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Acervo e personagens da Biblioteca Nacional | O Sexo Feminino: Semanário dedicado aos interesses da mulher

17 out 2021

Artigo arquivado em Acervo e personagens da Biblioteca Nacional
e marcado com as tags Emancipação Feminina, Imprensa Feminina, Independência, Mulheres, O Sexo Feminino, República, Secult

Cinquenta e um anos após a Proclamação da Independência do Brasil, Francisca Senhorinha da Mota Diniz fundava “O Sexo Feminino: Semanário dedicado aos interesses da mulher”. A primeira edição publicada em 7 de setembro de 1873 invocava o marco histórico para enfatizar a harmonia entre “duas independências, a da Nação Brasileira e a da racional emancipação, educação e instrucção da mulher”. Entre o simbólico grito do Ipiranga eternizado na pintura de Pedro Américo e as reivindicações de Francisca Senhorinha e seus pares,um conjunto de acontecimentos sobrepunham, rivalizavam e hierarquizavam projetos de nação para a edificação de nossa pátria tropical.

O nascedouro deste reino singular estaria longe da imagem épica consolidada pelo glorioso “Independência ou morte”. A permanência da monarquia no Brasil decorre, entre outros fatores, da constante negociação com as elites locais, em especial agrárias, desejosas da ruptura com a metrópole, mas principalmente interessadas em conter as revoltas populares espraiadas Brasil afora. O sentimento nacionalista expresso futuramente nos manuscritos do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro remetiam, pois, mais ao receio da reintegração à Coroa Portuguesa que por um genuíno ímpeto separatista. Assim, a despeito das adversidades e da heterogeneidade dos atores sociais, a elevação da figura do monarca a Imperador do Brasil garantiria ordem política e adequação territorial necessária para a articulação das forças conservadoras.

O projeto de instrução da mulher encabeçado por Francisca Senhorinha, escritora, professora e jornalista, encontraria como obstáculo uma sociedade por vezes intitulada “retrógrada” e “inóspita” conforme artigos seus e de suas colaboradoras. A folha semanal, produzida exclusivamente por mulheres e de estrutura enxuta, reproduzia como epígrafe reflexão da escritora francesa Aimé Martin e dizia:“é pelo intermédio da mulher que a natureza escreve no coração do homem.”passagem que dava nota da importância de um discurso conciliador corroborado pelo papel complementar da mulher.

Com tiragem média de 800 exemplares, chegando a alcançar 4000 exemplares após dez edições, o periódico atraía a atenção das moças letradas da cidade de Campanha da Princesa, Minas Gerais, local das primeiras edições até ser transferida para a Corte.Entre as táticas empregadas pela proprietária, a divulgação de reclamações das assinantes da folha tornava-se oportuna para o fortalecimento das ideias veiculadas a cada edição. Entre os protestos, os pedidos de envio direto da publicação às leitoras, sem que chegasse por intermédio dos cônjuges, assinalava as intenções de autonomia e integridade social, fruto da luta por direitos civis. A circulação bem-sucedida era atestada pela distribuição por outras províncias,com destaque para as congêneres “A Família” e “Jornal da Família” e outras folhas mais genéricas como a Gazeta de Campinas (SP), O Pharolde Juiz de Fora e o Constitucional da cidade de São Paulo, entre outras. Em 1875, já instalada na cidade do Rio de Janeiro, Francisca dera continuidade a folha que permanecera interrupta até 22 de abril de 1876.

Tinha como missão convocar moças e senhoras a tomar conhecimento sobre os seus direitos à educação como meio de regeneração da mulher. A publicação também foi uma das primeiras a dedicar-se à campanha pelo sufrágio, embora Francisca insistisse no caráter secundário do pleito em razão de outros “males soffridos”. O combate ao analfabetismo, a autonomia na gestão dos assuntos domésticos e mesmo nos negócios familiares, a profissionalização da mulher sem perder de vista sua missão mais nobre: a maternidade, compunham as pautas principais de Francisca e suas colaboradoras. Todas intimamente ligadas a crença absoluta da emancipação da mulher pela educação. A formação convencional ou espontânea das irmandades, agrupamentos de mulheres “sequiosas da missão civilizadora”, sinalizavam as estratégias de coalizão política,bem como senso de coletividade, entendida como dádiva natural da mulher. O acesso a jornais estrangeiros e publicações de cunho sufragista cumpriam igualmente importante ferramenta para o fortalecimento das redes colaborativas e de sociabilidade para o “belo sexo”.

