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Literatura | O caso Morel: 50 anos da estreia de Rubem Fonseca no romance policial

06 mar 2023

Artigo arquivado em Literatura

Mal o ano começou e já lembramos, aqui, um importante aniversário: o de 90 anos do ingresso de Graciliano Ramos na literatura. Já seria regozijo suficiente. Mas a estreia de outro gigante literário brasileiro também sopra velinhas em 2023: Rubem Fonseca, mestre do conto e da ficção policial tupiniquim. Pois há 60 anos o autor vinha com Os prisioneiros, volume de contos que marcava sua introdução no mundo das letras. E mais: há 50 anos era também publicada sua primeira obra na categoria romance, O caso Morel. Esta, enfim, sempre mereceu considerações à parte. No estilo cru, pontiagudo e sem rodeios de seu autor, o livro provocou celeuma no meio literário brasileiro de seu tempo, por sua fórmula intensa, sem filtros, de situações-limite entre o policial, o pornográfico e o humor negro. Apontado como um dos melhores do mineiro radicado no Rio de Janeiro, hoje, O caso Morel é hoje encarado como clássico noir absoluto, experimental e inaugural tanto ao abrir alas ao universo policial de Rubem Fonseca quanto ao influenciar novas gerações de escritores do gênero.

Num panorama onde O caso Morel tem singular importância, a obra de Rubem Fonseca, em geral, costuma nos fornecer retratos das pequenas e grandes psicopatologias nossas de cada dia. Retratos esses (evidências?) esfregados na nossa cara por um policial impaciente e imoral, capaz de tudo. Pois sim: ler Rubem Fonseca não é como dar uma olhadela no Reader’s Digest. É como encarar sozinho um tacho de dobradinha: tem que ter estômago.

Paul Morel, o protagonista do livro que ora apresentamos, só poderia ter sido criado por um perito do texto visceral. De forma ultrarrealista e ainda assim lírica, seu autor deitava e rolava nos vícios e nas virtudes dos habitantes da metrópole, coisa um tanto ímpar na literatura brasileira quando de sua estreia no romance. Explorador das nuances da violência urbana em todas as camadas sociais, Rubem Fonseca sempre soube fazer giros de 360° nesse aspecto: tocava graúdos capitalistas e pobres coitados, traficantes e policiais, intelectuais burros e ignorantes sabidos, dondocas e prostitutas, tipos doentios e aparentemente sãos. Todos imersos no mesmo oceano de sangue, miséria, horror e fluídos corporais. Na sociedade contemporânea, nos sentidos moral e concreto, onde não está a decadência, afinal? Até que ponto as familiaridades e lugares-comuns de nosso universo convencional não carregam algo de ilusório, implosivo e insano?

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O caso Morel veio a lume pela editora Artenova em 1973, em plena ditadura militar, com o AI-5 em vigor, contando a história de Paulo Morais, excêntrico artista visual de vanguarda mais conhecido como Paul Morel, em prisão preventiva, suspeito pelo assassinato de uma jovem mulher numa praia isolada do Rio de Janeiro. Era Heloísa Wiedecker, uma “filha de embaixador”, com quem mantinha relação sadomasoquista, encontrada morta a pontapés. Pois de sua cela o personagem escreve suas histórias, transbordantes de sexo, violência e – é claro – ponderações que colocam em cheque tanto os limites do desejo humano quanto as funções da arte e da literatura, em especial. Quem as lê é o escritor Fernando Vilela, que, à maneira de um detetive, acaba chegando perto da resposta à pergunta que então encucava a polícia carioca: teria sido ele quem matou a garota? Pudera: Vilela é um ex-policial, amigo do delegado Matos, que detém Morel, tendo aparecido previamente na obra de Rubem Fonseca, ainda como meganha, no conto “A coleira do cão”, publicado em volume homônimo em 1965. O personagem escritor, no entanto, não se atém somente aos fatos. Na investigação paralela que acaba produzindo a respeito de Morel, o personagem não resiste à tentação de criar sua “visão do ocorrido”, ou seja, sua própria narrativa, que, entre contradições e congruências, e com boas doses de invenção, se mescla à do suspeito.

N’O caso Morel, em particular, uma boa dose de mistério é adicionada ao enredo justamente pela experimentação narrativa do autor, que foge ao convencional: em sua pesquisa quanto aos limites entre a sexualidade e a perversidade, os personagens de Rubem Fonseca se refletem, pisando lá e cá, e dentro e fora da realidade. Morel passa seus dias atrás das grades fazendo flexões e colocando no papel suas histórias autobiográficas, em páginas posteriormente recolhidas e organizadas por Vilela. Este, ao encaminhá-las para a datilografia, identifica seu vazio existencial com o do preso de tal forma que, quando o mesmo para de escrever, não é capaz de não completar as lacunas em sua narrativa. Quem é quem, afinal? Da mesma forma em que as fronteiras do real e do delírio desaparecem no desenrolar do romance, em certos trechos já não sabemos se estamos adentrando o mundo de Morel ou de Vilela. Pontos de vista estritamente masculinos, já que as personagens femininas do livro praticamente se restringem às parceiras sexuais do primeiro: a principal sendo uma ninfeta intelectual, endinheirada e egocêntrica, que tinha orgasmos mais intensos conforme a crueldade com que era agredida. Heloísa, ironicamente, implorava por legítimas sessões de tortura em plena ditadura militar.

