BNDigital

Império do Brasil | Abelha Pernambucana: ferroadas de Borges da Fonseca

18 jan 2022

Artigo arquivado em Império do Brasil
e marcado com as tags Antônio Borges da Fonseca, Brasil Imperial, Crítica política, Imprensa de Oposicão, Pernambuco, Secult

Polemistas. O Brasil sempre os produziu, e à larga. Seja em diferentes períodos da República ou do Império, sob censura escancarada ou discreta, nosso esverdeado torrão tupiniquim sempre teve quem, conveniente ou inconvenientemente, soubesse colocar os dez dedos das mãos nas piores feridas nacionais, junto à opinião pública. Elaborar um Top 10 desses sujeitos ao longo da história do país é tarefa incauta, mas pode-se ter uma certeza: já o pai da imprensa brasileira, Hipólito José da Costa, foi, certamente, um deles, alocado, talvez, no seleto G-5 dos gladiadores de nossas letras. Outro da pá virada, com todas as honras, foi o paraibano Antônio Borges da Fonseca. Quem por aqui já leu a trajetória de seu periódico O Repúblico, lançado em 1831 no Rio de Janeiro, sabe que ele foi o bicho. Nacionalista ferrenho, crítico à primeira Constituição imperial e apoiador da implementação não só do regime republicano mas também do federalismo no Brasil, Borges da Fonseca se destacou por angariar a antipatia das autoridades do Primeiro Reinado, do Período Regencial e do Segundo Reinado, fora suas querelas com a imprensa conservadora, em especial o Diário do Rio de Janeiro. O liberal, afinal, era tão encapetado que não só teve pai combatente na Revolução de Pernambuco de 1817 como participou, em 1824, aos 16 anos de idade, da Confederação do Equador, tendo escapado à prisão por fuga cinematográfica, realizada bem a tempo. Pois bem. Borges da Fonseca chegou a produzir, no total, por volta de 20 periódicos diferentes com suas ideias, além d'O Repúblico. A maior parte deles, afinal, foi lançada em Pernambuco, muitos publicados simultaneamente. Prolífico, o autor? Pois muito. Pesadelo de seus rivais na política, Fonseca ainda redigiu grande quantidade de panfletos e proclamações, embora, muitas vezes, seja relembrado apenas pel'O Repúblico. É nesse seu embalo de exaltação, contenda e quiprocó que jogamos hoje os holofotes em outro potente jornal de sua safra: a Abelha Pernambucana, de 1829. Na base da arrepelada, foi nela em que o público leitor passou a conhecer - e amar e odiar e temer - a pena de Antônio Borges da Fonseca.

***

Dada a turbulência político-administrativa dos últimos momentos do reinado de Dom Pedro I, sociedades secretas foram fundadas para dar sustentação à monarquia, tendo voz em certos impressos periódicos. Uma dessas sociedades foi a chamada Coluna do Trono e do Altar, fundada em Pernambuco. Nas palavras de Nelson Werneck Sodré, em sua “História da imprensa no Brasil”, para aporrinhar e combater os adeptos da Coluna, o republicano Borges da Fonseca fundou, também, uma sociedade, mas de fé política reversa, chamada Jardineira ou Carpinteiros de São José. O radical liberal a havia organizado na Paraíba, com outros adeptos, em momento em que contava apenas vinte anos de idade, mas já era conhecido localmente pelos seus pendores republicanos - já com tenras 16 primaveras Fonseca havia participado da Confederação do Equador, que, como já apontado, lhe rendeu um tempo no xilindró.

