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História do Livro | Relatos Sobre o Brasil: O Cosmógrafo André Thevet

11 out 2020

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Em 1555, mesmo ano em que o alemão Hans Staden retornou de sua temporada entre os tupinambás, iniciou-se no Brasil uma breve tentativa de colonização por parte dos franceses. Apoiada pelo Rei Henrique II, teve como líder Nicolas Durand de Villegagnon e trouxe à costa do Rio de Janeiro cerca de seiscentas pessoas em apenas duas naus. Entre elas, o piloto Nicolas Barré, que escreveu um relato sobre a viagem, e o frade franciscano André Thévet, que deu à colônia o nome pelo qual passaria à história: França Antártica.

Segundo Frank Lestringant, especialista na história das viagens do século XVI, Thévet (Angoulême, França, 1516 – 1592) foi um dos autores mais prolíficos e, ao mesmo tempo, mais controversos do Renascimento. Filho de um barbeiro-cirurgião, ingressou na vida religiosa aos dez anos de idade e, antes de vir ao Brasil, empreendeu uma jornada pelo Oriente, visitando a Grécia, a Síria, o Egito e a Palestina. O relato dessa viagem, ilustrado com 25 xilogravuras, foi publicado em 1554 sob o título “Cosmographie du Levant”. Consta não ter sido o próprio Thévet que o redigiu, mas sim um colaborador mais familiarizado com a arte da narrativa; a prática se estenderia a vários outros trabalhos do franciscano.

Em 1555, Thévet se juntou à expedição de Villegagnon na qualidade de capelão. A frota chegou à região de Macaé em novembro, e em pouco tempo o frade adoeceu, a ponto de não conseguir oficiar a missa de Natal. Em janeiro de 1556, embarcou de regresso à Europa, tendo permanecido no Brasil por apenas dez semanas – durante as quais, mesmo assim, registrou o que havia observado durante a viagem e a permanência em terras brasileiras. Ao mesmo tempo, recolheu alguns artefatos, tais como um maracá e um manto cerimonial usado pelos tupinambás. Segundo Ronald Raminelli, esses objetos tinham dupla função: servir como provas materiais da viagem e presentear os notáveis de cuja boa-vontade dependia o privilégio da impressão de livros. O próprio rei foi agraciado com um adorno de cabeça enfeitado por plumas de tucano, e isso parece tê-lo agradado: Thévet não apenas conseguiu imprimir as obras como, liberado de seus votos religiosos, foi nomeado cosmógrafo real em 1560.

Em 1557, a tipografia dos herdeiros de Maurice la Porte publicou o relato da viagem ao Brasil, ilustrado com 41 xilogravuras atribuídas a Jean Cousin e intitulado “Les Singularitez de la France Antartique”. Mais uma vez, André Thévet precisou de ajuda com a narrativa; Lestringant menciona um documento do Arquivo Nacional francês segundo o qual, pouco após o livro ter saído, os tribunais aceitaram a causa do bacharel e tradutor Mathurin Héret, que conseguiu uma indenização de vinte escudos de ouro por sua colaboração na obra.

Conheça as singularidades da França Antártica por meio deste exemplar, pertencente à Divisão de Obras Raras.

Tal como o livro de Hans Staden, “Les Singularitez” apresentava o Novo Mundo aos olhos ávidos por curiosidades dos europeus, mas recorria um pouco mais à imaginação – ou, melhor dizendo, ao imaginário fantástico -- para retratar a terra, seus habitantes e, especialmente, sua fauna, que descreve à maneira do que se fazia nos bestiários medievais. Também usava exemplos de autores clássicos: a forma pela qual os guerreiros tupinambás se aproximavam de seus inimigos é comparada à dos gauleses descritos pelo historiador romano Tito Lívio. A aproximação entre essa realidade instigante, apenas imaginada, e os modelos já conhecidos agradou aos leitores, e o livro não tardou a ganhar novas edições – a primeira, em 1558, na tipografia de Plantin -- e a primeira tradução, em 1561, para o italiano.

Apesar da boa recepção de sua obra junto ao público, Thévet foi desacreditado por muitos estudiosos da época, para o que contribuíram sua erudição relativamente modesta e as rixas entre os intelectuais católicos e os ligados à Reforma Protestante. Um dos últimos, Jean de Léry, esteve no Brasil algum tempo após Thévet e lhe endereçou várias críticas em seu próprio relato de viagem, publicado pouco após o surgimento de “Cosmographie Universelle”. Essa obra em quatro volumes, dos quais o último trata da França Antárica, foi escrita por André Thévet em colaboração com François de Belleforest. Os dois, porém, se desentenderam, a ponto de Belleforest publicar sua própria “Cosmografia” em 1572; a de Thévet saiu três anos depois e, embora fosse uma edição cuidada, com 228 gravuras, não teve muito sucesso nas vendas.

André Thévet deixou várias outras obras, quase todas tratando de cartografia e cosmografia, mas também algumas biografias de homens ilustres. Nenhuma, porém, ficou tão conhecida quanto “Les Singularitez”, que, com todas as imprecisões que possa conter, é um dos primeiros livros a fornecer informações etnográficas sobre o Brasil.

Conheça a “Cosmographie Universelle” de André Thévet, também pertencente à Divisão de Obras Raras.

Primeiro tomo

Segundo tomo (no qual se trata da América a partir da página 951 da obra digitalizada)


Mapa retratando a costa do Brasil, incluído no quarto livro da “Cosmographie” de André Thévet