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De "abelhas" e seus caçadores: a imprensa pernambucana ao fim do Primeiro Reinado

19 jan 2022

Artigo arquivado em Acervo da BN
e marcado com as tags Antônio Borges da Fonseca, Brasil Imperial, Conservadorismo, Crítica política, História da Imprensa, Imprensa de Oposição, Liberalismo, Pernambuco, Primeiro Reinado, Secult

Aqui neste espaço muito já se falou a respeito do incendiário publicista paraibano Antonio Borges da Fonseca. Filho de combatente na Revolução de Pernambuco de 1817 e participante, ele mesmo, da Confederação do Equador, em 1824, quando contava apenas 16 anos de idade, o liberal, nacionalista, republicano e federalista rapazote teve estrondosa passagem nas imprensas do Rio de Janeiro, da Paraíba e de Pernambuco. Editando numerosos pasquins como um dos mais radicais liberais "exaltados", entrou em querelas e cativou inimizades ao fim do Primeiro Reinado, durante o Período Regencial e ao início do Segundo Reinado, pontiagudo que era tanto frente a conservadores quanto a liberais moderados. Seus dois periódicos de maior vulto foram Abelha Pernambucana, que, do Recife, revelou o polêmico traço de Borges da Fonseca para o restante do Brasil em 1829, ao apagar de luzes do reinado de Dom Pedro I; e O Repúblico, lançado na corte ao início da Regência e depois, em outras fases, no Nordeste. Embora já tenhamos abordado esses dois jornais por aqui, vale a pena conhecer um pouco mais a respeito dos demais títulos da imprensa do inflamado contexto da época, quando nosso jovem Brasil independente ainda dava os primeiros passos: impressos de diferentes matizes ideológicos foram, então, determinantes para a cristalização - ou rejeição - tanto de concepções e agendas de Estado quanto de figuras públicas. Como O Repúblico digladiava sobretudo com a imprensa áulica fluminense, notabilizada em jornais como o Diário do Rio de Janeiro, também aqui já apresentados, jogamos luzes hoje, portanto, ao período abelhudo de Borges da Fonseca: nas trincheiras da imprensa pernambucana contra e a favor de suas ideias, pouco antes e pouco depois da abdicação do primeiro imperador deste país, em 1831.

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No Recife, o primeiro jornal a se bater contra a Abelha Pernambucana foi O Cruzeiro – Jornal político, literário e mercantil Recife (PE), lançado em 4 de maio de 1829, praticamente dez dias após a estreia da folha de Borges da Fonseca. Cabe contextualizar: os primeiros anos do Império brasileiro, com a ruptura do processo de Independência de Portugal, não foram exatamente um momento de calmaria, livre de complexidades. Dada a crise política e o acirramento das lutas entre liberais e conservadores nos últimos momentos do governo de Dom Pedro I, sociedades secretas de inclinação absolutista foram fundadas para dar sustentação à monarquia: no torrão pernambucano, então, foi criada a Coluna do Trono e do Altar. Como outros grupos, esse tinha voz na imprensa da época, então composta por periódicos oficiais, de um lado, e pasquins pró ou contra o governo, de outro. Pois O Cruzeiro foi, por excelência, o órgão da Coluna e de seus simpatizantes, os “colunistas”.

Rivalizando na imprensa com a Abelha Pernambucana , qualificada como uma “injúria atroz” para a província, O Cruzeiro, assim como a sociedade que o editava, foi perdendo as forças conforme a situação do imperador se mostrava cada vez mais insustentável à frente do Império brasileiro; sua publicação, portanto, findou em 1831, o mesmo ano da abdicação de Dom Pedro I, sendo sua última edição, provavelmente, a de nº 76, datada de 9 de abril. Com os versos “o juízo quero de quem com juízo e sem paixão me leia”, de Antonio Ferreira, como epígrafe, cada edição de O Cruzeiro vinha com quatro páginas, impressas sempre em tipografia própria, localizada primeiro na Rua da Cadêa do Bairro de Santo Antônio, depois na Rua Aurora, no bairro da Boa Vista. Como bom órgão de situação, o periódico tinha condições de manter publicação diária, deixando de circular apenas aos domingos. Suas edições eram compostas por artigos violentamente contrários a qualquer oposição a Dom Pedro I, atacando em especial o liberalismo, comunicados oficiais, textos extraídos de outros periódicos, cartas abertas de e para autoridades, anúncios (que compreendiam desde compra e venda de itens variados a novidades teatrais no Recife, sem que se deixassem de lado recorrentes anúncios de escravos fugidos), entre outras coisas.

