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Psicologia | Carl Gustav Jung, psiquiatra e psicoterapeuta suíço, fundador da psicologia analítica

06 jun 2021


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Psicologia: uma singularidade ensimesmada

Até aquele dia ele já havia sonhado com mares de sangue inundando a Europa, mais de uma vez. Mas naquele 18 de dezembro de 1913 foi diferente. Sonhou que estava no alto de uma montanha rochosa, a poucos momentos do nascer do sol, acompanhado de um jovem guerreiro indígena. E eis que sobre as montanhas ecoou um som inconfundível, pelo menos para ele: era a trompa de Siegfried. E ele compreendeu que, junto de seu jovem amigo, deveria matar o heroi da mitologia nórdica. Munida de fuzis, a dupla armou uma emboscada por uma ravina. E aí veio o ápice da ação: ao primeiro raio de sol, Siegfried surgiu com tudo, insano e em disparada, e num imponente e bizarro carro de guerra feito de ossos, descendo pelo flanco rochoso. Ele e o jovem indígena não titubearam: abateram sem dó o louco guerreiro, num triste e contemporâneo fim para o antigo protagonista da Saga dos Volsungos e de óperas de Richard Wagner. Nenhuma música soou, no entanto. Ele, então, caiu em profundo desgosto. Se sentiu instantaneamente culpado, não só pelo fato de ter matado, mas de ter matado justo um sujeito daquele quilate, fazendo do mito um cadáver ensanguentado. Preparou-se para fugir. E foi aí que a chuva caiu. Violenta. Apagar-se-iam todos os vestígios do crime: ele poderia ficar tranquilo quanto a isso. Persistia nele, entretanto, um sentimento intolerável de remorso. Então, acordou. “Se não compreenderes o sonho, deves dar um tiro na cabeça!”, ameaçou a uma misteriosa voz em sua cabeça. Juntando as peças e concatenando tico e teco, veio a conclusão. “Mas este é o problema que agita atualmente o mundo!”, exclamou ele. Ainda faltava um semestre inteiro para o início da Primeira Guerra Mundial, mas o sonhador matava a charada onde Siegfried representava o projeto alemão para o globo naquele momento, de imposição “heroica” – no ponto de vista de todos os outros puramente bélica – de sua vontade. O indígena seria ainda uma imagem daquilo que chamava como “sombra primitiva”. O personagem mitológico sucumbia no sonho, afinal, por sua atitude não estar moralmente alinhada com o sonhador, mais próximo, afinal, de uma figura ancestral de ideal humano; embora sentisse certa familiaridade para com Siegfried, era necessário colocar um termo a essa identidade de heroi, já que, por questões de princípios e pontos de vista, certas atitudes não se justificam. E o que dizer da chuva? Esta, naturalmente, simbolizava a resolução de uma tensão entre o consciente e o inconsciente. Assim decretava o sonhador, Carl Gustav Jung. Neste dia 6 de junho, completam-se exatos 60 anos de sua morte.

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Como muitos gênios no mundo da arte e das ciências, Jung sempre foi inquieto, questionador, ensimesmado e, ao menos a princípio, um incompreendido outsider. Seu postulado com relação à psicologia, ao lado do de Sigmund Freud, seu mestre e rival, revolucionou a forma de se enxergar a mente humana, criando, através da interpretação de sonhos, e de considerações em relação à sexualidade, à religião, à cultura, à espiritualidade, aos valores morais, aos instintos primitivos e à mitologia, e de como o caldo resultante da junção desses campos trabalha simbolicamente no pensamento de cada viva alma deste planeta, praticamente, uma nova ciência: a da psicologia profunda. Foram ambos que fizeram com que o conceito de inconsciente – individual ou coletivo – ocupasse um lugar central, hoje óbvio, nos estudos da cachola. Naturalmente, foram muito combatidos no campo da neuropsicologia, e até recentemente. Mas é inegável que a massificação de suas ideias, com a incorporação de termos como “ego”, “recalque”, “castração”, “objeto fálico”, “repressão”, “transferência de afetos”, “personalidade extrovertida ou introvertida” e “complexo de Édipo” no trololó cotidiano, transformou a Jung e Freud em ícones pop. Ao menos uma vitória cultural, dada a fácil penetração de suas ideias em círculos leigos, justamente uma das coisas pelas quais foram desacreditados pela ciência do século XX. Mas como relacionar, e considerar prudentemente, leigos e especialistas, ciência e charlatanismo? Quem, afinal, não cria ao menos alguns macaquinhos no sótão? E quem não tem lá suas teorias a respeito das doideiras da humanidade? Pelo sim, pelo não, o neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro, em seu livro “O oráculo da noite – a história e a ciência do sonho”, diz que, por obra e graça do avanço tecnológico em seu campo de pesquisa, as proposições freudianas começaram a ser testadas cientificamente, em tempos mais recentes. E foi comprovado: há cerca de cem anos eles estavam certos, em muitos aspectos. A supressão de memórias indesejadas e a conexão entre sonhos, memórias e psicoses, por exemplo, são hoje fatos cerebrais qualificáveis.

