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Literatura | Missal e Broquéis: 130 anos das primeiras obras de Cruz e Sousa

30 jan 2023

Artigo arquivado em Literatura

Leitores de livros de fantasia têm condições de saber o que é um broquel. Caso você, agora, não saiba, cá estas linhas lhe economizam uma googleada: um broquel é uma espécie de escudo de batalha. Uma cobertura física contra as estocadas inimigas. Hoje, aqui, resta dizer que também as proteções simbólicas nos interessam, a exemplo das motivadoras do texto de hoje. São as obras Missal e Broquéis, justamente, de João da Cruz e Sousa, que em 2023 completam 130 anos de publicação. Escritas sob influência do poeta francês Charles Baudelaire, ambas as coletâneas de poemas do autor floripano são peças-chave da escola simbolista brasileira – coisa que o atento leitor já deve ter estudo para o vestibular. Um bocadinho deprês, os livros, quando lançados, não apeteceram aos incapazes de reconhecer as belezas da feiura, as maldades da bondade e a elevação espiritual do mundano. Uma espiadela nos títulos de alguns de seus poemas já nos dá noção dessa vibe: Múmia. A dor. Satã. Beleza morte. Tuberculosa. Dilacerações. Sentimentos carnais. Serpente de cabelos. Majestade caída. Luz dolorosa. Tortura eterna. Pois bem. Não era à toa que Cruz e Sousa precisava de broquéis. Tanto ontem quanto hoje, faz sentido: não seria a poesia uma boa couraça contra os cutucões da vida?

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João da Cruz e Sousa teve trajetória que pode ser definida em diversas palavras – curta e atípica, por exemplo. Nascido em 24 de novembro de 1861 de Guilherme da Cruz e de Carolina Eva da Conceição, negros alforriados, na então Nossa Senhora do Desterro, foi apadrinhado pelo antigo senhor de sua mãe, Guilherme Xavier de Sousa, militar com passagem pela Guerra do Paraguai. Dele, o menino recebeu não apenas educação primorosa, mas também sobrenome. Nisso teve papel fundamental Clarinda Fagundes Xavier de Sousa, esposa de Guilherme, que não podia ter filhos e se afeiçoara de João.

No ano de 1874, Cruz e Sousa entrou num colégio de elite, o Ateneu Provincial Catarinense, onde obteve desempenho acima da média. Seu destaque se deu, ali, também em outro sentido: a cor de sua pele destoava da dos demais alunos. Focava nos estudos, enfim. Nas disciplinas de matemática e ciências naturais, o naturalista teuto-brasileiro Johann Friedrich Theodor Müller, também conhecido como Fritz Müller, foi um dos professores de João, que desde cedo dava mostras de perspicácia intelectual. Sua predileção, no entanto, residia no campo das letras: já aos oito anos bolava seus primeiros versos.

Desde cedo, mesmo sendo “introduzido”, de certa forma, à sociedade branca, Cruz e Sousa sofreu racismo. Em 1881, quando tinha apenas 20 anos de idade, trabalhou na Cia. Dramática Julieta dos Santos, ao mesmo tempo em que mantinha um jornal com amigos, chamado Colombo, onde estreava com um folhetim de título “Margarida”. E foi ali, em sua ainda engatinhante carreira no jornalismo, que começou a abordar a necessidade urgente de se abolir a escravatura. Pudera. Em 1884, com o diploma em Direito debaixo do braço, foi impossibilitado de assumir o cargo de promotor na cidade catarinense de Laguna por ser negro, apesar de ter sido nomeado. Algum consolo viria (viria?) da literatura: no ano seguinte lançou seu primeiro livro, Tropos e fantasias, na capital da província, em parceria com o também ilhéu Virgílio Várzea.

A década de 1890 foi de maior intensidade, para Cruz e Sousa. No mês de dezembro do primeiro ano do decênio, o poeta decidiu respirar ares externos à vida provincial: partiu para o Rio de Janeiro, onde se estabeleceu. Dali assistiu aos últimos momentos da monarquia, atuando como colaborador em diversos jornais e travando contato com a intelectualidade carioca. Virou grande amigo de José do Patrocínio, também negro, também das lides abolicionistas. Mas seu sustento veio mesmo quando ingressou num trabalho um tanto careta, sem grandes possibilidades de criação: na Cia. Estrada de Ferro Central do Brasil, como arquivista.

Foi pouco depois de ingressar na companhia férrea, sob forte influência dos autores franceses em voga nos círculos literários da capital, que Cruz e Sousa pariu aqueles que seriam mais tarde vistos como marcos para a cultura nacional: em fevereiro de 1893, veio com Missal, um volume de prosa lírica à Baudelaire. O livro ainda estava quente quando sua segunda obra foi publicada, em agosto do mesmo ano: eis Broquéis, de poesia em verso. Ambos os trabalhos vieram a lume editados por Magalhães & Cia. e impressos pela Livraria Moderna, no centro do Rio. Para o autor, a aclamação chegou restrita a um pequeno círculo de admiradores, que o passaram a enxergar como nome forte da poesia “maldita” brasileira. E foi nesse contexto que ganhou epítetos que então lhe acrescentavam algo de exótico: “Cisne Negro” e “Poeta Negro”, onde a cor de sua pele se confundia com a atmosfera fatalista, de dor existencial, injetada em seus sonetos. Antes que aquele notável ano de 1893 acabasse, Cruz e Sousa ainda teve tempo de se casar com Gavita Gonçalves, em novembro. Tudo parecia ir razoavelmente bem, para um poeta.

