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Literatura | A revolução dos bichos - uma fábula humana

17 ago 2021

Artigo arquivado em Literatura
e marcado com as tags A Revolução dos Bichos, Distopia, George Orwell, Política, Século XX, Secult

Toda forma de poder corrompe, ou ao menos tende a corromper. Esse foi um dos principais ensinamentos do historiador britânico John Dalberg-Acton, do alto de sua cadeira na Universidade de Cambridge, no finzinho do século XIX. Hoje ele pode ser pouco conhecido, mas sua sacada, onde quase sempre o "poder" evocado é lido como poder político, inspirou meio mundo: desde a corrupção burocrática no universo dos escritos de Franz Kafka até o traço de Ralph Steadman, o ilustrador notabilizado como colaborador de Hunter S. Thompson, que delineia de forma um tanto grotesca os poderosos figurões da política internacional. E que dizer dos Engenheiros do Hawaii, que na canção "Toda forma de poder" rimam "Fidel e Pinochet tiram sarro de você"? Essas são interpretações um tanto literais do que Acton dizia, muitas vezes usadas em favor do laissez-faire no liberalismo clássico de Adam Smith e Stuart Mill - quando dizem que, sobretudo para a economia, a intervenção do Estado deveria ser mínima, ou sequer existir. Mas, já que todo poder político corrompe, vale a pena liberar geral, nesse sentido? Pelo sim, pelo não, o caldo cultural contemporâneo é cheio de exemplos que exploram a questão, mais ou menos profundamente; em comum, todos em contornos antitotalitaristas, em interpretações tanto à esquerda quanto à direita. E é aí, nesse bololô, em que damos de cara com uma das obras mais importantes da literatura universal, portadora de uma narrativa que, em alegoria, sintetiza a grande questão da democracia contemporânea. Se algum dia o dileto leitor ouviu ou leu que "Todos somos iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros", parabéns! Já foi tocado, mesmo que indiretamente, pelo irônico bordão do clássico de certo Eric Arthur Blair. Ora, profissionalmente, o senhor Blair atendia por outro nome: George Orwell. Abramos alas para A revolução dos bichos, obra prima do escritor britânico lançada a 17 de agosto de 1945, há exatos 76 anos. Para variar, atual como nunca.

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Nosso serviço anti-spoiler adverte: este parágrafo e o seguinte revelam momentos importantes de A revolução dos bichos. Mas, afinal, qual spoiler maior do que a arguta observação da História? O livro que apresentamos hoje é uma fábula muito simples, análoga a inúmeros episódios de luta pelo poder gravados na memória e na historiografia humanas. Animais de uma fazenda resolvem se rebelar contra seus donos, os humanos, exploradores cruéis, sem rabo, cascos, bicos, pelos ou penas, e que ainda têm a pachorra de andar sob apenas dois membros, ditos "pernas". Liderada pelo inteligente porquinho Bola-de-Neve, que tomara de forma exemplar os ensinamentos de outro suíno, mais velho, o falecido Major, a bicharada consegue o improvável: põe os donos da fazenda para correr. Sim, com as tais "pernas". Tomando as rédeas da propriedade, os animais entram na casa grande. São os porcos, mais inteligentes, que aprendem a ler. E, ainda em meio às comemorações, pouco depois escrevem numa placa seus igualitários mandamentos, dali em diante: "Nenhum animal dormirá em cama", "Nenhum animal beberá álcool", "Nenhum animal matará outro animal", coisas assim, civilizadas, coroadas com a seguinte frase central: "Todos os animais são iguais". Mas a lua-de-mel democrática começa a azedar conforme os quadrúpedes se veem obrigados a gerir a fazenda. Alguns, conforme força e aptidões, passam a acumular mais trabalho do que outros. Mas os bichos não desanimam, certo? Mais ou menos. Um terceiro porco, de nome Napoleão, contesta a liderança de Bola-de-Neve. E não exatamente com com argumentos: com mandíbulas caninas cheias de dentes para lá de afiados. Todos os cães da fazenda se mostram com o golpista Napoleâo, autointitulado novo mandachuva. Temendo virar bisteca, Bola-de-Neve foge.