Jung, sozinho, é considerado o pai da psicologia analítica, tendo fundado inúmeros conceitos que serviram de divisores de águas na história do pensamento: o princípio de individualidade, os arquétipos, os complexos, a sincronicidade, o inconsciente coletivo, a ideias de sombra, anima e animus... Para chegar nesse ponto, nosso singular e ensimesmado cientista foi muito além da medicina que, a rigor, exercia. Usando aquilo que dizia ser um método empírico naturalista, dialogava sua base na prática da psicoterapia com a antropologia, a sociologia, a mitologia, a arqueologia, a teologia e mais uma pá de filosofias, da greco-romana às orientais. Fora seu interesse em fenômenos sobrenaturais, em teorias holísticas, no mundo místico e no ocultismo. Teceu comentários até sobre a mente das pessoas que veem discos voadores. Mas para entendermos Jung e o alvorecer da psicanálise, melhor investigar um pouco mais seu passado – coisa que o próprio fazia com os pés nas costas, e a profundo.

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Filho de um modesto pastor luterano nascido em 26 de julho de 1875 em Kesswil, no cantão suíço da Turgóvia, e tendo passado boa parte de sua juventude na Basileia, Carl Gustav Jung foi uma criança espiroqueta, cheia de ideias na cabeça. Fruto de sua educação, tinha grandes inquietações religiosas e existenciais, desde cedo, sendo muito ligado à ideia de que deus estava presente, em milagres diversos e cotidianos, na natureza – muito mais do que nas igrejas. Intelectualmente inquieto e ávido, cheio de dúvidas, era um tanto introspectivo. Muito pela condição financeira de sua família, tinha certo complexo de inferioridade, normalmente malvisto no meio escolar: se algo de errado acontecia, era sempre o primeiro suspeito. Sentia ter dois egos, um público, socialmente aceitável, e um íntimo, privado – e levante a mão quem nunca se encaixou nesta descrição. Seu gosto pela leitura, afinal, se desenvolveu por conta própria, e não por imposições institucionais. Gostou de Schopenhauer. E de Goethe. Assim como Kant. Achava que seria um naturalista, ou mesmo um teólogo. E acabou se interessando pela medicina, quando, a duras penas, conseguiu acesso ao ensino superior.

Na virada do século XIX para o XX, a classe médica não gostava de olhar na direção da mente humana. Que seriam os males psicológicos? “Os médicos sabiam pouco mais do que os leigos”, diria Jung mais tarde, em seu livro “Memórias, sonhos, reflexões”, uma espécie de autobiografia organizada e editada por Aniela Jaffé, e lançada na ocasião da morte do psicanalista, em 1961. “A doença mental”, continuava, “era considerada como um mal desesperado e fatal e esta sombra se projetava na psiquiatria”. E concluía: “O psiquiatra – eu logo saberia por experiência própria – era um personagem estranho”. Como se ele já não fosse encarado dessa forma, antes! Na época, leu o Manual de Psiquiatria de Krafft-Ebing, obrigatório para uma prova, cujo prefácio já apontava: “Sem dúvida, é devido à particularidade desse domínio da ciência e à imperfeição de seu desenvolvimento, que os manuais de psiquiatria têm sempre um caráter mais ou menos subjetivo”, onde as psicoses eram consideradas, em geral, “doenças da personalidade”. Daí em diante Jung não foi mais o mesmo. Assim que bateu a vista nessas palavras, precisou se levantar da escrivaninha para tomar fôlego: uma semente acabava de ser plantada em sua inquieta cabeça. “Num relance, como que através de uma iluminação, compreendi que não poderia ter outra meta a não ser a psiquiatria”. Isso se dava por um interesse que extrapolava o campo meramente profissional, ou mesmo o científico: “Somente nela”, resumia ele, “poderiam confluir os dois rios do meu interesse, cavando seu leito num único percurso. Lá estava o campo comum da experiência dos dados biológicos e os dados espirituais, que até então eu buscara inutilmente”. A psiquiatria “Tratava-se, enfim, do lugar em que o encontro da natureza e do espírito se torna realidade”. Algo de difícil compreensão para o meio médico europeu de virada de século. Como que num divã, Jung afirmava, na página 142 da edição brasileira de “Memórias, sonhos, reflexões”, lançada pela Editora Nova Fronteira em 2006:

