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Conde da Barca: política, ciências e saberes na biblioteca de um diplomata português

por Andréa de Souza Pinheiro, Luciana Muniz
A “livraria” do Conde da Barca, também conhecida como Coleção Araujense, destaca-se no acervo formador da Biblioteca Nacional. Abrangendo um repertório de saberes diversificado, da Botânica à Teologia, incluindo a Metalurgia – representa uma típica biblioteca do final do século XVIII. O caráter desta biblioteca singular revela um leitor curioso e ávido por um saber universal, além de testemunhar o ofício de um diplomata português diante das expectativas de um cenário político em transição, marcado por transformações político-culturais pelas quais atravessava a Europa e, especialmente, Portugal.

Antônio de Araújo de Azevedo nasceu em Casa de Sá, Ponte de Lima, no dia 14 de maio de 1754. Originário de família da nobreza não titulada do Norte de Portugal, filho de Antônio Pereira Pinto de Araújo de Azevedo e Dona Francisca de Araújo de Azevedo. Seu pai era fidalgo da Casa Real e senhor da Casa de Sá em Ponte de Lima e cavalheiro da Ordem de Cristo, e sua mãe senhora da Casa de Póvoa, na Barca.

Aos 11 anos de idade Araújo foi morar no Porto, na casa de um tio materno, iniciou seus estudos literários, aprendeu diversas línguas, francês, inglês, italiano, grego e latim. Em Coimbra, estudou Humanidades, mas não chegou a concluir o Curso de Filosofia. Dedicou-se também ao estudo das “Boas-letras”, especialmente História e Matemática.

Em 1779 voltou a Ponte de Lima, iniciou-se na vida pública, e organizou a Sociedade Econômica dos Amigos do Bem Público, com o objetivo promover a agricultura, a indústria e o comércio da região.

Transferiu-se para Lisboa (1780), com a intenção de ampliar sua atuação na carreira política.

Um diplomata

Em 27 de julho de 1787, foi nomeado por D. Maria I, Enviado Extraordinário nos Estados Gerais das Províncias dos Países-Baixos. Antônio de Araújo só assumiu o cargo de diplomata dois anos após a sua nomeação. Nesse intervalo, tornou-se sócio da Academia das Ciências de Lisboa e estudou assuntos políticos, diplomáticos e comerciais, na preparação para a futura carreira.

Partiu de Lisboa no dia 2 de junho de 1789, entretanto, não seguiu diretamente para Haia, antes, passou pela Inglaterra e França. Na Inglaterra, deslumbrou-se com os primeiros avanços da Revolução Industrial; na França, em outubro do mesmo ano, testemunhou os primeiros sinais de radicalização da Revolução; assistiu a sessões na Assembléia Nacional e fez contatos com círculos de literatos e cientistas em Paris, como Laivoisier, Lallande e Marmotel.

“Logo que a minha saúde mo permita passarei daqui directamente para Holanda, pois que as desordens políticas de França apresentam uma cena tão horrorosa, que deixo de aproveitar-me da licença que Sua Majestade me tinha concedido para passar por aquele Reino, esperando para o futuro uma melhor conjuntura.” (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Portugal In. Pintassilgo,1988)

Em 6 de agosto de 1790, Antônio de Araújo assumiu em Haia, o posto de Ministro Plenipotenciário de Portugal. Convocado pelo rei, enfrentou momentos decisivos da política internacional européia na conjuntura do realinhamento de forças entre França, Inglaterra e Espanha. A política externa de Portugal, marcada pelas tendências à neutralidade ou pelas alianças que garantissem a sobrevivência do Reino, criou um jogo de oposições entre seus diplomatas, situando-os ora como anglófilos ora como francófilos. Antonio de Araújo, considerado “francófilo”, atuou como representante diplomático na França em 1795, 1797 e 1801. Liderou as difíceis negociações de paz do Gabinete Português com o Diretório e tentou obter um tratado de cordialidade em agosto de 1797. Os acordos não foram ratificados por Portugal, o diplomata recebeu severas críticas de seus pares lusos que o acusaram de negociar contra os interesses do Reino. Para complicar a sua situação, foi encarcerado em 4 de janeiro de 1798 na Torre do Templo, por três meses, acusado pelos franceses de conspiração.