Provocação refinada, para uns, e mau gosto puro e simples, para outros, O caso Morel é daqueles livros que colocam o moralismo para escanteio, revolvendo, necessariamente, conceitos e preconceitos do leitor. Este, aliás, é chamado à responsabilidade, tendo participação ativa no texto: obra de ficção aberta a diferentes leituras, o livro faz, de quem o lê, coautor. Ou melhor: cúmplice de Rubem Fonseca. Numa estética de desconstrução e reconstrução, O caso Morel mina as próprias estruturas do texto literário, fragmentando sentidos, identidades e vozes poéticas.

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Publicado em meio ao chamado “milagre econômico” do governo de Emílio Garrastazu Médici, O caso Morel teve suas inovações – desde a exploração mais acentuada da violência e do sexo à linguagem que incluía formatação gráfica não-linear, lembrando configurações da página do jornal – ligadas a certa crítica social. Então era essa a nova literatura de “realismo feroz”, nas palavras de Antonio Candido, ou de profundo “brutalismo”, segundo Alfredo Bosi, que viria à tona como denúncia à catástrofe brasileira. Silviano Santiago, João Antônio, Plínio Marcos, Márcio Souza, Ivan Ângelo e Antônio Calado também exploravam por aqueles dias os caminhos da crítica na literatura, cada qual à sua maneira. No entanto, no caso de Rubem Fonseca, o outro lado da moeda também era válido. No artigo "O caso Morel, de Rubem Fonseca, e Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino: uma leitura comparativa sobre os limites do brutalismo", Márcio Fonseca Pereira destaca:
(...) as inovações estilísticas de Fonseca são propostas através de um tratamento conservador na abordagem dos temas como veremos aqui em O Caso Morel, o que ocorre, entre outras razões, devido às limitações do romance policial norte-americano quanto à possibilidade de aprofundamento em temáticas sociais.

Em seu lançamento, por incrível que pareça, O caso Morel não foi censurado pelas autoridades militares: embora tenha entrado nos radares oficiais, proibição mesmo só se deu em 1975, quando Rubem Fonseca lançou o livro de contos Feliz ano novo, que gerou despacho direto para recolhimento por parte de Armando Falcão, então ministro da Justiça. Na caça às bruxas dos atentados “à moral e aos bons costumes”, seja como for, o primeiro romance policial do autor sempre era lembrado, na imprensa daqueles anos pré redemocratização, conforme restrições a temáticas espinhosas na literatura vinham à baila. Mesmo fora do aparelho repressor, parte da crítica especializada teve dificuldades para digerir O caso Morel.

Flávio Moreira da Costa, no jornal Opinião, de linha aliás crítica ao regime militar, lascou essa em 24 de outubro de 1975, quanto ao romance: "a estrutura do livro é insipiente, quase um típico primeiro romance de contista, com as partes tendo mais importância que o todo". Wilson Martins, do austero Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, em 7 de outubro de 1973, ainda no auge da badalação do livro, cravava que, no mesmo,
(...) a obscenidade das situações e das palavras é gratuita, contraplacada sobre um tecido romanesco que dela não depende para existir: trata-se, pois, de um recurso artisticamente bastardo, que não só deixa de acrescentar à qualidade da obra qualquer dimensão útil, mas, por isso mesmo, conduz ao resultado oposto de aviltá-la.

Em outra leitura, o “obsceno”, inerente sempre, por mais que se tente negar, à condição humana, tinha lá suas justificativas, no projeto do autor, para quem o “artista”, seja ele de letras ou de recursos visuais, era sempre perigoso. Como dizia Wilson Bueno, em crítica positiva a’O caso Morel no jornal carioca Tribuna da Imprensa, em setembro de 1973, o romance
(...) desinstitucionaliza uma literatura e, num nível de humor voltado para o próprio fazer literário, promove um encontro acho que efetivo com a verdadeira arte de escrever, desvencilhando-a da limitada ideia com que a literatice a vestiu. Acho o romance uma boa obra, num bom momento, porque rasga os véus da hipocrisia. E porque faz a obra mais indigna deste mundo, Rubem Fonseca consegue recolocar a literatura numa posição mais decente: na realidade, claro que transformada, porque senão a coisa iria descambar num naturalismo estéril.