Minha decisão fora tomada: quando a comuniquei a meu professor de medicina interna, li em seu rosto uma expressão de desapontamento e de espanto. Minha antiga ferida, o sentimento de singularidade e de isolamento tornaram-se de novo dolorosos. Mas agora eu compreendia melhor o porquê. Ninguém jamais pensou que eu pudesse interessar-me por esse mundo à parte, inclusive eu mesmo. Meus amigos ficaram admirados e desconcertados; achavam insensato que eu abandonasse a possibilidade imediata de uma carreira de medicina interna, tão valorizada naquele momento, tão atraente e invejável, por esse absurdo que era a psiquiatria.


Desse ponto em diante, os anos de aprendizagem de Jung se deram, empiricamente – para o deleite do jovem suíço, tão impaciente com a obtusidade do conteúdo puramente teórico – na clínica psiquiátrica Burghölzli, da Universidade de Zurique. Tornou-se estagiário de lá em 1900, chegando a cargo de direção em poucos anos. Procurar entender o que se passava no espírito dos enfermos mentais, algo que ia muito além das simples estatísticas e listas de diagnósticos, sintomas e medicamentos, era seu objetivo maior. Propunha tratamentos “humanos” aos internos, mesmo os mais “intratáveis”. Já chefe, após uma curta estada em Paris, para estudos, montou um laboratório experimental onde aplicou pela primeira vez o desde então famoso teste de associação de palavras para diagnóstico psiquiátrico. Na prática, aprendeu que, na complexidade humana, cada caso é um caso. Para início de conversa, viu que o psicoterapeuta não poderia se contentar em compreender seus pacientes: tinha ainda, e em primeiro lugar, que compreender a si mesmo, a seus próprios valores e fantasmas. E foi assim que tomou conhecimento do trabalho de vanguarda de certo austríaco, um cavalheiro vienense tido como meio maluco, de ideias estranhas, chamado Sigmund Freud, focado na psicologia da histeria e do sonho. Em 1900, quando tinha apenas 25 anos, havia lido seu livro “Interpretação dos sonhos”, mas o tinha deixado de lado, por não o compreender. Freud era persona non grata no meio universitário e clínico, ademais, sendo mencionado somente às escondidas pelos corredores dos congressos, nunca em sessões plenárias. Mas, três anos mais tarde, e após observar de perto os internos da Burghölzli, retomou sua leitura, descobrindo, maravilhado, que a obra sintetizava perfeitamente uma série de ideias que apenas começava a ter.

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“Se o que Freud diz é verdadeiro, ficarei com ele”. Assim respondia Jung a uma carta enviada em 1906 por dois respeitáveis professores alemães, o advertindo que, se continuasse a defender publicamente as ideias freudianas, seu futuro acadêmico estaria ameaçado. A única ressalva do jovem psicoterapeuta ao revolucionário vienense era não concordar que todas as neuroses têm causas em recalques ou traumas sexuais – de resto, o ambiente contra Freud lhe parecia um absurdo completo, quase obscurantista. Jung teve muitas dúvidas e dificuldades quando leu “Psicologia da demência precoce”, mas foi essa obra que enfim estabeleceu seu contato com o autor, que o convidou para ir à sua casa, para um bate papo: em fevereiro de 1907, encontraram-se pela primeira vez, em Viena. Conversaram quase ininterruptamente por treze horas seguidas. Separados, ao longo de anos, se corresponderam por nada menos que 359 cartas, posteriormente publicadas. Jung achara Freud único, nada trivial, extraordinariamente inteligente, notável. No entanto, toda vez que falava na espiritualidade expressa no ser humano, o austríaco evocava a hipótese da “sexualidade recalcada”. Jung objetava que, pela lógica, levadas às últimas consequências, as ideias de Freud conduziam a raciocínios que destruíam toda a ideia de civilização. “Sim”, respondia o mestre, calmamente, “é assim mesmo”. Para qualquer dúvida ou discordância, apenas lembrava o discípulo de sua falta de experiência, e com razão.