Antes de retornar a seu posto em Haia, entre outubro de 1798 e dezembro de 1799, viajou pelo norte da Alemanha a estudos com os amigos Silvestre Pinheiro Ferreira e D.José Maria de Sousa Botelho Mourão e Vasconcelos, e aprofundou seus conhecimentos em Botânica e Mineralogia.

Visitou, em 30 de setembro de 1799, o poeta Goethe, que assim o descreveu em uma carta a Christian Voigt ...: “... sua índole tem algo de delicado e natural,...porta-se com discrição e dignidade... Ele é muito instruído e culto.” (BEAU, Albin Eduard. Estudos. Coimbra: Universidade de Coimbra, Vol. II, 1964.).

Foi nesse período que começou a organizar a sua “livraria”, com destaque para a Coleção Le Grand Théâtre de l’Univers arrematada em leilão em Amsterdã.

Araújo tinha por sua livraria grande estima, é o que demonstra na carta que escreveu na época em que precisou se afastar de Haia para assumir seu cargo em São Petersburgo:

“Custa-me infinitamente separar-me dela, pois não pode haver coisa mais desagradável do que, depois de ter feito uma coleção assim, ser obrigado a não a gozar. Parece que está determinado pelo destino que jamais tenha sossego por espaço de alguns anos para recrear o meu espírito com um estudo seguido.” (TRIGOSO apud. BRUM, Anais da Biblioteca Nacional, II, 1876-1877 p. 10)

Entre os anos de 1804 e 1806, acumulou as pastas de Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra e de Ministro do Reino, atuou na Corte Joanina pelo desenvolvimento artístico, científico, industrial e militar de Portugal.

Quando retornou à Lisboa em 1804/1805, “[...] sentindo a grande falta que lhe faziam seus livros, necessários para alguns objetos do [seu] Ministério, resolveu trazê-los dos Países-Baixos à Lisboa.” (FEIO, 1931). Solicitou ao seu correspondente na Holanda, João de Charro, que embarcasse sua livraria e sua coleção de mineralogia.: “[...] em 62 caixões, os fez carregar em Amsterdã a bordo do veleiro hamburguês Neptuno, pronto a fazer-se de vela para Lisboa com carregamento de trigo consignado a João Jorge & Filhos.” (FEIO, 1931). Durante o percurso, o veleiro Neptuno foi capturado por corsários ingleses e levado para o porto de Yarmouth, na Inglaterra. O seqüestro muito afligiu o ministro.

Somente após a intermediação do embaixador de Portugal em Londres, a livraria foi resgatada.

Como ministro, persistiu em manter relações neutras com a França e preservar a autonomia de Portugal frente à Inglaterra. No entanto, diante das ameaças declaradas de Bonaparte e seus aliados espanhóis e dependentes do poder naval militar britânico, a Família Real portuguesa não encontrou outra solução, a não ser partir para o Brasil em 1807.

A vida na Corte do Rio de Janeiro

João Guilherme Christiano Müller, encarregado de catalogar e organizar a “livraria”, recebeu ordem de D. Antonio de Araújo e Azevedo:

“Na noite entre 25 e 26...veio hum Correo [arrancar-me] da cama, com huma Ordem de mandar encachotar com toda pressa, tudo quanto da Secretaria de estado estava debaixo da minha [ins]pecção e de manda-lo a Bordo da Náo Medusa...O Sr. Araújo tinha escrito com sua própria letra... que Elle me pedio, que empregasse toda a minha actividade na prompta execução desta Ordem.” (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Coleção Linhares).

Antonio de Araújo seguiu para o Rio de Janeiro a bordo da nau Medusa, acompanhando a Família Real. Trouxe seus livros, caixotes de documentos administrativos, além de um laboratório de química, uma coleção de mineralogia e uma tipografia completa, que deu origem à Imprensa Régia, primeira casa impressora oficial do Brasil.

Após a chegada da corte, em 1808, novos destinos políticos foram traçados. Antonio de Araújo viveu um período de ostracismo, mas continuou a atuar como Conselheiro de Estado.

