BNDigital

Filosofia | Os Ensaios de Montaigne: o sentido da vida, em vários sentidos

18 ago 2020

Artigo arquivado em Filosofia
e marcado com as tags Ceticismo, Filosofia, Filosofos Franceses, Humanismo Renascentista, Michel de Montaigne, Século XVI

Eles vêm e vão, ficam um pouco parados, divagando, depois voltam para onde vieram, só para no meio do caminho ameaçar tomar a esquerda, depois a direita, depois nem um lado nem o outro, dando um giro de 180° onde menos se espera, quando não de 360°, parando novamente para divagar, enveredar por alguma picada que ninguém sabia que existia e, enfim, completar o trajeto, que a essa altura já nem lembramos se era de ida ou de volta. Se assunta mal, muito mal, o leitor que acha que escrevemos hoje a respeito do ataque do Atlético Votuporanguense na Séria A2 do Paulistão deste ano. Mas então, quem vem lá? Ora, com uma passada vai-não-vai como essa, só pode ser ele: o pensamento. Pensando nisso, na arte do pensamento bem pensado, quase nos esquecemos de dois garbosos aniversários: não é que correm 430 anos do início do retiro que permitiria a Michel de Montaigne a redação de seus portentosos Ensaios, a partir de 1570? Bem como 440 anos desde a primeira publicação, em Paris, de seus dois primeiros volumes? Os entendidos pescam logo: o assunto é Montaigne, mestre do raciocínio espiroqueta que só, porém sempre claro, com alguma imprecisão, exemplo doido ou sutil alusão aqui e ali, sem nunca deixar a prosa cair na massamorda inextricável que mais intimida que atrai – melhor não citar outros filósofos, para a carapuça não servir na concorrência.

Divagar, e sempre, já dizia Millôr Fernandes. E soterrado de razão. Montaigne, de certa forma, o antecipou, dando o devido exemplo. A filosofia de vida do cavalheiro cuja imagem adorna este texto – de medalhão, barbicha e chapéu estiloso, certamente um hipster do século XVI – era filosofar sobre a vida (e a morte também, e muito). Seus Ensaios, reflexões espirituosas, citações de sábios da Antiguidade, exemplos retirados dos meios militar e palaciano da época, assim como conselhos de vida úteis tanto em seu tempo quanto nos dias de hoje, acumulam uma mãozada de assuntos, valores, situações, virtudes, vícios e convenções sociais. Está tudo lá: pensamentos sobre nossos ódios e afeições, a covardia e os mentirosos, a ociosidade e a tristeza, as formas de se vestir e a embriaguez, as amizades e os canibais, os cavalos de guerra e o pedantismo, a crueldade e a idade, a incoerência e a imaginação, os coches e os coxos, os correios e o arrependimento, as glórias militares e os odores, a arte da conversa e o uso dos polegares, as finanças e os partos, a volúpia e as orações, a solidão e os livros. Muitas vezes um assunto descamba no outro, sem querer querendo. Menção honrosa ao vigésimo ensaio do primeiro volume, intitulado “De como filosofar é aprender a morrer”, que argumenta exatamente isso, literalmente. Há, em seus escritos, inclusive, um que trata, ironicamente, de quão vãs são as palavras. Gente que não se leva assim tão a sério: era ele, Montaigne. Só não vá o leitor soçobrar no lugar comum de achar que isso é “autoajuda”.

Embora fosse um nobre, Michel de Montaigne não o era tanto assim, ou pelo menos não se portava como um, no tocante aos salamaleques e à etiqueta cortesã. Poucas gerações atrás sua família era de burgueses em franca ascensão, enriquecidos pelo comércio, num tempo em que tal classe ia assumindo o vácuo deixado pelos decadentes senhores feudais. Quando seu bisavô plebeu Ramon Eyquem, comerciante de vinho, peixes salgados e pastéis em Bordeaux, comprou uma pequena senhoria medieval nas redondezas, passou a nobre, com direito a patronímico e tudo: eis o primeiro Seigneur de Montaigne, título dado em correspondência ao nome das terras adquiridas. O filho e herdeiro de Ramon, chamado Grimon, deu um passo além: levou o nome da família às honras oficiais, tornando-se magistrado civil, dando QI suficiente para fazer dois de seus filhos advogados e conselheiros do parlamento de Bordeaux e casar suas filhas com figurões da magistratura judiciária local. Pierre Eyquem de Montaigne, o mais velho dos rebentos, talvez querendo um pouco de ação numa vida entre livros de contabilidade, foi às armas, procurando vazar ou mutilar considerável contingente de italianos, conforme as guerras que naquele tempo engajavam a França. Quando voltou, dividiu-se entre afazeres comerciais e as honrosas funções municipais para as quais fora eleito várias vezes. A fortuna familiar crescia, assim como a própria família: depois do casamento de Pierre com Antoinette de Louppes de Villeneueve, filha de um vendedor de vinhos de Toulouse de origens também burguesas, e ainda por cima judaicas, lá pelo meio dia de 28 de fevereiro de 1533 o castelo de Montaigne, ladeado por suas vinhas, ouvia pela primeira vez o choro do recém-nascido Michel. Primogênito do casal. No que pese esses berros de estreia no palco da vida, começava uma infância de todo feliz, o que queria dizer, naquela época, que ao menos ela decorreu “sem pancadas nem lágrimas ”, conforme o próprio Montaigne escreveria décadas depois.

