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História do Livro | Ênio Silveira e a Editora Civilização Brasileira

11 jun 2021

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No intervalo entre as duas grandes guerras e agitada por movimentos políticos e culturais, a década de 1920 viu o surgimento de várias livrarias e editoras no Brasil. Uma das mais importantes foi a Editora Civilização Brasileira, fundada em 1929 por Gustavo Barroso, Ribeiro Couto e Getúlio Costa. A data, apontada por Laurence Hallewell em “O Livro no Brasil”, é motivo de controvérsias: Andréa Galucio, da UFF, mostra que a editora só se registrou na Junta Comercial em 1932, embora reconheça a existência de cerca de vinte publicações datadas dos dois anos anteriores.

Em 1932, a editora foi comprada por Octalles Marcondes Ferreira, dono da Cia. Editora Nacional, tornando-se uma subsidiária. Ferreira esteve à frente de ambas as empresas até 1950, período no qual, segundo Galucio, a Civilização Brasileira publicou centenas de títulos, contando os relançamentos, como as sucessivas edições do “Pequeno Dicionário de Língua Portuguesa” organizado por Hildebrando de Lima e Gustavo Barroso. Seu público-alvo eram os adultos, ao passo que a Cia. Editora Nacional investia em livros infantis e juvenis, obras didáticas e de apoio aos professores, como o projeto “Biblioteca Pedagógica Brasileira”. Em contrapartida, a Civilização Brasileira trouxe coleções como a “Biblioteca de Divulgação Científica”, com trabalhos de relevo no campo das Ciências Sociais.

Veja uma carta de Aydano do Couto Ferraz ao médico e etnólogo Artur Ramos, tratando da publicação dos Anais do II Congresso Afro-Brasileiro na “Biblioteca de Divulgação Científica”, então dirigida por Ramos (Divisão de Manuscritos).

Estudante de Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, o paulistano Ênio Silveira (1925 – 1996) foi indicado por Monteiro Lobato para assumir o lugar de Artur Neves, braço-direito de Marcondes Ferreira, que saíra da empresa para fundar a Editora Brasiliense, juntamente com Lobato e Caio Prado Jr. O ano era 1943. Silveira começou escrevendo orelhas de livros, mas rapidamente passou a outras funções, tornando-se diretor editorial e, a partir de 1951, responsável pela filial da editora no Rio de Janeiro. Foi um dos fundadores e dirigentes da Câmara Brasileira do Livro e presidente do SNEL, Sindicato Nacional de Editores de Livros. Além da crescente importância que assumiu na empresa, casou-se com Cleo, filha de Octalles Marcondes Ferreira. Pouco mais tarde, viajou aos Estados Unidos, onde estudou Editoração na Universidade de Columbia.

A administração de Silveira deu um grande impulso à Editora Civilização Brasileira, trazendo novos títulos e inovações na produção gráfica. Em 1956, o romance “O Encontro Marcado”, de Fernando Sabino, inaugurou a Coleção Vera Cruz, que lançou três centenas de romances de autores nacionais. Outras coleções passaram a publicar poesia, contos, novelas e peças teatrais, com o que a editora se tornou o mais importante veículo da literatura brasileira da década de 1960. Entre os autores contam-se nomes como Autran Dourado, Ferreira Gullar, Esdras do Nascimento e Carlos Heitor Cony. Também publicou escritores estrangeiros: um dos maiores sucessos no início dos anos 1960 foi “O Velho e o Mar”, de Ernest Hemingway, com uma tiragem de 20.000 exemplares.

Entre 1962 e 1964, a Civilização Brasileira publicou os “Cadernos do Povo Brasileiro”, periódico que abordava temas políticos e socioeconômicos. Foi interrompido pelo primeiro Ato Institucional e substituído pela “Revista Civilização Brasileira”, fechada por ordem do AI-5 em 1968. A editora vivia sob pressão devido ao teor de algumas publicações, como as obras de Karl Marx e Antonio Gramsci; sua livraria e depósitos eram frequentemente visitados pela polícia, obras eram apreendidas e a livraria chegou a ser incendiada, ao passo que o próprio Silveira foi preso várias vezes entre 1964 e 1970.

Veja a defesa apresentada pelo General Riograndino Kruel, diretor do Departamento Federal de Segurança Pública, do confisco de quase 10.000 exemplares de 17 diferentes títulos da editora. Os documentos foram publicados na Revista Civilização Brasileira (Divisão de Manuscritos).

A Companhia Editora Nacional sofreu represálias em virtude de sua ligação com a Civilização Brasileira, deixando de ter livros comprados por escolas (principalmente religiosas, de acordo com Galucio) e perdendo uma fatia importante da receita. A solução encontrada por Octalles Marcondes, que tinha um bom relacionamento com o genro, foi oferecer a este a maior parte das ações da empresa, que assim passou a ser de fato dirigida por Ênio Silveira. Segundo o próprio editor, em entrevista citada por Hallewell, sua primeira medida foi renovar a imagem da Civilização Brasileira com a ajuda do designer Eugênio Hirsch; os livros ganharam nova tipografia, mais cores, toda uma estética que passou a ser referência.

Apesar das restrições impostas ao setor cultural, o mercado livreiro cresceu no final da década. Sem jamais ter aberto mão de sua linha editorial, Ênio Silveira fez a empresa crescer a ponto de, em 1970, responder por 20% do mercado brasileiro de ficção. Pela Civilização Brasileira saíram obras de autores como Daphne Du Maurier, Ian Fleming, George Orwell, Hemingway, Cortázar, Alejo Carpentier, Ernesto Sábato, Hermann Hesse e Bertold Brecht, entre muitos outros. Também ficção brasileira considerada crítica ao regime, como “Fazenda Modelo”, de Chico Buarque e “Quarup”, de Antonio Callado.

Veja um cartão enviado por Ênio Silveira a José Olympio, parabenizando-o por seu aniversário e pela atuação na indústria editorial (Divisão de Manuscritos)

Em 1978, foi lançada a revista “Encontros com a Civilização Brasileira”, que publicou, entre outros, artigos escritos para o periódico anterior que permaneciam inéditos. A revista circulou até 1982. No mesmo ano, Silveira firmou parceria com a Editora DIFEL, e dois anos mais tarde foi incorporada à Livraria Bertrand do Brasil, subsidiária da editora portuguesa do mesmo nome. Ainda houve algumas fusões entre editoras e o surgimento da pequena Philobiblion, que publicava poesia. Por fim, em 1997 – um ano após a morte de Ênio Silveira --, a Bertrand do Brasil foi vendida ao Grupo Record, passando a Civilização Brasileira a ser um de seus selos. No catálogo, clássicos da Literatura, da Economia e das Ciências Sociais, além de trabalhos acadêmicos contemporâneos.

Obra da Civilização Brasileira anunciada em edição de 1943 do jornal “Leitura”