Aos poucos, sob gestão napoleônica, o projeto da "Animal Farm", conforme o título original em inglês do livro, parece degringolar. A impressão dos mais atentos é de que há mais trabalho do que em tempos de gestão humana, e a comida começa a minguar. Instalados nas camas e nos quartos dos antigos donos da propriedade, ao contrário dos demais, os porcos passam a usar roupas humanas, a comer comida humana e a negociar a produção da fazenda com outros fazendeiros, humanos, como o intragável Frederick, dono da Granja Pinchfield, uma pequena fazenda vizinha à dos bichos. Pior: os porcos passam a andar sob duas patas. Conforme a seleta classe suína engorda em ritmo de festas natalinas, os demais animais, salvo os cães, são levados a trabalhar mais e mais ainda. Sansão, o cavalo, é levado à exaustão. Benjamin, o velho burro, que parece sensato, observa tudo à distância, impotente e cínico como um francês existencialista. Nesse ponto da fábula as fake news abundam, e sem chance de investigação em CPI: no discurso oficial de Napoleão, tudo é culpa do expurgado Bola-de-Neve, que trama as mais mirabolantes sabotagens ao projeto da quinta animal, à distância. Quando se dão conta, os bichos percebem certas diferenças na tábua de mandamentos, que justificam o comportamento esquisito adotado pela classe porcalhona nos últimos tempos: "Nenhum animal dormirá em cama com lençóis". "Nenhum animal beberá álcool em excesso". "Nenhum animal matará outro animal sem motivo". E, enfim, "Todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais que outros". Quem te viu, quem te vê, seu porco.

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Além de justificar no leitor não-vegetariano irreprimíveis anseios de saborear uma feijoada generosa em cortes suínos, A revolução dos bichos de George Orwell leva a uma série de interpretações de ordem política, por analogia. Além de imbuída de certos ensinamentos - quem hoje está por baixo pode se comportar como os de cima caso ascenda; alianças militares se dão mais por interesses do que por ideais, etc. - a obra sempre foi, mais precisamente, uma crítica ferrenha aos rumos que Josef Stálin dera ao regime soviético após sua ascensão ao poder, com o falecimento do então primeiro ministro da União Soviética Vladimir Lênin, em 1924. Sendo a fazenda tomada por animais uma alegoria da URSS, o porco Major faria as vezes de uma combinação utópica entre Karl Marx e Lênin. Napoleão estaria para Stálin da mesma forma que Bola-de-Neve para León Trotsky. E as comparações não param por aí. Jones, o proprietário bípede original da fazenda, seria uma representação do arcaico regime czarista na Rússia. Garganta (ou Bocão, conforme a tradução), o suíno porta-voz de Napoleão, poderia tanto ser lido como a versão porca do diplomata Viatcheslav Molotov quanto como qualquer político propagandista, ou como a imprensa oficial do regime, mantida sob rígido controle. Trabalhador incansável, Sansão representaria a exausta classe operária soviética como um todo, assim como os cães os militares. O burro Benjamin, por sua vez, estaria para os intelectuais ou os artistas, céticos e conscientes de todos os problemas, mas incapazes de agir. Seu oposto seriam as ovelhas, limitadas intelectualmente, como toda conveniente massa de manobra. Moisés, um corvo domesticado que foge durante a revolução dos bichos para depois reaparecer, prometendo aos judiados animais uma vida de benesses no céu, seria algo como o clero. Por fim, o humano Frederick se encaixa no papel de ninguém que Adolf Hitler, administrando seu Terceiro Reich do alto da Granja Pinchfield. O pacto comercial selado entre ele e Napoleão só poderia ser comparado ao de não agressão germano-soviético, mais conhecido como Pacto Molotov–Ribbentrop, assinado em 1939. Assim como Hitler fez com Stálin, Frederick deu a volta em Napoleão, ignorando o trato e invadindo a granja dos animais, alegoria da Operação Barbarossa, em meio à Segunda Guerra Mundial.