Jovenzinho, aos seis anos de idade, Michel de Montaigne foi estudar no Colégio de Guyenne, em Bordeaux. O fato de ter permanecido como aluno interno, até a adolescência, provavelmente foi amenizado pela influência que recebera, lá, dos mestres humanistas Marc-Antoine Muret e George Buchanan. Dali, partiu para os estudos em Direito em local incerto, provavelmente Toulouse, onde se formou em 1554. E foi aí, exercendo sua carreira de advogado e de conselheiro tanto no Tribunal de Périgord quanto no Parlamento de Bordeaux, onde ficou, mais que antojado, revoltado com a injustiça das instituições jurídicas, que teceu amizade com aquele que seria um grande influenciador de sua vida: o pândego Etienne de la Boétie.

A dobradinha Etienne & Michel merece um parágrafo à parte. Da pá virada, a dupla pegava pesado nos divertimentos mundanos, levados às últimas, antecipando comportamento que mais tarde só teria equivalente nos astros do rock: deambulavam entre o bom vinho e a galhofa estapafúrdia, gostando de adornar-se e de cair na gandaia, não raro acompanhados de belas mulheres. Estas, aliás, como bem apontado em diversos estudos sobre Montaigne, eram vistas por ambos como criaturas inerentes aos prazeres da carne e só, ou seja, incapazes de elevação espiritual, visão mais tarde patente em seus escritos. Machistas da vida louca, essa é a verdade.

Etienne morreu em 1563, inaugurando o que parece ser o período mais tristonho da vida de Montaigne. Páginas tocantes seriam escritas sobre o amigo de esbórnia, em memória: nem os amores paternos e conjugais foram tão fortes, desabafava o autor. A bebedeira e os rabos de saia perderam a graça, posto que apenas o faziam lembrar do amigo: achou melhor deixa-los de lado. Nesse período, no mais, nosso galante pensador já tinha percebido que não dava para cortesão: um ano antes de Etienne morrer havia acompanhado o rei Carlos IX a Rouen, ocasião em que suspirava e revirava os olhos para cada mesura e gesto afetado dos palacianos. Como em 1568 seu pai falecera, tornando-se ele o Seigneur de Montaigne, já que era o mais velho dos irmãos, e como os afazeres no Parlamento de Bordeaux eram tão azucrinantes quanto a corte, largou o cargo de conselheiro, refugiando-se em sua propriedade lá pelos idos de 1570. Sorte nossa. Então casado com a filha de outro conselheiro parlamentar, mas sem se interessar muito pela esposa, com filhos mortos prematuramente, à exceção da pequena e frágil Leonor, Michel de Montaigne, então aos 37 anos, só queria a paz e o sossego de viver entre seus livros, em atenção especial aos escritos dos mestres gregos e romanos da Antiguidade. Foi aí, nesse quadro de quietude, melancolia, certo ócio criativo e diálogos entre Sêneca, Cícero, Platão e outros bambas, que nasceram os Ensaios. Concebidos especificamente a partir do hábito de tomar nota das obras lidas, junto com a extravagância de ideias que brotavam em seguida.

Se o pensamento de Michel de Montaigne teve grande importância? Ora, pois. O autor viveu tempos de turbulência e contradição na sociedade europeia, coisas que não deixaram de transbordar em seus escritos. Grande pano de fundo, havia a espinhosa questão politica, social e econômica: a economia feudal agonizava e a burguesia subia, calcada nas atividades manufatureiras e comerciais, processo mesmo que permitiu a existência do pensador como tal. Essa nova organização social se articulava, em outro plano, com o enfraquecimento do pensamento teocêntrico que regeu o período medieval: aquele tempo todo de obscuridade e restrições ideológicas havia criado uma burguesia ávida por novas ciências, fundadas no homem e na natureza. Projetando o futuro, a solução estava no passado: a fonte que mataria tal sede era aquela onde Montaigne nadava a miúdo, os filósofos gregos e romanos condenados pela Igreja, então pouco interessada em ideias que não fossem de controle social via acusações de pecado e degradação espiritual, uma Igreja temente, em suma, ao livre pensar, reativa ao humanismo renascentista. Por fim, e não dissociada das demais questões, cabe lembrar que, no tempo de Montaigne, a Reforma Protestante seguia a todo vapor. A nova concepção do cristianismo, iniciada por Martinho Lutero e mantida sob a batuta de João Calvino na França, era intimamente ligada ao nascente espírito do capitalismo burguês, botando, ou tentando botar, o poder dos papas romanos para escanteio. Todo esse caldo, afinal, dava a base da prosa de Montaigne, não raro repleta de sinceras dúvidas, reflexo da complexidade dos tempos. Daí as idas e vindas e as meias palavras em seu raciocínio: por um lado, perplexidade com as contradições e as novidades do momento, por outro, esperteza suficiente para não levantar suspeitas e gerar perseguição. Montaigne, afinal, pinta o retrato da própria consciência, naquele momento e ainda hoje: ambígua, obscura, inconstante, problemática, assistemática.

