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História do Livro | Leituras Privadas e Salões Literários na Europa dos Séculos XVII – XVIII

01 nov 2020

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e marcado com as tags Antoinette Deshoulières, História do Livro, Leitura Individual, Salões Literários Franceses, Samuel Pepys, Século das Luzes, Secult

Segundo o historiador Steven Roger Fischer, “nos séculos XVI e XVII, uma autêntica biblioteca de conteúdo popular decorava muros, portas, postes e janelas da Europa”.

A afirmação se refere aos pôsteres e cartazes, muito comuns na época, que veiculavam desde leis e proclamações até avisos sobre falecimentos, feiras e espetáculos de teatro. Além dessas publicações afixadas, circulavam periódicos e livros de vários tipos, muitos dos quais eram lidos coletivamente. No entanto, a leitura individual também era amplamente praticada, quer em espaços públicos – os livros de bolso, desde Aldo Manuzio, já eram populares entre os viajantes – quer na própria sala de estar, gabinete ou quarto de dormir.

Em seu capítulo sobre a história da escrita, incluído em “História da Vida Privada”, Roger Chartier menciona várias passagens do diário de Samuel Pepys. O parlamentar e funcionário da administração naval britânica (1633 - 1703) é frequentemente citado como testemunho de sua época, desde acontecimentos de grande impacto, como o incêndio que destruiu boa parte de Londres em 1666, até as práticas da vida cotidiana. Pepys, assíduo visitante de livrarias, mantinha uma biblioteca em seu escritório (catalogada por ele próprio) e levava um livro consigo a toda parte. Ao caminhar à margem de um rio, lê poemas, noutro passeio, uma obra sobre hidrostática; no gabinete, confessa, lê obras que considera “divertidas, porém licenciosas”, ao passo que em casa, ao lado da esposa, pede a um criado que leia para ele “A Vida de Júlio César”.

Percebe-se, assim, uma relação de proximidade, de cumplicidade com o livro, saboreado num ambiente íntimo que só se desvendava aos olhos dos mais próximos: o criado pessoal – segundo Chartier, ler para os amos era uma tarefa frequentemente atribuída aos empregados – e a esposa, com quem Samuel Pepys partilhava leituras. Outros relatos contam de pais e filhos lendo entre si e, ainda, de famílias que se reuniam para leituras conjuntas, principalmente entre os protestantes. É do século XVII, em seus últimos anos, o frontispício da obra de Perrault, “Histoires et Contes du Temps Passé” (1697), onde uma senhora aparece fiando e contando histórias: a imagem arquetípica, atemporal, da avó ou velha ama que passa adiante contos e saberes da tradição oral.

Não apenas narradoras, mas leitoras tão contumazes quanto os homens, como testemunham relatos e iconografia da época, as mulheres também escreviam e participavam ativamente da vida literária na Europa moderna. Na França de Luís XIV (1643 – 1715) era comum que os membros das classes abastadas se reunissem para ler e discutir literatura; estavam em voga os romances populares, sucessores dos livros de cavalaria, comumente chamados “preciosos”, alcunha que acabou por ser estendida às autoras e leitoras. No século XVIII, algumas delas se destacariam por escrever contos de fadas e contos maravilhosos, além de romances e novelas, mas algumas décadas antes Antoinette Deshoulières (1638 – 1694) já deslumbrara a corte com suas odes, elegias e madrigais. Foi ela a primeira mulher eleita para academias literárias no país (Académie des Ricovrati em 1684, Académie d´Arles em 1689), ao passo que outras eram ridicularizadas por autores como Molière em “As Preciosas Ridículas” (1659).

Nesta litogravura de Jacques Llanta, datada das primeiras décadas do século XIX e pertencente à Divisão de Iconografia, Antoinette Deshoulières, que Voltaire afirmou ser sua poeta preferida, é a única mulher retratada entre grandes escritores franceses, entre os quais Rousseau e La Fontaine.



Os salões literários abrigaram dezenas de nomes da literatura francesa, tais como Racine, Chapelain, um dos fundadores da Acadèmie Française, e La Fontaine, que recriou as fábulas clássicas atribuídas a Fedro e Esopo. Abrigaram também toda sorte de rivalidades, como a famosa “Querela dos Antigos contra os Modernos”, em que um grupo defendia os clássicos e outro, do qual fazia parte Charles Perrault, o “maravilhoso nativo”. Muitos países tiveram, é claro, academias e sociedades literárias, gabinetes e bibliotecas, e o costume de ler em grupos e em família era certamente difundido em toda a Europa e em suas colônias do Novo Mundo. No entanto, foi nos salões franceses, em meio a debates e discussões apaixonadas, que germinaram os ideais iluministas e se abriu caminho para uma era de grandes revoluções.