"O que eu acho chato na literatura brasileira em geral é que é muito literária", concordaria o humorista Sérgio Jaguaribe, o Jaguar, do alto da tribuna do semanário-mor do despojamento, O Pasquim, de 17 a 23 de julho de 1973. Jaguar não era crítico literário nem aqui nem na China, mas falava de literatura mesmo assim. "Rubem (...) é um craque. Sabe exatamente quando é hora de escrever axila e quando é hora de escrever sovaco", concluía, no característico tom de conversa de botequim que tinha o seu jornal. Há que se descer ao fundo do poço para se buscar a elevação, afinal. Tal ideia não deixa de exprimir certa crítica ao próprio meio literário, ou ainda aos caminhos em que o mesmo periga tomar. Para Morel, muitos asseclas da cretinice estavam matando a literatura. Não estaria Rubem Fonseca mirando a cabeça desses mesmos assassinos?

Leituras à parte, em crítica no Jornal do Brasil de 9 de dezembro de 1977, José Carlos Oliveira definia O caso Morel melhor do que ninguém, da seguinte forma: uma "fábula rude que clarifica a golpes de machado as regiões sombrias da alma brasileira culta". Se isso foi um pito ou um elogio, quem sabe? Entenda o leitor o que quiser. Mas uma coisa é certa. Para o bem e para o mal, Rubem Fonseca era assim: matava a pau.



 

Explore os documentos:

Em 10 de outubro de 1970, a revista carioca Manchete dava um breve perfil de Rubem Fonseca, até então apenas contista, mas já um especialista nos perfis psicológicos do cotidiano urbano:
http://memoria.bn.br/DocReader/004120/108785

Em 14 de julho de 1973, Hélio Pólvora lançava a primeira resenha de O caso Morel no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro:
http://memoria.bn.br/DocReader/030015_09/13843

Rubem Fonseca, para o Diário de Notícias carioca, em 15 de julho de 1973: “O que não está nos livros eu não soube ou não quis dizer”:
http://memoria.bn.br/DocReader/093718_05/26075

No mês seguinte, o guia quinzenal de literatura do JB aponta O caso Morel como o livro nacional mais vendido no Rio de Janeiro, na categoria ficção, posição ocupada no ranking até outubro de 1973 (em São Paulo, o livro vinha, no período, como o segundo mais vendido, atrás apenas de Teresa Batista cansada de guerra, de Jorge Amado). A obra fecharia o ano como a quarta mais vendida em sua categoria em todo o país, no ano de sua estreia. Sexo e violência: fatores para um público cativo:
http://memoria.bn.br/DocReader/030015_09/16273

Já em 22 de setembro de 1973, Wilson Bueno refletia sobre o livro na Tribuna da Imprensa, também do Rio de Janeiro: contra um “naturalismo estéril”:
http://memoria.bn.br/DocReader/154083_03/13648

No mês seguinte, na Tribuna, é a vez de Victor Giudice abordar a estreia de Rubem Fonseca no romance policial:
http://memoria.bn.br/DocReader/154083_03/13882

Wilson Martins, crítico do Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, em 7 de outubro de 1973, cravava notas negativas quanto a’O caso Morel:
http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/5127

Em 10 de março de 1974, Fábio Lucas destrincha O caso Morel, também nas páginas do Suplemento Literário:
http://memoria.bn.br/DocReader/098116x/5259

Já no jornal Opinião, do Rio de Janeiro, em 24 de outubro de 1975, Flávio Moreira da Costa não parecia se empolgar muito com O caso Morel, julgando-o, de fato, falho, embora reconhecesse os valores de seu autor:
http://memoria.bn.br/DocReader/123307/3566

Assunto de polícia: no JB, em 19 de janeiro de 1977, obra “obscena” de Rubem Fonseca gera reflexões de 13 personalidades da vida pública brasileira, quanto à sua censura:
http://memoria.bn.br/DocReader/030015_09/88937

 

Bibliografia:

BOSI, Alfredo. Situação e formas do conto brasileiro contemporâneo, Rubem Fonseca e João Antônio. In: O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1995.

CASTRO, Junior César Ferreira de. Rubem Fonseca e o romance metaficcional: estudos do processo de criação em O caso Morel. Revelli – Revista de Educação, Linguagem e Literatura da UEG-Inhumas, vol. 3, número 2, outubro de 2011. Goiânia: Universidade Estadual de Goiás.

FONSECA, Rubem. O caso Morel. 6ª edição. Rio de Janeiro: Agir, 2010.

_______________. A coleira do cão. Rio de Janeiro: CODECRI, 1979.

LAFETÁ, João. Rubem Fonseca, do lirismo à violência. In: A dimensão da noite. São Paulo: Duas Cidades, 2004.

PEREIRA, Marcio Fonseca. O Caso Morel, de Rubem Fonseca, e Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino: Uma leitura comparativa sobre os limites do brutalismo. In: Revista Garrafa, vol. 8, número 22, 2010. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/garrafa/article/view/8734. Acesso em: 28 de fevereiro de 2022.

RIBEIRO, Joana Darc. O caso Morel: um caso de investigação literária. Revista Signótica número 13, janeiro a dezembro de 2001. Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás. Goiânia: Universidade Federal