No mesmo mês em que O Cruzeiro deu as caras, um periódico de linha idêntica à sua também apareceu, no Recife: foi o Amigo do Povo, lançado em 30 de maio de 1829. Conservador, entrava em feias escaramuças contra Borges da Fonseca, que o chamava de “O Inimigo do Povo”, e com outros jornais liberais. Naturalmente, encontrava eco em O Cruzeiro, adotando o mesmo programa "colunista" para dar sustentação à monarquia, contra ideais liberais e, sobretudo, republicanos. Considerando a religião, as leis, a moral e a educação os pilares do edifício social, segundo texto de sua 6ª edição, de 4 de julho de 1829, O Amigo do Povo lia qualquer crítica a Dom Pedro I como insulto, expressando eterna gratidão pela Independência do Brasil, sem considerá-lo, de forma alguma, absolutista. A Independência não fazia com que o Amigo do Povo visse mesmo a figura de Dom João VI de forma negativa: para o pasquim o monarca lusitano era mesmo de “gloriosa memória”, conforme expunha sua 82ª edição, de 18 de dezembro de 1830. As edições do Amigo do Povo vinham não só textos de seu redator, mas também cartas enviadas por leitores, sempre assinadas por pseudônimos. Eram impressas na Rua da Cadeia, na tipografia d’O Cruzeiro, dando a entender que, talvez, seus editores fossem mais ou menos os mesmos. Tanto que o fim de ambos os periódicos foi, praticamente, igual. Apesar de ser uma folha de sustentação do poder, O Amigo do Povo acabou no ano de 1831, em meio ao esgotamento político de Dom Pedro I à frente do Império do Brasil.

Ao fim da publicação de O Cruzeiro e d'O Amigo do Povo, seus redatores deviam estar sofrendo de estafa. O debate político daqueles dias, entre liberais na oposição e conservadores no governo, estava particularmente turbulento, ápice de um crescendo iniciado em setembro de 1830, quando uma passeata de estudantes paulistas em comemoração à revolução liberal ocorrida naquele mesmo ano, na França, desencadeou dura repressão sobre os manifestantes – que indiretamente deixavam claras suas insatisfações com a Coroa brasileira. Em São Paulo, a truculência gerou protestos de Libero Badaró em seu órgão, O Observador Constitucional. A Comissão de Justiça da Câmara então se pronunciou, considerando legítima a derrubada do governo francês e se opondo à opinião de um então ministro do Império, Silva Maia. Pouco depois, a 20 de novembro, Badaró foi assassinado, e a inquietação ganhou proporção extraordinária. Nesses dias a Abelha Pernambucana já não mais existia: acabou para que Borges da Fonseca fosse ao Rio de Janeiro lançar O Repúblico. E justamente na crise instauradas, folhas vistas como radicais, como O Repúblico, foram consideradas criminosas pelo poder, sobretudo quando sugeriram que a viagem empreendida então por Pedro I a Minas Gerais visava a preparação de um golpe absolutista. Em verdade, a crise iniciada com as comemorações pela Revolução de 1830 e o assassinato de Libero Badaró expunha o esgotamento do modelo de governo que vinha sendo adotado, culminando na abdicação do imperador em 7 de abril de 1831. Pode-se dizer que O Amigo do Povo era, sobretudo, amigo de Dom Pedro I, num momento delicado para o monarca.

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No que pesem as atitudes de órgãos efêmeros de sustentação a Dom Pedro I em Pernambuco, no apagar de luzes do Primeiro Reinado, uma coisa é digna de nota: o imponente Diário de Pernambuco, que até hoje circula, já existia naquele tempo. Por que, então, foi tão longevo, diferentemente de O Cruzeiro e O Amigo do Povo, e mesmo da Abelha Pernambucana? A reposta talvez seja simples: foco em assuntos comerciais e muita moderação ao se falar em política.