Apesar de no mundo capitalista A revolução dos bichos ajudar a implodir a visão de que a União Soviética sob Stálin fosse um "paraíso proletário", a leitura de que a obra é uma crítica ao comunismo em geral é errada. Filiado como foi ao Labour Party, fosse hoje vivo George Orwell seria eleitor de Jeremy Corbyn. O autor sempre estivera próximo do socialismo democrático, acreditando que o ideal, para o bem estar social, seria a instituição de governos proletários, com sindicatos e assembleias populares no poder. De fato, Orwell militava como poucos: chegou a participar de associações trabalhistas consideradas radicais na Inglaterra de seu tempo, além de ter se engajado na Guerra Civil Espanhola, do lado rapublicano e antifascista, naturalmente. Procurava, portanto, n'A revolução dos bichos, satirizar e criticar mais os rasgos autoritários do stalinismo do que o regime pós-Revolução Russa em si, já que Stálin havia, na concepção do autor, traído os ideais soviéticos originais de 1917 e rasgado a cartilha marxista. No livro, as alegorias de Lênin e Trotsky são apresentadas de forma positiva. Os vilões, mesmo, seriam Napoleão, Frederick e Jones. Ou seja, os extremos. Daí a leitura antitotalitária de A revolução dos bichos.

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Mas quem foi, afinal, George Orwell? Muito antes de seu pseudônimo ser conhecido mundialmente, Arthur Blair nasceu de pais ingleses na Índia, em 1903, quando a terra de Mahatma Gandhi ainda se encontrava sob domínio do Reino Unido. Com apenas um ano de idade, o pequeno se mudou com a família para Shiplake, em Henley-on-Thames, no interior inglês de Oxfordshire, onde foi basicamente criado por mãe solo: o pai, trabalhando na Irlanda, só seria visto novamente pelo filho em 1912, oito anos depois da mudança de continente. Profundamente enfadado com o ensino em sua escola religiosa e fã de H. G. Wells, Eric confessava à amiga Jacintha Buddicom que pretendia ser um escritor famoso, escrevendo algo semelhante ao clássico distópico A Modern Utopia. Tendo conquistado uma bolsa para o prestigioso internato Eton College em 1917, o futuro autor ficou por lá até 1921, onde, por um breve momento, teve aulas de francês com ninguém menos que Aldous Huxley. Intelectualmente indomável que era, o jovem Blair levava bomba nos boletins do colégio interno, coisa preocupante, pois boas notas por lá eram a única coisa que possibilitariam seu ingresso numa universidade, já que seus pais eram para lá de ruins de grana. Mas Eric tinha outra coisa na cabeça: queria servir ao Império Britânico no oriente, torrão natal idealizado com boas doses de romantismo. E conseguiu.

Membro da Polícia Imperial Indiana aprovado em concurso, em 1922 o intrépido rapazote decidiu trabalhar na Birmânia, atual Myanmar, onde sua avó materna residia - a mãe de Eric, Ida Mabel, aliás, havia crescido por aquelas bandas. Dotado de grande senso de responsabilidade e justiça, Eric Arthur Blair ascendeu na corporação até 1927, ano em que contraiu dengue e, aproveitando uma licença na Inglaterra, largou a carreira policial para virar escritor, após profundo exame de consciência. Foi de sua experiência no extremo oriente que nasceram suas crônicas da década de 1930, bem como o romance Dias na Birmânia, de 1934, que mostra, nu e cru, o ímpeto colonizador do Império Britânico nas Índias.