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Qual foi a de Missal e Broquéis? E por que são obras tão importantes, na história da literatura brasileira? Responder a essas perguntas é fácil e difícil, a depender de pontos de vista e de debates acalorados entre críticos e acadêmicos, que ora pendem para uma interpretação, ora para outra.

Maculada por desejos de transcendência, profundamente individualista, sensual, espiritual e emotiva, trabalhada em rigores formais, metáforas, aliterações, maiúsculas alegorizantes e sinestesia, muito dada a abstrações vagas, desprovidas de materialidade – isso quando não pretendente a simplesmente dizer o indizível. A voz poética de Cruz e Sousa é assim, e em linguagem exuberante. É o que a caracteriza como simbolista, no esforço expresso de se afastar (ou adaptar conceitos) das correntes estéticas do realismo e do romantismo. Isso caracteriza, enfim, a obra de Cruz e Sousa como marco, na literatura brasileira, sobretudo após o lançamento de Broquéis. Em sua temática, certos conflitos aparecem de forma inédita. Virtude e vício, carne e espírito, luz e sombra, som e sentido, sonho e realidade, prazer e tortura: dicotomias ou complementos um do outro? Tensões de sentidos, assim, dessa forma, não costumavam ser vistas nas obras dos poetas contemporâneos a Cruz e Sousa.

Além de tais valores em oposição, seus versos vinham carregados no decadentismo e na dissolução moral, dotados de um pessimismo um tantinho mórbido, dando um chega para lá em crenças positivistas então em voga: isso ficava explícito em cada evocação à alienação social e à angústia metafísica, coisas que o autor sentia na pele. Muitas referências a cores são encontradas em sua obra, mas, particularmente, Cruz e Sousa costuma ser lembrado como um poeta obcecado pelo branco, seja em referências explícitas à alvura propriamente dita ou à translucidez, ao brilho, à nebulosidade e à pureza.

São 169 alusões à brancura em toda a obra de Cruz e Sousa, segundo estudo realizado pelo antropólogo francês Roger Bastide. Este via, no autor, certa consciência de cor torturante, numa espécie de nostalgia de se “tornar ariano”. Por vezes, de fato, o autor floripano foi apontado como despreocupado frente à problemática negra no contexto abolicionista. Já Ivone Daré Rebello, autora que oferece um dos estudos mais completos da obra de Cruz e Sousa, enxerga de outra forma. Para ela, é justamente na consciência com que o autor adentra a “marginália” simbolista que reside seu valor fora do comum, tanto no sentido estético quanto no social. Se valendo dos rigores até então canonizados na cena literária de seu tempo, Cruz e Sousa inverte os ditames da lógica branca e aristocrática no fazer poesia: no seu caso, ela explicita o horror e a exclusão a que ele, como negro, é submetido cá nos trópicos. Mesmo em sua temática etérea, abstrata, o limite de expressão de sua obra vai além da literatura: expõe uma questão cultural concreta, entre duas dimensões, violentamente real.

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Mal, muito mal. Sobretudo do ponto de vista psicológico. Foi como Cruz e Sousa reagiu a cada perda gestacional. Perdeu quatro filhos que tivera com Gavita prematuramente, vítimas de tuberculose, doença que acabou por afligir também ao poeta. Nunca mais, desde 1893, conseguira publicar. Já se passavam cinco anos. “Loucura”, diziam a seu respeito. Fora a condição respiratória, cada vez pior. E eis que antes de chegar aos 40, em 19 de março de 1898, o poeta descansou. Vencido pela tuberculose enquanto convalescia em Curral Novo, uma localidade do interior de Minas Gerais que atualmente responde como o município de Antônio Carlos. Seu corpo foi transladado para o Rio de Janeiro, onde foi sepultado no Cemitério de São Francisco Xavier por amigos, como José do Patrocínio, que tiveram que custear o enterro. Chegou até ali de forma indigna: num vagão destinado ao transporte de cavalos.

Cruz e Sousa deixou um filho, único sobrevivente da família que estabelecera com Gavita – seus descendentes viviam enormes dificuldades financeiras quando do centenário de nascimento do autor, em 1961, momento em que seu drama veio à tona. Isso contrasta com a importância de Cruz e Sousa, hoje, como patrono da Academia Catarinense de Letras, nomeando prêmios literários, ordens de mérito cultural e o edifício que abriga o atual Museu Histórico de Santa Catarina, onde funcionava a antiga sede do governo estadual. Neste, aliás, é onde seus restos mortais do poeta estão, desde 2007. No centro de Florianópolis, o Palácio Cruz e Sousa é hoje ponto máximo de referência, pertinho da imponente figueira centenária. O poeta enfim tornara à casa, depois de 117 anos. Embora sua trajetória tenha sido curta e cheia de percalços, com apenas três livros publicados em vida, foi o suficiente: dentro e fora dos limites da literatura e da luta antiescravagista, Cruz e Sousa se mantém ramo firme. Parte da grande raiz cultural brasileira.