Com o tempo, algumas discordâncias entre Jung e Freud só poderiam se manifestar a partir de uma ruptura em sua amizade. Ao fim dos anos 1900, o primeiro já interpretava criticamente muito do que o segundo pensava. Tinha Cada um tinha suas reservas em relação ao outro. Uma delas dizia respeito à forma como Freud julgava aparecer nos relatos dos sonhos de Jung, constantemente ouvidos com impaciência: é que o mestre vez ou outra julgava aparecer simbolicamente como figura paterna, em situações de parricídio. Para Jung, Freud dava importância demais ao tema da sexualidade, e a mente não se restringia só a isso. O jovem revirou os olhos e torceu o nariz quando o mentor, um tanto ardoroso, sugeriu que ambos deveriam fazer da teoria sexual freudiana “um dogma, um baluarte inabalável”, e ademais “contra a onda de lodo negro do ocultismo”, palavras para lá de fortes, se não dramáticas. A Jung, parecia um papo enfadonho de pai que quer insistir ao filho que vá à Igreja de terno e bem penteado aos domingos – um absurdo, já que dogmas não combinam com a curiosidade científica. Havia aí uma questão de fé cega, repressora do desenvolvimento individual, um exemplo que, de fato, já vira em seu falecido pai – o biológico. Fatores religiosos pareciam irromper inconscientemente em seu ironicamente ateu mistagogo, um respeitável neurótico, afinal, que, por sua vez, tinha ojeriza às viagens “místicas” e à falta de foco de seu jovem adepto, ligado demais ao que via como despautérios filosóficos: alquimia, astrologia, orientalismos, mitologia e o escambau. Era Jung o diabo de um ocultista, ou quase!

Nesse contexto, em 1909, já um tanto calvo, quando acompanhava o mestre de charuto em punho por sua célebre viagem aos Estados Unidos, Jung teve um sonho que, segundo Sidarta Ribeiro, “foi crucial para o desenvolvimento da ideia de inconsciente coletivo como fonte de memórias filogenéticas (instintos) ou transculturais (arquétipos)”. Como não poderia deixar de ser, foi um sonho malucaço, minimizado posteriormente por Freud, que literalmente chegava às síncopes quando discutia com o discípulo. No mundo onírico, Jung estava num casarão desconhecido, mas “seu”. Ele decidia ir conhecer os aposentos dos andares inferiores, descobrindo que, conforme descia, atingia espaços construídos em outras épocas: quando mais para baixo, proporcionalmente, mais “antiga” era a parte da casa. Descobriu, então, com assombro, aposentos medievais, verdadeiras catacumbas. Abaixo, ficou de queixo mais caído ainda com as ruínas romanas junto à fundação do imóvel. Depois, percorreu um túnel que o levou a uma caverna empoeirada, cheia de vestígios primitivos: cerâmica quebrada, ossos, dois crânios humanos. Ao despertar, Jung figurou que casa era sua mente: a descida aos andares de baixo simbolizava algo que tentava, de fato, fazer em vigília, o mergulho em seu próprio inconsciente. “Jung se deu conta”, nos conta o arguto neurocientista brasileiro, “de que a casa era uma metáfora para a estratificação da consciência humana, com níveis mais antigos e profundos representando porções da mente que remontam ao nosso passado arcaico”. Seres urbanos e contemporâneos que somos, nós não viemos do nada. Nossa existência é fruto do passado, e com ele dialogamos, mesmo que de maneira “atávica”. Eis o inconsciente coletivo. Assim como nossos antepassados mais remotos, queremos procriar, proteger nossa prole e evitar a morte. Também temos nossos instintos, nas grandes selvas de pedra. Nesse sentido, Jung acertava na mosca ao dizer que o sonho, algo “inútil” e aleatório para boa parte da ciência, preparava o sonhador para o dia seguinte.