De volta à Inglaterra, Blair se estabeleceu em Londres, morando num quarto de sobrado na Portobello Road. Com a ajuda de amigos e com inspiração em Jack London, o aspirante a escriba se embrenhou nas favelas, nas ruas e nos alojamentos populares londrinos, não só escrevendo sobre a penúria, mas sentindo-a na pele. Entre 1928 e 1929, Eric esteve em Paris, atraído tanto pela boemia quanto pelo fato de a capital francesa ser, então, um pólo intelectual. Escreveu seus primeiros rascunhos de obras e os destruiu - a não ser o que originaria Dias na Birmânia. Fato é que não foram tempos fáceis em terras francófonas: Eric Blair lavou pratos em hotel, onde viu o luxo de perto e espumando de raiva, e também passou fome, foi roubado, viveu nas ruas, adoeceu. “Tornei-me pró-socialista mais por desgosto com a maneira com os setores mais pobres dos trabalhadores industriais eram oprimidos e negligenciados do que devido a qualquer admiração teórica por uma sociedade planificada”, disse, anos mais tarde. Suas desventuras naquele momento foram narradas no livro Na pior em Paris e Londres, de 1933, ocasião em que passou a adotar seu nom de plume: George Orwell.

A sorte de Orwell começou a virar quando, em agosto de 1929, teve o ensaio "The Spike" publicado em Londres, na revista New Adelphi. Daí para novos trabalhos na imprensa foi um pulo. Sobretudo quando se juntou ao Partido Operário de Unificação Marxista (POUM), rumo ao combate na Guerra Civil Espanhola junto com a esposa, Eileen O'Shaughnessy. Uma bala do exército de Francisco Franco o feriu no pescoço, deixando suas cordas vocais fragilizadas pelo resto da vida. Seus livros A filha do reverendo, Mantenha o sistema, Lutando na Espanha e Um pouco de ar, por favor! vieram a lume, respectivamente, em 1935, 1936, 1938 e 1939, entre diversas incursões orwellianas na imprensa. Chegada a Segunda Guerra Mundial, o autor esteve mais envolvido com o jornalismo.

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Às vésperas da concepção de A revolução dos bichos, em 1945, Orwell tinha acabado de pedir demissão de seu emprego de jornalista na BBC. Apaixonado pelo poder mobilizante da escrita literária e ainda tinindo pelo combate às injustiças sociais, achou que era hora de se dedicar mais à ficção. Naquele mesmo ano de 1945, além de a Segunda Guerra Mundial ter acabado, Eileen falecera. Nada mais justo que largar tudo para se dedicar à letras. Até porque nesse ponto de sua história, Orwell não teria muito mais tempo: morreria de tuberculose em 1949. Apenas um ano antes de morrer, e impulsionado pelo sucesso da fábula fazendeira do pós-guerra, o britânico ainda tivera tempo de escrever 1984, uma das maiores distopias literárias da história, descrevendo com os devidos pingos nos is inúmeras artimanhas, sobretudo tecnológicas, do Grande Irmão (alegoria governamental válida para qualquer país), para a vigilância, o controle social e a biopolítica.

Polissêmica, A revolução dos bichos dialoga com o romance derradeiro de Orwell ao figurar, atualmente, muito além da crítica ao stalinismo, mas como libelo irônico contra o autoritarismo em geral. Independentemente de coloração política, todo regime totalitário explora a força trabalhadora, censura e oprimie a liberdade de expressão, concentra o poder via violência, controla liberdades democráticas e direitos civis e deturpa a verdade. Daí a universalidade e a atemporalidade da obra orwelliana. Além de tudo, quem agradece é o rock'n'roll: fora a inspiração explícita do álbum Animals, do Pink Floyd, bandas como R.E.M., The Clash e Radiohead emplacaram canções baseadas no pensamento n'A revolução dos bichos. Para facilitar a vida, o clássico está em domínio público.

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Em 2016, momento em que a venda de livros de George Orwell cresceu consideravelmente em diversos países, certos fãs de distopias pipocaram aqui e ali com bonés e camisetas com os dizeres "Make Orwell fiction again". Gracejando com lideranças por todo o globo, os dizeres faziam referências não só à fábula que narra as desventuras de Napoleão e Bola-de-Neve, mas ao caráter profético de 1984. Essa já é outra história. Ou será que não? Rindo de nervoso, só podemos suspeitar que George Orwell talvez nunca tenha sido, exatamente, autor de ficção.


Explore os documentos:


Figuras do jogo do bicho: cenas caricatas.

Texto de Ruy Castro para a Manchete, em 1975, sobre 1984: que, para cada país, cai num ano diferente.