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Literatura | Menino de engenho: 90 anos da estreia de José Lins do Rego na literatura

27 fev 2022

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Se o ano de 2022 traz os centenários do divisor de águas que foi o romance Ulysses, de James Joyce, e da Semana de Arte Moderna ocorrida na São Paulo, em fevereiro de 1922, é bom que outro marco não passe em branco: neste ano completam-se 90 primaveras da estreia de José Lins do Rego no mundo da literatura. Pois sim: no início de 1932 o escriba paraibano publicou Menino de engenho, um clássico instantâneo, de pegada autobiográfica. Acabou sendo passaporte para a sua inserção na chamada "Geração de 30", a segunda leva de escritores modernistas pós-Semana de 22, onde, na prosa, tínhamos no mesmo caçuá Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Jorge Amado e Rachel de Queiroz; na poesia, Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima. Ao passo em que, inicialmente, Manuel Bandeira, Oswald e Mário de Andrade, modernistas da fileira original, pretendiam sedimentar uma identidade nacional em seus escritos, o grupo seguinte já tinha novas preocupações, problematizando mesmo os fundamentos do primeiro modernismo tupiniquim: pretendia, isso sim, explorar aspectos do Brasil profundo, diverso, amplo e contraditório, descentralizado de São Paulo e do Rio de Janeiro, numa literatura de cunho social, ao sabor de seu tempo, marcado pelo enfraquecimento das oligarquias da República Velha. Menino de engenho, assim, colou em Zé Lins - para os íntimos, como nós - o rótulo de regionalista, dentro do movimento que dava as bases para a então nova literatura do Brasil, de rincão a rincão. Amigo e admirador de Gilberto Freyre, o escritor trazia, ao mundo, seu universo: o interior da Paraíba, em plena crise da economia açucareira, que cedia espaço forçosamente à indústria. Com o Menino, começava um revitalizado capítulo da literatura brasileira.

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Em 1972, a escritora cearense Rachel de Queiroz, amiga de Lins do Rego, escrevia o seguinte na abertura de uma edição de Menino de engenho: na contemplação da obra, sentia "que o ser humano que ele foi explode de dentro dos livros e pede passagem e impõe sua presença". A rica personalidade do volumoso autor - que tinha volume em todos os sentidos, dos decibéis na voz e do tamanho corporal à envergadura de sua obra - fazia Rachel concluir, relembrando o finado parça: "sobrevive à ausência e nos diz com ruído: 'Com o Zé do Rego ninguém pode!'". Adorava um chiste e ria alto, às gaitadas. Comia com uma fome de 15 dias e adorava um rabo de saia. Com a mesma rapidez com que fazia um gracejo, também fechava a cara, ensimesmado, e saía sem dar tchau para ninguém. Um meninão. Sua obra literária, afinal, "era apenas um aspecto seu, uma de suas faces". Em seu "Autorretrato", escrito em 1947, dez anos antes de bater as botas, Lins do Rego se definia assim: "Não gosto de trabalhar, não fumo, durmo com muitos sonos, e já escrevi onze romances. Se chove, tenho saudades do sol; se faz calor, tenho saudades da chuva. Vou ao futebol, e sofro como um pobre-diabo". O futebolismo, no Zé, era zabumba no peito: daria tudo para ver o Flamengo carioca campeão de tudo. Chegou mesmo a ser membro da diretoria rubro-negra e a comandar a delegação da Seleção Brasileira no Sul-Americano de 1953, em Lima, prometendo "bicho" aos jogadores caso faturassem o caneco e criando escaramuça com o craque Zizinho quando a vaca verde e amarela acabou no brejo. Literatura: só um detalhe, nessas horas.

Lírico e dramático, numa prosa consciente, enxuta e cheia de regionalismos - a ponto de um glossário ser necessário ao leitor não nordestino -, Menino de engenho, nos dizeres de Rachel de Queiroz, era, simplesmente, o Zé do Rego, afinal. De certa forma, deflagra todo o restante de sua obra. Além de trazer carregada crítica social, é mesmo um tanto antropológico ao pintar tempo, cenário e personagens: na casa grande, no canavial e nas taperas, a realidade rural do engenho de açúcar em crise, comandado por arcaicos "coronéis" forjados em fumos coloniais, ainda abrigando escravos, libertos apenas no papel, em meio às indomáveis demandas da natureza e às beiras do processo de industrialização forçada do campo. Ali aprendemos usos, costumes, vocabulário, trajes, paisagens, formas de se alimentar, mazelas populares, política, técnicas de produção, agricultura, lida com animais, ritos sociais. Nas páginas de Menino de engenho viajamos, no tempo e no espaço.