A criação do Colégio Maternal Nossa Senhora da Penha mantido por doações foi um espaço voltado tanto para as classes mais abastadas quanto para as empobrecidas que tinham acesso franqueado por meio de ações filantrópicas.A emergência para a capacitação das instrutoras implicava o redimensionamento dos domínios público e privado e o deslocamento de corpos femininos da casa para rua, assunto presente no “Sexo Feminino”.Já na República, em 1889, a fundação do colégio Santa Isabel e a escola doméstica com a participação de Albertina, Amélia e Elisa Diniz, filhas de Francisca, agora viúva do advogado José Joaquim da Silva, ex-proprietário de “O Monarchista”, davam continuidade ao projeto de educação universal, uma vez que recebiam meninas de todos os estratos sociais “sem distincção de côr.”

A folha imprimia discurso recorrente a equivalência da racionalidade feminina ao estatuto da Ciência como legitimadora do ingresso das mulheres na sociedade.Sobre esse aspecto, as falas sobre as vantagens da educação feminina conformavam-se às “evidências” que distinguiam as experiências promissoras verificadas em outros países, da barbárie masculina detratora das aptidões da mulher para as ciências, artes e letras.

A tensão pontuada pelas distinções de sexo era a tônica dos editoriais e artigos. Apesar disso, Francisca Diniz, estava longe de romper por completo com as diferenciações que subjugavam a mulher em relação ao homem. Os sentimentos de estupefação e incômodo com a “nossa situação” dirigiam-se à insensibilidade das autoridades públicas (legisladores, médicos, instrutores) em subaproveitar a inteligência feminina. E, por acreditarem e sustentarem a defesa do intelecto feminino, baseada em pressupostos da Ciência, tantas vezes evocadas pelas articulistas, contraditoriamente, Francisca e suas colegas acabavam por reeditar a noção de polarização dos sexos.

As boas novas, anunciadas pela imprensa fluminense, também foram lembradas pelas proprietárias das folhas femininas, como estímulo para a luta de emancipação de seu sexo. A insatisfação quanto a pouca ou nenhuma autonomia na participação de assuntos extra domésticos,era reclamada com o intuito de assinalar o comprometimento das mulheres. Em seus artigos, elas também estavam atentas às mudanças políticas e sociais; portanto, seria melhor instruí-las e educá-las a fim de acompanharem os avanços realizados nos espaços públicos. Nesse sentido, a noção de complementaridade dos sexos, justificaria suas intenções, uma vez que a sociedade precisaria de mães e esposas mais preparadas como meio de adequação aos novos tempos.

A circulação de códigos de boas maneiras e cuidado corporal, características das folhas “frívolas” eram advertidas pelo “Sexo Feminino”, pois de nada serviria à mulher se não possuísse valores máximos de inteligência e cultivo da religião. Contudo, as regras de conduta e normas de etiqueta também encontravam lugar na folha de Senhorinha, com menos ênfase é verdade, mas o suficiente para produzir ideias conflitantes para o modelo de mulher emancipada. A composição ambígua da narrativa traduzia-se na dificuldade em combinar duas condições, que aos olhos de Francisca se mal ministradas comprometiam sobremaneira a dignidade das mulheres. Os vícios da vaidade eram combatidos. Nos editoriais, o emprego dos verbos “ornar”, “enfeitar”, “abrilhantar” normalmente utilizados para elucidar características físicas, sofria reapropriações, passando agora a elevar os estados de espírito e as virtudes da razão. “Ornar-lhe o espírito” e “abrilhantar a razão” justapunham-se às concepções de luxo e vaidade de “só cuidar das graças do corpo”.

No entanto, há de se reconhecer que apesar do tom aparentemente moderado, “O Sexo Feminino” representou junto a tantas outras folhas destinadas a emancipação das mulheres, os antecedentes para aquilo que convencionamos denominar como a primeira onda feminista. O entusiasmo e pragmatismo de Francisca e suas parceiras revelam não somente a consciência de um grupo social e sua visão de mundo como a intensa conexão com os eventos políticos, particularmente as campanhas abolicionistas e as reviravoltas que sucederam a tomada de poder e o advento da República. Não à toa o periódico é alterado para “O quinze de novembro do sexo feminino”, circulando de 15 de novembro de 1889 até 6 de dezembro de 1890.

A pronta adesão do quinze de novembro é tributária das grandes expectativas trazidas por rupturas políticas (Independência e República) ambas sob o manto da missão civilizadora, mas que na prática tem se mostrado mais sob um cariz alegórico, característico do processo de modernização conservadora vigente no país.O artigo inaugural “Às minhas patrícias” de 14 de setembro de 1873 ilustra bem as contradições internas entre o apreço a uma ideia de nação operada pela dicotomia civilidade e barbárie e o projeto educacional inclusivo de Francisca. A crença em marcos civilizatórios, apartados do “jugo colonial” e pela construção da nação,tão reverberados pela imprensa do XIX e com ressonâncias até hoje,ampliam perspectivas sobre, não apenas um, mas muitos projetos de nação.Projetos em disputa, em ação.