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Literatura | Bestiário, obra do escritor Julio Cortázar completa 70 anos

24 set 2021

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Bestiário, 70 anos

Vomitar coelhos compulsoriamente, quando se está ocupando o apartamento de outra pessoa, é algo para lá de inconveniente: pelo sim, pelo não, o manual de boa conduta do inquilino diz que, no mínimo, deve-se informar o proprietário do imóvel sobre o ocorrido - vai que os dentuços começam a roer os móveis? Pior que isso só quando se reside numa casa mui antiga, há gerações na família, e que, sem maiores explicações, passa a ser tomada, aos poucos, não por coelhos, mas por intrusos invisíveis e fantasmagóricos, daqueles que fazem ruídos de botar cabelo em pé nas horas mais inconvenientes. Constrangimento menos agudo, mas igualmente incômodo, talvez seja o de ser julgado por todos os passageiros do ônibus só por ser o único a não trazer flores a tiracolo, já que a condução vai passar por um cemitério. Mas nada, nada disso, se compara ao suplício de ter que alimentar mancuspias a vinho branco todos os dias: melhor roubar logo um cavalo e fugir com a Leonor, a mais bela trabalhadora da granja. Isso caso o tigre sob os cuidados de Don Roberto, da estância vizinha, dos Funes, nos deixe passar. O amigo leitor deve pensar que deu a louca no plumitivo responsável por este texto. Teria razão, mas só em parte. É que todas as situações acima, entre outros adoráveis descalabros, estão devidamente documentadas em fina prosa num dos maiores clássicos da literatura latinoamericana - para não dizer num dos maiores clássicos da literatura mundial. Trata-se de Bestiário, primeiro livro de contos do abalizado argentino Julio Florencio Cortázar, mestre absoluto do conto. Neste ano, a obra completa 70 tenras primaveras.

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No início dos anos 1950, Julio Cortázar, quase quarentão, ainda não tinha o status de Godzilla literário, que tem hoje. Mas já era uma personalidade conhecida na vanguarda das letras argentinas. Depois da publicação de seu livro de estreia, de sonetos, Presencia, em 1938, veio com a peça de teatro Los Reyes, em 1949, e era figura ativa na imprensa literária de seu país. Vinha aprimorando seus contos já há um tempo, fora as novelas Divertimiento, escrita em 1949, e El examen, de 1950 - as últimas só seriam publicadas postumamente, em 1986, ao passo que seus contos escritos entre 1937 e 1945 seriam reunidos num único volume apenas em 1994, sob o título La otra orilla. Ocorre que, além de escrever, Cortázar tinha outros compromissos profissionais. Mas tudo um dia muda. Desde 1946 Juan Domingo Perón assumia como presidente da República, por aquelas bandas do Prata, coisa que fez com que o escritor abrisse mão do cargo de professor de literatura na Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad Nacional de Cuyo, para trabalhar como tradutor e seguir, como dava, com sua produção literária. Quando os rasgos mais autoritários do peronismo se fizeram mais temerosos, Cortázar achou melhor aceitar uma bolsa de estudos na França. Acabou se estabelecendo na terra de Rimbaud e Baudelaire, parindo muitas de suas obras de vulto por lá, a exemplo de O jogo da amarelinha. Não sem antes lançar cá por estes lados do Atlântico, no mesmo ano em que partiu, 1951, pela Editorial Sudamericana, Bestiário, o primeiro de seus muitos livros de relatos curtos. E que relatos, valha-nos Deus.

Curiosamente, Bestiário foi também a primeira obra em que Cortázar deixara de usar o pseudônimo que vinha mantendo desde 1938, "Julio Denis". Era que, na ocasião, segundo ele, finalmente se sentia seguro a respeito do que queria expressar. O escritor já havia elaborado uma boa porção de contos, àquela altura de sua vida, mas os de Bestiário eram novos, diferentes, estavam numa outra chave, certamente mais madura. Neles, no universo de objetos e situações cotidianas que nos cerca, qualquer coisa banal e corriqueira migra, sem mais nem menos, para o terreno da epifania ou do pesadelo surreal, em tons paranoicos de perseguição, franca surpresa, ironia, incômodo ou perigo. Tudo dentro da tradição do que depois viria a ser chamado "realismo mágico", estética em que o autor costuma ser inserido: seu terreno do imaginário se faz da fusão do fantástico com o real. É aí que algo raro acontece, quando lemos os relatos de Bestiário: nos damos conta de que são eles que estão nos observando, e não o contrário. "Escrevi esses contos sentindo sintomas neuróticos", dizia Cortázar, sincero como um criado mudo, revelando que estava numas de expurgar uma tenebrosa onda de mal estar. Dizia estar em franco processo de autoterapia psicanalítica, aquela velha história de "botar o que há de ruim para fora, no papel". Bom para ele, melhor para nós, leitores!

Em apenas 165 páginas na edição original da Sudamericana, Bestiário vem com oito contos, perfeitos na técnica, cada qual um bicho bem diferente, devidamente apresentado: Casa tomada, Carta a una señorita em Paris, Lejana, Ómnibus, Cafalea, Circe, Las puertas del cielo e o que dá título ao livro, Bestiario. É nesse último em que, retirado de sua paisagem oriental habitual, o tigre de Don Roberto está, nos aguardando. Ele nos devora, mas tudo bem.

Explore os documentos:

Nos 90 anos de Cortázar, Adalberto Muller escreve "Viagem ao mundo de Cortázar", para o Correio Braziliense, em 2004:

http://memoria.bn.br/DocReader/028274_05/70705

http://memoria.bn.br/DocReader/028274_05/80474


Foto do escritor Julio Cortázar