Entre ditos populares e histórias da comunicação oral do interior da Paraíba e de estados vizinhos, análogos ao fantástico da literatura de cordel, o Menino de engenho tem um pano de fundo memorialista: a história toda fora inspirada na infância de Zé Lins, quando, sem os pais, foi morar com os avós no engenho Corredor, onde havia nascido a 3 de junho de 1901, na cidadezinha paraibana de Pilar. Por isso mesmo, além do traçado sociológico, a obra também tem caráter subjetivo, íntimo mesmo: o desenvolvimento dos dramas particulares e o despertar da sexualidade do protagonista não ficam de fora da narrativa. O romance, afinal, foi visto como um marco no gênero regional pontualmente nordestino, aberto em 1928 pel'A bagaceira, de outro Zé, o Américo de Almeida. Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, Jorge de Lima, Jorge Amado, João Cabral de Mello Neto, Guimarães Rosa (este mineiro): todos abordaram nas letras suas realidades locais depois da picada aberta pelos panavueiros de Américo de Almeida e, mais ainda, José Lins do Rego. Uma tradição se estabelecia, muito graças ao Zé. Que, partidário do Movimento Regionalista do Nordeste, chegou mesmo a se opor aos modernismos paulistano e fluminense.

O livro de estreia de José Lins, conforme sempre se ressalta, abre ainda o ciclo que se fecha com a principal obra do escriba: o chamado "ciclo da cana de açúcar", que seria, basicamente, a sequência de seus cinco primeiros livros: Menino de engenho, Doidinho, Banguê, O moleque Ricardo e Usina, publicados entre 1932 e 1936, exatamente um por ano, na ordem. O denso Fogo morto, de 1943, romance deslumbrante e taludo como um peru de roda, considerado a obra prima de Zé, faz parte do mesmo ciclo, embora tardiamente, como uma espécie de fechamento em apogeu. Os títulos Pedra bonita e Cangaceiros, respectivamente de 1938 e 1953, aliás, são aqueles considerados do "ciclo do cangaço" do autor, que teve também suas novelas fora de agrupamentos temáticos enrijecidos: casos de Pureza, de 1937, o primeiro a romper com a paragem açucareira, e Riacho doce, de 1939, entre outros. Mas é importante que se diga: embora inicialmente tivesse adotado a separação de parte de sua obra em ciclos, por mera sugestão, em certo ponto, lá pelos anos 1940, o próprio Zé Lins passou a não enxergar mais sua obra assim, "fatiada". Livro não é carneiro mocho, para ficar dentro de cercadinhos.

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Escrito em 1929 em Maceió, quando seu autor trabalhava como fiscal de bancos, Menino de engenho teve mil exemplares tirados três anos depois pela Adersen Editores, do Rio de Janeiro, totalmente custeada por Zé Lins. E logo ganhou o Prêmio de Romance da Fundação Graça Aranha. Era vendido no Rio por 5 mil réis o exemplar, pela editora de Calvino Filho, que também lançava José Américo de Almeida e Jorge de Lima. O romance de Lins do Rego fez tamanho sucesso que já em 1933 o segundo do autor saía com tiragem de duas mil edições, dessa vez pela Ariel, de Gastão Cruls: era Doidinho, a esperada sequência do Menino de engenho, onde o protagonista do romance original é retirado do ambiente rural para frequentar a escola, na urbe. E então, certo José Olympio Pereira entrou na parada, para cristalizar o sucesso do escriba paraibano em pleno sudeste. Vindo de São Paulo, Olympio havia recém chegado ao Rio de Janeiro e mal havia fundado sua editora. Esta, entocada no famigerado número 110 da Rua do Ouvidor, ainda se tornaria uma das mais prestigiadas do país, muito graças ao faro de seu dono para talentos como o de José Lins. Pois bem: por intermédio do jornalista Waldemar Cavalcanti, que colocara o Zé escritor em contato com o Zé editor, Banguê, o terceiro livro do "ciclo da cana", veio a lume pela nova casa, em 1934. A tiragem: assombrosos 10 mil exemplares, no total. Em 1935, movido pelo sucesso, Lins do Rego chegou de mala e cuia em paragens cariocas.

Simultaneamente ao lançamento de Banguê, um verdadeiro salto na carreira de seu autor, José Olympio emplacou já em 1934 e 1935, respectivamente, reedições dos dois romances que o precediam. E aí se deu um casamento que nunca mais se acabou: cá em terra brazilis, de Banguê em diante, todos os demais títulos de Lins do Rego saíram sob o selo da Rua do Ouvidor. O moleque Ricardo e Usina, respectivamente de 1935 e 1936, dariam sequência ao "ciclo da cana", pouco antes de Zé Lins ganhar sua primeira tradução: em 1938, O moleque Ricardo passou a ser impresso em cirílico, na União Soviética. Em plena Guerra Fria, afinal, o paraibano chegou a ser membro do Partido Socialista Brasileiro, dando uma força ao combalido Graciliano Ramos, quando preso político do Estado Novo - e também quando Graça fora solto, adoecido e empobrecido. Embora o feito da primeira tradução de Zé do Rego possa ter irritado muita gente do lado de cá da Cortina de Ferro, não impediu que tempos depois, entre 1946 e 1947, quando a poeira já havia baixado (e a ditadura de Getúlio Vargas acabado), o Menino de engenho, Banguê, Pedra Bonita e Fogo Morto fossem vertidos para o castelhano, ao serem lançados na Argentina.

