relativa liberdade de expressão durante a Regência, e vendo-a com bons olhos, n’O Carapuceiro Lopes Gama foi além dos meros comentários sobre a luta entre os partidos da província pernambucana durante a Regência. Moderado, pregava por uma aplicação liberal da Constituição de 1824, rejeitando tanto o republicanismo – apesar de crer que, a longo prazo, seria essa a solução para o problema democrático brasileiro – quanto teses conservadoras “caramurus”, ou seja, relativas à reação absolutista que pretendia restaurar Dom Pedro I. Partidário da ilustração, aplaudiu a adoção do sistema federativo por meio dos trâmites constitucionais da monarquia, enquanto rejeitou a criação dos juízes de paz e os sistemas eleitorais tanto para as presidências das províncias quanto para a Guarda Nacional. Avesso à escravidão e, portanto, visceralmente antioligárquico, uma das poucas posições que o aproximavam de um rival seu, certo frei Caneca, e chegando mesmo a pregar pela democratização das grandes propriedades agrárias, Lopes Gama acentuou sua fé liberal quando do domínio conservador dos aristocratas das famílias Rego Barros-Cavalcanti no apagar das luzes do Período Regencial, cessado, de qualquer forma, pela Revolução Praieira. Mesmo assim, o padre obteve favores oriundos da base cavalcantista, mais especificamente do barão da Boa Vista, tendo exercido mandato como deputado na Assembleia local e tendo sido diretor do Curso Jurídico de Olinda, algo que não constrangeu Lopes Gama a, afinal, mostrar-se ferrenhamente praieiro – paralelamente, cabe dizer, Caetano Maria Lopes Gama, seu irmão, estava em ascensão política na Corte. Com a repressão e o fim da gestão praieira em 1849 e o retorno dos conservadores, o prestígio do padre foi o suficiente para não o jogar no ostracismo político.

Independentemente das idas e vindas e dares e tomares da política do momento, foi n’O Carapuceiro que passou a se destacar também a faceta humorística do padre, aplicada sobre questões sociais. Frequentemente invocado por Gilberto Freyre em “Casa-grande & senzala” e em “Sobrados e mucambos”, Lopes Gama editou seu jornal no mesmo período em que o espanhol Mariano José de Larra levava ao ápice o gênero da crítica de costumes na literatura ibérica – provavelmente sem ter influenciado o autor brasileiro. Ainda assim, como bom erudito, o clérigo usou de veia satírica oriunda da literatura clássica. Em 1996 a editora Companhia das Letras lançou uma reedição das crônicas de Lopes Gama, organizada por Evaldo Cabral de Mello, e em cuja introdução se afirma que o autor d’O Carapuceiro era adepto “da tradição moralista francesa do Grande Século; e do reformismo de púlpito que lhe permitiria, ao secularizar-se, transitar do sermão para a sátira com uma facilidade que nos faz esquecer muitas vezes o que esta pode dever àquele” (p. 9). Indo um pouco além, quanto ao caráter moderado, nem progressista nem arcaico do pensamento que Lopes Gama imprimiu à faceta célebre d’O Carapuceiro, Cabral de Mello sacramenta:

O humor costumbrista pode esconder uma aspiração de pureza que, embora risonha, não é menos fanática que a do missionário. Daí que, com toda a sua aparência de iconoclasta ou de contestatário, o costumbrista tenda a ser indivíduo visceralmente conservador, por paradoxal que pareça. E, com efeito, ele está interessado não em transformar a sociedade, cuja organização, no essencial, aceita, mas apenas em reformar os costumes, por lhe parecerem ou perigosamente subversivos da ordem social ou simplesmente ridículos ou irracionais. O que não significa tampouco que ele seja um reacionário. Esse foi seguramente o caso de Lopes Gama. (p. 10)


Liberal que é conservador, conservador que é liberal. Confuso? Contraditório? Dúbio? Sim e não. Talvez, quem sabe? De certo, carapuça que cai como uma luva no debate quanto às raízes do humor político e da crítica de costumes.


Capa padrão da publicação no ano de 1834, com ilustração no cabeçalho