Resta dizer que o retiro de 1570 foi temporário. Quatro anos depois, depois de muita labuta ao papel e ao tinteiro, Montaigne estava de volta à agitação das cortes. E ponha-se agitação nisso: foi logo à espada, juntando-se ao exército na retomada de Fontenay-le-Comte, então em poder dos huguenotes – ou seja, protestantes, em geral calvinistas. A vida intensa no campo de batalha, em meio à juventude nobre, lhe foi um estímulo e tanto, influenciando mesmo seus escritos subsequentes, sobretudo no que se reflete quanto à morte: melhor morrer em pé, aos berros e coberto de sangue e glória, do que doente e acamado, correto?

Ainda em 1574, Montaigne assumiu funções diplomáticas, recebendo lá suas recompensas da coroa. Dois anos depois escreveu “Apologia de Raymond Sebond”, que virou o trecho mais longo de seus Ensaios, também sendo considerado mais o mais valioso, no sentido estritamente filosófico, no que tange à defesa do ceticismo. Entre 1578 e 1580, o autor completou o Livro II de seus pensamentos, publicando este e o primeiro na França, depois partindo para um merecido descanso na Itália. Mas que férias, que nada: na terra de Dante foi surpreendido com a informação de que tinha sido eleito prefeito de Bordeaux, com o rei ordenando-lhe a posse em 1581. Assim, sem mais nem menos? Não: encargo do prestígio cativado.

Não que tenha sido exatamente ruim, mas, ao que consta, Montaigne parece ter exercido melhor carreira como pensador do que como prefeito. Tudo ocaso de finzinho de mandato, quando, sabe-se, os governantes costumam mesmo enfiar os pés pelas mãos, e dentro da jaca. De acordo com duas cartas de conselheiros de Bordeaux, ele teria cometido o desplante de se ausentar da eleição de seu sucessor, por causa da peste que grassava na época, preferindo ficar em seu castelo, em segurança – e de quebra iniciando novo período de estudos e escritos, entre 1585 e 1588, compondo enfim o Livro III de seus Ensaios. Na época foi uma desfaçatez, da qual hoje bem podemos ser gratos. O problema foi que quando foi a Paris para publicar o novo material, deu de cara com a capital de pernas para o ar: na convulsão política que pegara Montaigne de calças curtas a oposição que tentava destronar Henrique de Navarra o jogou na Bastilha por algumas horas, por sua lealdade ao rei, de longa data. Sua libertação se deu na carteirada: no caso, uma intervenção da rainha-mãe Catarina de Médicis.

Antes de morrer, aos 59 anos, se contorcendo de cálculos biliares, em sua propriedade, Montaigne ainda teve tempo de fazer um leve tour palaciano, acompanhando a corte em Chartres, Rouen e Blois. Foi nesta cidade que travou contato com a Mademoiselle de Gournay, que assumiria grande importância no fim de vida do pensador: surpreendendo aos mexeriqueiros de sua vida, ela foi, provavelmente, a única criatura do sexo feminino que Montaigne amou. Mas era amor de pai e filha, dizem. Ela tinha 23 anos e assumiu a edição das obras escrita do amigo-pai, depois de sua morte. Ironicamente, devemos um tiquinho a ela, uma mulher, a preservação do pensamento do Seigneur de Montaigne.

Acamado pela doença, com o fim se aproximando, Montaigne volta e meia tinha forças para se levantar, se divertir, cavalgar e apostrofar seu médico da forma devida: era daqueles pacientes impacientes, rebeldes até os ossos, que sabem o que é bom para eles e preferem se tratar sozinhos. Gournay e Pierre Charron, este visto como seu discípulo, que sintetizaria a filosofia cética do mestre mais tarde, eram alguns de seus últimos convivas. Enfim, em 1592, Montaigne casou a filha Leonor, e ficou basicamente esperando a morte, na santa paz, coisa que não tardou, chegando naquele mesmo ano. Não sem antes dar, do leito, um último tratamento a seus Ensaios. Neles vive, afinal.

Explore o documento:
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon1144076/icon1144076.jpg