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Na década de 1930, um fantasma sombrio passou a rondar a Europa, começando pela Alemanha. Sigmund Freud e Carl Gustav Jung já estavam oficialmente rompidos. O primeiro, reduzido a um “pervertido” que via sexo até no comportamento infantil, teve seus livros queimados em praça pública por oficiais do Terceiro Reich, exilando-se em Londres, já que os nazistas haviam anexado a Áustria. Como bom suíço, Jung era visto “em cima do muro”, nem lá nem cá. Por ter rejeitado publicamente a teoria sexual de Freud como única fonte de doenças psicológicas, foi então encarado, erroneamente, como um opositor às ideias do mestre vienense: como se negasse qualquer coisa relativa a desejo, falo e libido. Passou, então, a ser associado à psicologia alemã de então. Ocorre que naquele momento a Sociedade Médica Internacional para a Psicoterapia funcionava na Alemanha. Com a ascensão de Adolf Hitler ao poder, em 1933, o presidente do órgão, Ernst Kretschmer, abandonou o cargo. Alarmados, já que o novo regime se desenhava como um perigo para a classe científica (o que mais tarde só não se confirmaria para a voltada às tecnologias armamentistas ou à pesquisa de “melhoramento genético”), os demais membros da entidade pediram para que Jung, um suíço, assumisse a cadeira. O que de fato aconteceu. Como além de tudo um sobrinho de Hermann Göring também fazia parte da sociedade, Jung passou a ser visto, por muitos, como simpatizante do nazismo. Mas sob sua presidência, afinal, o órgão internacional conseguiu realizar congressos fora da Alemanha, um alívio para muitos cientistas da terra de Goethe. Jung se via peitando um baita problema, arriscando a pele ao se expor a “inevitáveis mal-entendidos, aos quais não poderia escapar todo aquele que, por força de premente necessidade, tivesse de entrar em contato com os poderes políticos existentes na Alemanha” daquele insano e deprimente tempo. Reformulou estatutos do grupo e permitiu a adesão de membros judeus e antinazistas que haviam sido expulsos da sociedade correlata alemã. Além do mais, o prodígio suíço afirmava que, em geral, o desenvolvimento de simpatias a qualquer “ismo” mais provavelmente dizia respeito a fenômenos patológicos de identidade. Nas entrelinhas da terminologia, um tapa com luva de pelica.

Se em 1938 a Universidade de Oxford, na Inglaterra, outorgava a Carl Gustav Jung um título de Doutor Honoris Causa, no ano seguinte o mesmo deixava a presidência da Sociedade Médica Internacional para Psicoterapia. Logo em seguida, em 1940, o aparecimento do livro “Psicologia e Religião” despertou a fúria da Gestapo a Jung, que ao menos nos domínios do Reich enfim passou a ver sua obra no mesmo lugar da de Freud: no fogo. Após um infarto em 1944, Jung se mudou para Küsnacht, a sudeste de Zurique, para se concentrar em seu trabalho e nas demais coisas importantes da vida, em tranquilidade. Lá, aliás, se distanciava de turbulências emocionais: concretamente, fugia da antiga pupila e amante, a também psicanalista Toni Anna Wolff, posteriormente descrita como “fragrância” de sua vida, ao passo em que Emma Jung, sua esposa, figurava como “fundação” da mesma. Jung viveu tranquilo até os 85 anos, sobrevivendo a ambas.

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Resta dizer que Carl Gustav Jung teve, lá pelos anos 1930, um sinistro déjà-vu de seus sonhos de mares de sangue salpicados de cadáveres lambendo as costas europeias, que o acometiam lá pelos idos de 1913. Em suas palavras, “as fantasias, os eventos psíquicos, são fatos do mundo interior”, mas, em diálogo com eventos externos, surgem relatos que sugerem que nossa história cultural pode ser prevista, até certo ponto, pela constante atualização que fazemos de arquétipos através dos séculos. Há que saber ouvir nosso inconsciente. Pois, como já diziam antigos xamãs siberianos, pajés pirahãs ou sacerdotisas acádias, nós somos seres precognitivos. Nesses termos, Jung, na década de 1930, não pôde deixar de atentar que relatos de sonhos de seus pacientes alemães em Zurique coincidiam. Foi assim que o terapeuta antecipou, com não menos espanto do que no primeiro parágrafo deste texto, os efeitos da ascensão de Adolf Hitler. E o novo ciclo de carnificina. Nossa história: a dos traumas.

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