À frente da Jardineira, o jovem Borges da Fonseca, fundou em sua terra natal a Gazeta Paraibana, que circulou em 1828 e início de 1829 e foi o segundo jornal a dar as caras por aquela província. As autoridades absolutistas locais, naturalmente, não gostaram nem um pouco e não lhe permitiram liberdade de ação: na virada entre 1828 e 1829, Fonseca foi novamente preso e processado, por provocar a rebelião contra o imperador. Liberto da Fortaleza das Cinco Pontas, na capital pernambucana, o publicista voltou à peleja política, mas, pela atenção que seu jornal paraibano atraíra das folhas conservadoras, que o atacavam constantemente, não viu condições de prosseguir com a Gazeta. Como havia sido demitido do cargo de mestre de "primeiras letras" na escola em que trabalhava na Paraíba, nem se deu ao trabalho de sair do Recife.

Em Pernambuco, volta e meia Borges da Fonseca ia parar atrás das grades. Uma carta sua chegou a sair no Diário de Pernambuco de 20 de fevereiro de 1829, queixando-se de uma nova detenção levada a cabo por um "beleguim", como se costumava chamar os oficiais rasos do sistema de justiça que efetuavam as prisões juntamente com os alcaides. A atitude, para Fonseca, teria sido infundada:

Pela primeira vez e a custa do maior despotismo fui quarta feira, 11 do corrente, preso às 6 horas da tarde por um belequim15 mandado arbitrariamente pelo Sr. Ouvidor da Comarca (...) concebido mais ou menos nestes termos – Qualquer oficial de Justiça prenda a Antonio Borges da Fonseca, Redator da Gazeta Paraibana com moderação e cautela – não se dignou declarar ao menos de leve qual o motivo de uma tal prisão (...). Não terá visto ou lido o Snr. Ouvidor a novíssima Lei que marca os prazos em que se pode prender sem culpa formada? Assim é que se zomba da Lei? (...) Não se persuadiram finalmente que sou inabalável e que ainda descarregando-se sobre mim as terríveis bravatas e aguçadas falanges dos déspotas todos do Universo, serei sempre fiel soldado da Liberdade Constitucional Sustentador dos direitos Americanos e fortíssimo membro da Família Brasileira.

Absolvido por um conselho de jurados que não viu matéria para qualquer acusação, Borges da Fonseca foi liberado do cárcere apenas em março daquele ano, espumando. A arbitrariedade foi pasto e gáudio para a revolta do gazeteiro paraibano. E acabou sendo um empurrãozinho a mais para o lançamento, em 24 de abril de 1829, no Recife, de outro periódico da lavra de Fonseca, a Abelha Pernambucana. Iniciativa auxiliada por companheiros da Jardineira, como Ernesto Ferreira França, Matias Carneiro Leão, Antonio Carneiro Machado Rios, João Arsênio Barbosa, Sebastião do Rego Barros, Francisco Xavier Pereira de Brito, entre outros, esse foi o terceiro pasquim de crítica política de inclinação liberal radical, “exaltada” de acordo com a terminologia da época, editado pelo ainda jovem pelejador letrado paraibano - os dois anteriores foram, naturalmente, a Gazeta Paraibana, e certo jornal chamado A Tesoura, editado por Fonseca por pouquíssimo tempo em 1828, pela Tipografia do Diário, já em Pernambuco. Impressa como bissemanário de quatro páginas e formato 28 x 20 cm, pela Tipografia Fidedigna, ao preço de oitenta réis o exemplar e 640 réis a assinatura mensal, a Abelha, afinal, foi apenas uma de tantas folhas de vulto de Borges da Fonseca; no entanto, foi nela em que se revelara o nome do polemista para o restante do país, que, favorável ou não à sua visão, lia em suas páginas sua bulha contra os “colunistas” e seus órgãos locais de situação.