Na década de 1950, aí sim Zé Lins fez o brabo Nordestão brasileiro ganhar audiências que refletiram pelo mundo: as do velho mundo. O autor ganhou edições na Espanha, na Inglaterra, na França, na Itália e na Alemanha, fora o que de seu já vinha sendo publicado em Portugal. Em 1960 o romance Cangaceiros, já do "ciclo do cangaço" do autor, saiu na União Soviética - e tal como na corrida espacial, os EUA chegaram depois: só em 1966 lançaram Plantation boy, um volume contendo os três primeiros livros de Zé Lins. É que a solidariedade ao "velho Graça" e o sentido social de apelo popular em suas obras o ficharam na caça às bruxas anticomunista, em pleno macartismo. No contexto de perseguição e boicote a intelectuais ligados à esquerda, Lins do Rego foi impedido de entrar nos EUA em 1953, para visitar sua filha casada - o episódio gerou revolta no Brasil, mas o autor cumpriu sua promessa: disse que depois dessa nunca mais visitaria o Tio Sam. Não faria falta mesmo: já no ano de 1955, cá por estas bandas, Zé Lins foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, ocupando a vaga de Ataulfo de Paiva. Teve, na ocasião, a fibra (e também a pachorra) de pintar um retrato irônico de seu antecessor - e acabou levando a ABL a censurar previamente os discursos de posse depois dessa. Morreu dois anos depois, o Zé. Na década de 1970, postumamente, o agora imortal paraibano ainda foi parar na Coreia do Sul, em tradução.

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Homem da imprensa que foi, o pai do Menino de engenho teve ainda publicados trocentos livros com suas crônicas reunidas, publicados entre 1942 e 2007. Tudo pela José Olympio, é claro. Fora suas conferências, relatos de viagem e volumes em colaboração. E fora seu livro de memórias, Meus verdes anos, de 1956 - quase um revival tardio do Menino de engenho. Em 1980, cumpre dizer, a editora veio com um primor, daqueles que fazem os fanáticos da cultura livresca babar: em parceria com o Instituto Nacional do Livro, do Ministério da Educação e Cultura, lançou uma série de cinco retumbantes volumes contendo os romances reunidos e ilustrados de José Lins, com cerca de 290 finas imagens de Luís Jardim. Pena que o autor não viveu o suficiente para ver a própria façanha, seja correndo o mundo em traduções ou ganhando novas gerações de leitores cá nos trópicos: morreu pouco depois de botar no prelo seu livro de memórias, em 12 de setembro de 1957, no Hospital dos Servidores do Estado, no Rio. Sequer teve condições de ver o Brasil de Pelé e Garrincha campeão na Copa do Mundo de 1962 - muito menos o Flamengo de Zico e Júnior levantar o caneco do Mundial Interclubes de 1981. Suspeitamos, cá, que talvez ambos os feitos boleiros o tivessem empolgado mais que seus próprios louros nas letras. Coitado do Zé!, como o próprio escrevia em seu livro de estreia. É que o cabra afinal foi vítima de uma doença no fígado, consequência da esquistossomose que pegou em seus banhos de riacho, na infância. Quem diria que tudo começara em moleque.

Explore os documentos:

Quanto ao Menino de engenho, a revista carioca O Malho anunciava, em 23 de julho de 1932: "esta novella de José Lins do Rêgo (...) revelará não só uma grande figura literária, mas um entrecho completamente inédito e jamais explorado".


Em 17 de setembro do mesmo ano, O Malho se debruça um pouco mais sobre Zé Lins e seu romance de estreia.


Em 9 de setembro de 1932, Mário Marroquim lança sua crítica - muito positiva - de Menino de engenho, no Diário de Pernambuco. O jornal, que ao longo e além daquele ano lançaria ainda outras críticas elogiosas, dera todo o apoio a José Lins do Rego, por seu caráter regional.


Em 14 de janeiro de 1937, O Malho explora a sequência de cinco livros que, iniciada com Menino de engenho, forma o chamado "ciclo da cana de açúcar" na obra de José Lins.


No "Panorama literário", seção da revista carioca Vamor Lêr!, uma sucinta biografia de Zé Lins é publicada, em 11 de março de 1937. Na ocasião, o autor já estava a publicar o romance Pureza, tendo encerrado o "ciclo da cana".

http://memoria.bn.br/DocReader/183245/912

http://memoria.bn.br/DocReader/183245/913


Abordando José Lins do Rego e outros nomes da "Geração de 30", Almir de Andrade trata das "Tendências atuais do romance brasileiro" em Vamos Lêr! de 21 de abril de 1938.


Em 1953, a revista Cruzeiro publica trechos de Cangaceiros, de Zé Lins, com ilustrações de Cândido Portinari. Nas páginas da revista, propriedade de outro paraibano, Assis Chateaubriand, o escritor foi badalado como nunca.


"O último menino de engenho morreu longe dos canaviais": especial da revista Manchete cobre, com o devido pesar, a partida de Zé do Rego, em edição de

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/20107

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/20108

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/20109

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/20109