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Artes | Ascendina dos Santos: primeira atriz negra a conquistar os palcos brasileiros

03 mar 2022

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“Teria mesmo encontrado o ‘ovo de Colombo’ do Theatro Nacional?” Perguntou a coluna “Terra de Scena” do periódico D. Quixote no ano de 1926 para falar da mais nova revelação de Gastão Tojeiro, dramaturgo e empresário teatral, ao elevar aos palcos a atriz Ascendina dos Santos. A expressão “ovo de Colombo” remete ao pioneirismo do navegador espanhol e sua chegada na América. O desvio acidental e o ato da “descoberta” do Novo Mundo. Tomada de empréstimo pelo colunista, a expressão representava o sentimento de estupefação diante ao fenômeno Ascendina dos Santos, a primeira mulher negra a conquistar os palcos brasileiros. A inesperada presença de Ascendina no concorrido circuito artístico da capital fluminense dá a dimensão da controversa relação entre modernidade e etnicidade. O período pós-abolição e a promessa modernizadora encontravam como desafio a adequação daqueles que estavam à margem do futuro de um Rio promissor. Qual performance seria então possível para uma mulher negra, retinta, como Ascendina?

Nascida Clementina Silva, moradora da Favela do Pinto, localizada entre os bairros do Leblon e da Lagoa, Ascendina seria mais uma trabalhadora, herdeira do passado escravagista. Prestava serviços de cozinheira para a família de Júlia Vidal, atriz proeminente e integrante da companhia do teatro São Pedro.Contudo, em pouco tempo (não se sabe se o quanto a convivência teria contribuído) Júlia estaria dividindo os palcos com a “Estrela Negra”.

“Ai Zizinha”, revista carnavalesca de Freire Jr. foi o grande sucesso de Ascendina. A revista, pertencente a Companhia Carioca de Burletas e sob o comando do empresário Pascoal Segreto, arrastava a audiência para as inúmeras apresentações no Teatro Carlos Gomes, no Lyrico e no Teatro Sant’anna.Entre os números coreografados por J. Freitas,destaca-se o número de cortina “Quem fala de mim tem paixão” estrelado por Ascendina.Cantora e exímia dançarina, Ascendina animava as multidões se tornando a verdadeira coqueluche nacional. “Incontestável iniciadora da revista negra no Rio de Janeiro” como bem observou o jornal “A Maçã”,Ascendina dos Santos foi de fato a precursora de muitas outras atrizes negras e não brancas, entre elas a atriz Rosa Negra, que inclusive era confundida com Ascendina, porém Rosa logrou de maior reconhecimento.

Ascendina cativou público e crítica. Raphael, Pinheiro, João Luso, Aarão Reis, Arnaldo Pereira, Oscar Lopes eram unânimes: “Ascendina era musa!” Não tinha nem para Prescilla Silva, protagonista da revista, nem para Manoela Matheus, colega de cena. Ascendina era a atração principal.

Apesar da boa recepção, o sucesso de Ascendina estava inevitavelmente associado às características raciais da atriz que, na maioria das vezes, resultava em efeito jocoso e depreciativo. A atribuição do nome “Clara Branca das Neves” pelo jornalista Mário Nunes para a personagem interpretada na revista era uma das muitas provocações encetadas pela crítica especializada. Nem a melhor das intenções de Freire Jr. que utilizava da alcunha “carvão nacional” para exaltar a riqueza e contribuição de Ascendina deixava de revelar o caráter de ineditismo e de exceção de um corpo, cujo fenótipo causava estranheza e porque não dizer indignação.

Em coluna da“Paratodos” publicada em 1926 nota-se o tom de reprovação ao observar a presença de pessoas de cor em comédias populares, que em nada combinavam com a “boa sociedade”. Diria o crítico: “Que êxito teve a companhia instalada no Carlos Gomes com a cadeira a três mil reis e repertório a alcance e a delícia de qualquer imbecil? Nenhum, a não ser o acidente [grifo meu]Ascendina dos Santos”. A fala do colunista informa claramente sobre as atribuições e espaços expectáveis para grupos não pertencentes a boa sociedade, leia-se – aos corpos racializados. Ter Ascendina, mulher negra, de pele escura e corpulenta a luz da ribalta era contraproducente. Puro desatino!