***

A Abelha deu o que falar. Embora seu slogan se fizesse de palavras doces de Virgílio - "Eu gosto de catas as brandas flores, para delas fazer salubres méles" -, se tratava de um órgão que se impunha no ferrão. Em suas páginas, inúmeras alusões positivas sobre o heroísmo de Toussaint L'Ouverture e a Revolução Haitiana (1791-1804) foram traçadas. Suas constantes defesas da liberdade de expressão e do sistema de governo republicano, com predileções aos moldes da Constituição dos Estados Unidos da América, afinal, eram líquidas e certas. Precursor da oralidade em seus textos de crítica política, até na forma de escrever Fonseca irritava seus desafetos, que estranhavam sua forma ácida e direta, mesmo quando cismava em discutir Maquiavel, Hobbes, Locke ou Rousseau. O primeiro processo contra a Abelha, com apreensão de exemplares e tudo, não tardou: veio já por causa de sua edição de 16 de junho de 1829, que vinha com assertivas louvando os nomes de agitadores como Frei Caneca e Cipriano Barata. Depois de meses na berlinda, quase um ano depois Fonseca foi julgado inocente. Fora isso, cabe ressaltar que o jornal rendeu inclusive ameaça de morte ao editor.

Apesar das pressões do governo, a Abelha zanzou saudável até sua 142ª edição, de 31 de agosto de 1830. Fugindo um pouco à regra, sua suspensão logo em seguida deveu-se não à censura por parte das autoridades, mas ao momentâneo sucesso da doutrina política pela qual lutava: com a crise política que culminaria na abdicação de Dom Pedro I e a ascensão dos liberais na Corte, estes passaram a solicitar a presença de Borges da Fonseca nas disputas político-partidária travadas no Rio de Janeiro. A Abelha, como que depois de ferroar, morreu, mas morreu feliz - e, sobretudo, preparando terreno para o lançamento de O Repúblico em terras fluminenses. Em sua edição final, o jornal pernambucano abria com dizeres de outro periódico liberal do momento, a Astréa, um tanto comemorativos em relação à mudança dos ventos políticos na nação, mas mantendo certa cautela: "Os mandamentos brasileiros se encerram em dois: união e olho bem vivo".

Citando palavras do próprio Borges da Fonseca, Matías Martínez Molina, no livro “História dos jornais no Brasil: da era colonial à Regência (1500-1840)”, narra o seguinte com relação à Abelha Pernambucana, constituída, naturalmente, para a pugna:

[Borges da Fonseca] Propôs-se a utilizar a “linguagem da razão e da decência”, mas adotou posições radicais. Como disse Alfredo de Carvalho, pregava um mal definido republicanismo. Curiosamente, o primeiro número dizia que a publicação era “inimiga acríssima dos dois extremos — República e Absolutismo”. A Abelha Pernambucana elogiou a figuras tão radicais como Cipriano Barata e frei Caneca e digladiou-se com O Amigo do Povo (1829-31), que chamava de “O Inimigo do Povo”, e com o diário O Cruzeiro (1829-31), órgão da Coluna do Trono e do Altar, que qualificou a Abelha como papelucho imundo, uma “injúria atroz” para a província. Borges da Fonseca conta: “Publiquei nesta cidade [Recife], a Abelha Pernambucana. Novas perseguições, tentativas de assassinato por parte dos ‘colunas’ contra minha pessoa, e afinal processo por abuso de liberdade de comunicar os pensamentos pela imprensa, prisão e absolvição pelo júri”. Realmente, um militar ameaçara atacá-lo com sua espada quando o encontrasse, e sua morte chegou a ser anunciada por um jornal de Minas Gerais. Uma folha concorrente da Abelha reconheceu que “a redação não é má; mas a doutrina é de animal de ferrão”. Outro jornal escreveu que era “folha liberalíssima, e valorosa enxada na vinha da Liberdade, Independência e Constituição”. (p. 241/242)

Os órgãos recifenses da Coluna citados por Molina, O Cruzeiro e O Amigo do Povo, vieram a lume respectivamente nos dias 4 e 30 de maio de 1829, em franca resposta à Abelha, lançada em abril. Mas, no que pese a atmosfera de pura e farta testilha, Borges da Fonseca soube arrebanhar simpatizantes, logo galgando posição como componente do alto escalão liberal na corte. Quando foi requisitado por membros deste partido no Rio de Janeiro, o criador d’Abelha Pernambucana se juntou a nomes como José Joaquim Vieira Souto, Manuel Odorico Mendes, Bernardo Pereira de Vasconcelos, José da Costa Carvalho, Manuel da Fonseca Lima, Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, José Lino Coutinho, Francisco de Paula Sousa, e os padres José Custódio Dias, José Martiniano de Alencar e Diogo Antônio Feijó - figuras que aliás ascenderiam após a abdicação de Dom Pedro I. Em pouco tempo Borges da Fonseca estava mesmo à frente do Partido Liberal.