Lançado no Recife em 7 de novembro de 1825 pelo tipógrafo e jornalista Antonio José de Miranda Falcão – importante integrante da Confederação do Equador em 1826 –, o matutino Diário de Pernambuco é o mais antigo jornal da América Latina ainda em circulação, bem como uma das mais influentes publicações periódicas do Nordeste brasileiro atual, bem calcado que foi quando passou a ser propriedade dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Em sua fundação, o jornal era veiculado pela Tipografia Miranda & Companhia, no nº 267 da Rua Direita, no bairro de São José, mas, em virtude de uma mudança de endereço, logo em 1828 a empresa editora passou a se chamar Tipografia Fidedigna. Projetado para cobrir assuntos de interesse comercial, sem entrar em grandes polêmicas, o Diário de Pernambuco, em seus primeiros momentos, era basicamente uma folha de anúncios, um simples empreendimento voltado ao lucro: trazia informações gerais sobre a vida mercante de Pernambuco, com a divulgação de produtos, leilões, roubos, compra e venda de determinados artigos, câmbio e horários de embarcações.

Para Glauco Carneiro, em “Brasil, primeiro: história dos Diários Associados”, o periódico foi “o primeiro veículo permanente de anúncios de que se tem notícia no país, o precursor dos ‘classificados’ e da utilização de ilustrações nos ‘reclames’” (p. 156). Politicamente ameno, defendendo esporadicamente posições do Partido Conservador, o Diário de Pernambuco classificava positivamente Dom Pedro I, sem entrar em grandes querelas com a Abelha Pernambucana. Ainda assim, o jornal não parecia desatento aos ventos políticos de seu tempo: festejou quando da abdicação do monarca, em abril de 1831.

Depois de uma primeira fase sendo administrado pelo seu fundador, em 1835 o Diário de Pernambuco passou a ser propriedade do comendador Manuel Figueroa de Faria, que o detinha através da firma Pinheiro & Faria. Tudo bem que essa já é outra história. Mas, há que reconhecer que, no âmbito pernambucano, foi essa mudança que fez com que o jornal assumisse uma postura estritamente governista, passando mesmo a funcionar como órgão oficial dos governos da província, durante a Regência. Nessa perspectiva, naturalmente, o periódico cobriu fartamente a Revolução Praieira, ocorrida durante cinco meses entre 1848 e 1849, em franca oposição aos revoltosos.

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E quanto aos amigos de Borges da Fonseca, quando de seu período à frente da Abelha Pernambucana? Desses, o principal, no Recife, foi O Constitucional – Jornal político e literário. Lançado em 2 de julho de 1829, O Constitucional foi um periódico dirigido e redigido pelo padre beneditino Miguel do Sacramento Lopes Gama, de posição política liberal, mas, ao contrário de Fonseca, moderada. Ao longo de sua existência – que não foi longa, findando provavelmente em junho de 1831 – o jornal debateu contra folhas conservadoras recifenses como O Cruzeiro e O Amigo do Povo, entre outras folhas ligadas ao poder. Apesar de se dizer profundamente antidespótico, fazendo loas à democracia e a Montesquieu, O Constitucional vinha, em suas primeiras edições, com uma epígrafe de Dom Pedro I, dirigida ao povo brasileiro: “Embora incautos queirão denegrir a Minha Constitucionalidade: ella sempre apparecerá triunfante, qual Sol dissipando o mais espesso nevoeiro. Contai Commigo, assim como Eu Conto comvosco, e vereis a Democracia, e o despotismo agriolhados por huma justa Liberdade”.

Inicialmente, a publicação de Lopes Gama era impressa na tipografia do Diário de Pernambuco, no nº 267 da Rua Direita, e saía duas vezes por semana, às segundas e quintas-feiras; no primeiro semestre do ano de 1831, no entanto, o jornal passou a ser impresso na Typographia Fidedigna, no nº 18 da Rua das Flores. Mais conhecido por ter redigido, entre vários outros, o jornal satírico O Carapuceiro, também aqui já abordado, que seria lançado cerca de um ano depois do fim de O Constitucional, e que lhe valeu o apelido de “padre Carapuceiro”, Lopes Gama teve ainda participação na política pernambucana pré-Revolução Praieira, quando esteve aliado ao governo do liberal Chichorro da Gama na província. O religioso é apresentado da seguinte forma por Nelson Werneck Sodré, em sua “História da imprensa no Brasil”:

Professor, político, parlamentar, mas principalmente diretor e redator de jornais, Lopes Gama variou entre a doutrinação e a polêmica mais áspera. Naquela, seu mérito foi muito grande; nesta, apesar de sua combatividade, nem sempre esteve na posição mais justa. As contradições que marcaram suas atividades têm perturbado o julgamento de seu papel. Lopes Gama apreciou os grandes problemas do tempo, com visão lúcida quase sempre, e às vezes excepcionalmente exata. Mesmo no pasquim A Ratoeira, de que só circulou um número, a 3 de setembro de 1847, teve oportunidade de esclarecer que “em nossos dias, três homens distintos têm tentado o melhoramento das classes laboriosas, mediante a reforma da sociedade em geral: St. Simon, Fourier e Owen”. Alfredo de Carvalho acha que o período áureo de Lopes Gama teria sido o de O Conciliador Nacional e de O Constitucional. Amaro Quintas opina de modo diferente: o melhor Lopes Gama estaria em O Sete de Setembro, que circulou entre 7 de setembro de 1845 e 16 de abril de 1846. A razão está sem dúvida com este último julgamento. (p. 139)

Sabe-se, de qualquer forma, que Lopes Gama editou ainda o Diário da Junta do Governo, O Popular, O Despertador e O Pernambucano, além dos periódicos já citados. Foi também autor, entre outros trabalhos, de “A Coluneida”, poema satírico que achincalhava com a sociedade “Coluna do Trono e do Altar”, em 1832; de “A Farpeleida”, em 1841; e do “Código Criminal da Semi-República do Passamão na Oceania”, também em 1841, sendo esta uma sátira política em prosa. No plano oficial, Lopes Gama integrou a Assembleia Provincial pernambucana a partir de 1835, da primeira à sexta legislatura bienal. E era um sujeito da paz: se posicionou contra os movimentos revolucionários que eclodiram em Pernambuco em 1817, 1824 e 1848 – este último conhecido como a Revolução Praieira, quando membros da ala radical do Partido Liberal local pegaram em armas para tentar depor o governo conservador imposto pelo Império para tentar amenizar a hegemonia liberal na província, que durava anos.

Outro aliado de Borges da Fonseca - e de Lopes Gama, por tabela - foi O Olindense – Jornal político e litterario. Dirigido e redigido pelos acadêmicos Álvaro e Sérgio Teixeira de Macedo e Bernardo de Sousa Franco, foi outro jornal de inclinação liberal, lançado a 3 de maio de 1831, em Olinda. Crítico e aguerrido, vindo a lume dando vivas à abdicação de Dom Pedro I naquele 7 de abril, e o grande triunfo liberal contra o absolutismo que isso significava, sem ter vivido os momentos mais dramáticos da crise que dera fim ao Primeiro Reinado. Trazia informes e avaliações sobre a movimentação política não só em Pernambuco, mas também na Corte e no Grão-Pará. Impresso primeiro na Typographia Fidedigna, na Rua das Flores de Recife, somente em setembro de 1831 passou a ser tirado das oficinas de Pinheiro, Faria & Cia., em Olinda, na Rua do Amparo. Circulou, afinal, apenas até 1832, findando publicação, provavelmente, na 118ª edição, de 6 de julho daquele ano.

Nelson Werneck Sodré reserva as seguintes palavras ao jornal em “História da imprensa no Brasil”:

O Olindense – jornal de estudantes da escola fundada em 1827 em Pernambuco, juntamente com a de S. Paulo, e que se dizia político e literário, sendo mais político do que literário, o que indica, de forma contundente, o primado do tema dessa natureza sobre os demais, a ponto de ser assim um periódico estudantil – O Olindense trazia a seguinte epígrafe: Ayons du moins le courage de bien dire, dans un siécle ou si peu d’hommes ont le courage de bien faire. Les hommes vertueux m’em sauront gré; et l’indignation du vice sera encore un nouvel eloge pour moi – palavras pessimistas de M. Thomaz, em que havia a nota cética da época. (p. 161)

Embora editado por estudantes, O Olindense seguia o modelo dos pasquins políticos editados durante o Primeiro Reinado e o Período Regencial: se não foi exatamente o primeiro jornal estudantil da imprensa brasileira, por não seguir um formato hoje identificável como de imprensa estudantil, foi, pelo menos, uma das primeiras iniciativas nesse sentido, no Brasil.

Explore os documentos:

Abelha Pernambucana.

O Cruzeiro.

O Amigo do Povo.

Diário de Pernambuco.

O Constitucional.

O Olindense.