 

Explore os documentos:

 

Eis Colombo, o jornal que que a partir de 7 de maio de 1881 Cruz e Sousa editara com amigos intelectuais na Desterro de seu tempo:

http://memoria.bn.br/DocReader/886149/1

 

Ao longo de 1959, Massaud Moisés aborda Cruz e Sousa no Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo. Em 8 de agosto de 1959 trata da “singular trajetória de Cruz e Sousa”. Em 19 de setembro, trata das relações do poeta simbolista com o parnasianismo. Já em 31 de outubro, fala de sua “angústia da cor”:

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/872

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/908

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/944

 

Em 25 de novembro de 1961, centenário de Cruz e Sousa era lembrado no Suplemento Literário com um panorama sobre o simbolismo no Brasil. Pouco depois, Wilson Martins tratava do “Cisne negro”, em artigo. Simbolismo voltaria a ser abordado novamente no jornal apenas em 1974, por Temístocles Linhares:

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/1571

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/1646

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/5316

 

Em 1961, centenário do nascimento de Cruz e Sousa ganhava destaque em Manchete: enquanto a Biblioteca Nacional, no Rio, lançava uma exposição a respeito do autor, um monumento ao mesmo era inaugurado:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/42424

 

No mesmo ano de 1961, a Revista do Livro, então órgão do hoje extinto Instituto Nacional do Livro (INL), do Ministério da Educação e Cultura (MEC), abordava o centenário de Cruz e Sousa:

http://memoria.bn.br/DocReader/393541/5867

http://memoria.bn.br/DocReader/393541/6118

 

Em 2 de abril de 1961, jornal O Estado, de Florianópolis, destaca que edição popular da obra de Cruz e Sousa a ser lançada pelo INL:

http://memoria.bn.br/DocReader/884120/86110

 

Em 27 de abril de 1961, o Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, toca num delicado assunto: à margem das comemorações pelo centenário de Cruz e Sousa, seus descendentes se encontravam “na miséria” em 1961, muito por conta da obra do poeta ter caído em domínio público. No dia seguinte, Carlos Lacerda, governador do Estado da Guanabara, anuncia medidas de ajuda à família, residente em Realengo, no Rio de Janeiro. Em consonância, A entidade literária Casa dos Quixotes doou Cr$ 10 mil aos herdeiros:

http://memoria.bn.br/DocReader/030015_08/17554

http://memoria.bn.br/DocReader/030015_08/17584

http://memoria.bn.br/DocReader/030015_08/17737

 

Já em 17 de maio, O Estado replica a questão familiar levantada pelo JB, motivando o aumento de uma pensão para os herdeiros por parte do governo de Santa Catarina. Consequentemente, uma carta de agradecimento assinada por Ercy Cruz e Sousa, viúva do neto único que o poeta teve, foi publicada em sua edição de 14 de julho:

http://memoria.bn.br/DocReader/884120/86370

http://memoria.bn.br/DocReader/884120/86494

 

Em 1982, o Suplemento Literário de Estadão – já chamado Suplemento Cultural – dava voz a Nereu Corrêa, que contava a história da descoberta de poemas inéditos de Cruz e Sousa, em 1972:

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/10975

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/10976

 

A partir dos anos 1980, o nome de Cruz e Sousa passou a ser vinculado à premiação literária oferecida pelo governo de Santa Catarina, para as categorias de poesia e romance:

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/10514

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/10674

http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/9881

 

Bibliografia:

 

ANDRADE, Murici. Panorama do movimento simbolista brasileiro. 3. ed., revista e ampliada. São Paulo: Perspectiva, 1987.

BASTIDE, Roger. Quatro estudos sobre Cruz e Sousa. In: Fortuna crítica. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro/Brasília: Civilização Brasileira/INL, 1979.

COUTINHO, Afrânio; SOUSA, José Galante de. Enciclopédia de literatura brasileira. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional; Academia Brasileira de Letras, 2001.

CRUZ E SOUSA, João da. Obra completa. Org. Andrade Murici. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995.

OLIVEIRA, Anelito Pereira de. A forma e o mundo: repensando Broquéis, de Cruz e Sousa. In: Eutomia: revista de literatura e linguística, volume 1, número 8. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2011. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/EUTOMIA/article/view/1044. Acesso em: 13 de janeiro de 2023.

RABELLO, Ivone Daré. A jornada vã: polêmica sobre o misticismo cristão em Cruz e Sousa – Comédia divina e ironia moderna. In: Morcego cego: revista do Museu/Arquivo da Poesia Manuscrita, ano 2, número 2. Florianópolis, 1999.

_______________. Entre o inefável e o inefando. Florianópolis: FCC, 1999.

_______________.  Um canto à margem: uma leitura da poética de Cruz e Sousa. São Paulo: Nankin: Edusp, 2006.