***

Com o apagar de luzes do Primeiro Reinado, tudo parecia favorável a Borges da Fonseca e sua visão ideológica. Só que não. O contexto de crise política em que o paraibano se envolvera, vindo a lançar O Repúblico na capital já em outubro de 1830, ao apagar das luzes do Primeiro Reinado, acabou não lhe sendo dos mais favoráveis. Outros órgãos liberais, como Aurora Fluminense, Astréa e a Nova Luz Brasileira estavam sob constante pressão por parte do Império, que assumia rasgos reconhecidamente absolutistas, apesar da ruptura entre a colônia e Portugal, com a Independência. Luís Augusto May, redator de A Malagueta, sofrera brutal agressão em agosto de 1829, e as inclinações autoritárias de Dom Pedro I com relação à imprensa de oposição só poderiam significar uma tragédia em vista do “currículo” irrequieto de Borges da Fonseca, visto - e com certa razão - como o mais radical entre os agitadores liberais. Em crise, Pedro I, contudo, abdicou.

Ativo na imprensa do fim do Primeiro Reinado, quando combateu os arroubos despóticos de Dom Pedro I, a meados do Período Regencial Borges da Fonseca já criticava mesmo a ala mais moderada do partido liberal, que havia, justamente, ascendido ao poder. Protecionista, o polemista paraibano, além de divergências em questões ideológicas nos planos político-administrativos, sempre exprimia grandes preocupações com o comércio e a economia, repudiando violentamente a predominância de comerciantes estrangeiros no país. Como a maioria destes era de origem portuguesa, Borges da Fonseca queria impedir a imigração de Portugal e proibir que lusos já residentes no Brasil fossem empregados no comércio. Furada ou não, essa já era outra história: a d'O Repúblico.

No total, cabe ressaltar: até sua morte, em 1872, Antônio Borges da Fonseca publicou, no mínimo, em Pernambuco, na ordem cronológica, os jornais A Tesoura (1828); Abelha Pernambucana (1829-1830); três números de O Republico Extraordinario, que saíram no Recife em 13, 22 e 27 de outubro de 1832; O Publicador Paraibano, com apenas 16 números, entre 9 de maio e 24 de novembro de 1833 (após lançar na Paraíba as primeiras edições desse periódico, a partir de 17 de abril desse ano); Correio do Norte (1841-1842), pela Tipografia de Luis Ignacio Ribeiro Roma; O Nazareno (1843-1848), pela Tipografia Social Nazarena, do próprio editor; O Foguete (1844); O Verdadeiro Regenerador (1844-1845); O Espelho (1845); O Verdadeiro (1845); O Eleitor (1846); O Tribuno (1847-1848); A Mentira (1848); Advogado do Povo (1848); A Revolução de Novembro (1852); O Constituinte (1861); e as duas fases finais da retomada de O Tribuno, uma de 1866-1867, outra de 1869. Na corte, Borges da Fonseca veio com O Repúblico em diferentes fases, em 1831, em 1834, em 1837 e no intervalo 1853-1855. Já na sua Paraíba natal, editou a Gazeta Paraibana (1828-1829); um hiato "exilado" de O Repúblico (1832); a fase inicial de O Publicador Paraibano (1833) e O Prometeu (1856). Haja fôlego. Em tenra ou madura idade, em fases mais radicais ou menos incendiárias, esse foi Borges da Fonseca: um dos mais proeminentes, prolíficos e polêmicos gazeteiros do Brasil monárquico.


Explore os documentos.