O “acidente” do qual trata o colunista precisaria estar bem justificado, afinal de contas, não é todo dia que o sequioso público teria a oportunidade de se esbaldar ao som de uma “uma creoula a bambolear os quadris de forma desordenada” como noticiaria a moderna revista Shimmy em 1926. A presença de Ascendina era celebrada e autorizada a medida em que as suas habilidades artísticas assumissem uma veia caricata, transitando entre o animalesco e o sexual por suas “dansas de rythmo selvagem”, conexões recorrentes nas folhas de divertimento que tomavam por seu turno a “deusa negra” Josephine Baker como grande referencial.

Levando em consideração que a prática de tingir o rosto de preto, prática conhecida como “blackface”era corrente e aceitável, o surgimento de uma mulher genuinamente preta nos espetáculos causava no mínimo espécie. A imprevisibilidade de ocupar um lugar até então restrito recrutava de Ascendina e de seus colegas determinado jogo teatral, cujos elementos performativos derivavam de traços de alteridade. Os “personagens-tipo”, a estetização do outro era, portanto, condição necessária para o acolhimento de Ascendina na estrutura cênica sem a qual o cumprimento da função cômica, de mofa, não se completaria.

Os contrastes entre a figura de cozinheira e de artista são alvo de denúncia de uma condição anômala. A ascensão e reconhecimento social por meio de uma inadequação entre corpo e função é constantemente lembrada entre os revistógrafos que se limitavam em advertir a classe empresarial sobre as inversões cometidas. Dar asas a futuras Ascendinas é mote de escárnio, mas também de preocupação sobre a subversão de papéis, especialmente para mulheres esteticamente mais negras e historicamente associadas a trabalhos braçais. É o que sugeria o famoso crítico Benjamin Costallat ao alertar sobre o abandono do fogão pela ribalta.

A simulação de declarações supostamente dadas por Ascendina e transcritas em vocabulário coloquial também serviam para demarcar não somente a sua origem social, como transmitiam um ar de ingenuidade “característico” do povo. Foi assim em entrevistas para as revistas O Malho e Shimmy, ambas no ano de 1926.

Ainda assim, apesar das adversidades, Ascendina se tornou inspiração para outras mulheres. Ascendina deixou a sua marca se transformando em personagem. Espetáculos revisteiros como a revista Café com leite contava com atrizes para dar vida a cozinheira preta de nome Ascendina. Já a peçaPirão de Areia contava com as “Ascendices” um conjunto de coristas denominadas “black girls” em homenagem a estrela negra.É bem verdade que a perpetuação do seu nome veio combinada a um formato estereotipado, sofrido pela própria criadora, modelo que irá permanecer por um bom tempo na dramaturgia brasileira, salvo a criação da Companhia Negra de Revistas (1926-1927), o TEN – Teatro Experimental do Negro e outras iniciativas que se colocam como micropolítica e correm na contramão do racismo estrutural.

Ascendina teve carreira efêmera. O espetáculo “Ai Zizinha”permaneceu em cartaz no Carlos Gomes entre 15 de janeiro e 10 de março de 1926.Fontes indicam que ela teria seguido para Juiz de Fora em Minas Gerais para trabalhar na companhia Arruda. Tempos depois, o jornal “A Noite” informavaa tentativa de suicídio por ingestão de creolina, episódio que não obteve grande apuração. Em 1927, voltaria ao Rio de Janeiro para atuar no Democrata Circo. A revista do Teatro do Recreio“Manda quem pode” de Antonio Quintiliano teria sido palco de uma das últimas apresentações de Ascendina.

A “descoberta” Ascendina e o “ovo de Colombo” aqui mimetizado pela elite artística e empresarial em seu projeto modernizante, atualização da missão colonial, encontra em Ascendina(s)objeto oportuno, reservando espaço limitado para o sonho de uma outra vida possível.Felizmente, o cenário já não é mais o mesmo. A trajetória de Ascendina vem a somar a mais um capítulo da história que resiste ao processo de apagamento da qual sofrem muitas biografias pretas.


O Malho 1926 retrato de Ascendina dos Santos.