Afastado das funções ministeriais, dedicou-se às atividades de seu especial interesse, artes, ciências e empreendimentos comerciais. Com o conjunto de instrumentos científicos que trouxe de Portugal, montou em sua residência à Rua do Passeio, um Laboratório Químico Prático e um alambique importado da Escócia, para a fabricação de licores e aguardentes. Incentivou a vinda de imigrantes chineses para o Brasil, responsáveis por introduzir a cultura do chá em terras tropicais.

O seu interesse pela Botânica o levou a cultivar nos jardins de sua casa cerca de 1.400 plantas indígenas e exóticas, que foram reunidas no catálogo “Hortos Araujensis”, (sobre esta obra há indicações em sua biografia, mas nenhum registro sobre a sua publicação).

Regressou ao gabinete em 1814, como Ministro da Marinha e Ultramar. Exerceu influencia nas conturbadas negociações do Congresso de Viena, em 1815, e nas disputas territoriais que se seguiram com a Espanha, pelos limites meridionais na região do Prata.

No campo das artes, colaborou com a vinda da Missão Artística Francesa em 1816, no estabelecimento do ensino das Belas-Artes no Brasil; garantiu a permanência do ilustre pupilo de Haydn, Sigsmund Neukomm, amigo e hóspede em sua casa à Rua do Passeio.

Com a saúde fragilizada, faleceu em 1817.

Antonio de Araújo de Azevedo recebeu o título de 1º Conde da Barca, criado por decreto de 27 de Dezembro de 1815, pela rainha D. Maria I de Portugal.

A livraria

Antonio de Araújo começou a organizar a sua biblioteca em 1787, quando foi nomeado representante diplomático nos Países Baixos. Durante suas viagens e diversas estadas em países europeus, organizou uma coleção com cerca de 3.000 volumes. Destacam-se no seu catálogo, obras de Astronomia, Numismática, edições de Botânica, ricamente ilustradas, e diversos álbuns de gravuras.

Após a morte de Antonio de Araújo, a “livraria” foi a pregão num só lote em 1819:

“Era outro sim propriedade particular do conde uma livraria magnífica, composta de mais de 74 mil volumes, em 2.419 coleções, a qual, para o inventário dos bens do conde, a que seu testamenteiro estava procedendo, foi avaliada em rs. 16:818$300 no ano de 1819. No leilão dessa livraria, a que se ia proceder sob a autoridade do juiz respectivo, apresentou-se, entre os mais cidadãos concorrentes, fr. Joaquim Damaso, nomeado bibliotecário da Biblioteca Pública, autorizado pelo Príncipe Regente para lançar naquela livraria, sendo o pregão num só lote. Assim se fez, e nesse leilão de inventário foi arrematada a livraria para a Biblioteca Pública...”( Brum, Anais da Biblioteca Nacional, II, 1876-1877, p. 361)

Em 1822, foram incorporados 2.365 volumes ao acervo da Real Biblioteca, segundo Menezes Brum. Muitos volumes perderam o Ex-libris de seu titular e foram marcados com o selo da Real Biblioteca, dificultando, posteriormente, a reconstituição original da “livraria” do Conde da Barca.

A Coleção Araujense está distribuída nas diversas divisões da Biblioteca Nacional. É possível encontrar seus títulos nos catálogos de Obras Raras, Manuscritos, Iconografia, Cartografia, Música e Obras Gerais.

Dentre as raridades bibliográficas estão: uma edição de 1550 das obras completas de Maquiavel, o famoso tratado de esgrima de Girard Thibault de 1628 e a coleção ilustrada Hortus Nitidissimis, editada entre 1750 e 1786 na Alemanha.

A Coleção Le Grand Théâtre de l’Univers

Uma parte importante do espólio bibliográfico do Conde da Barca ficou sob a guarda da Divisão de Iconografia. Trata-se da coleção Le Grand Theatre de l’Univers, formada por 125 volumes em formato in-plano, com gravuras de paisagens, cenas históricas, batalhas, reis, rainhas e personagens influentes nas monarquias européias dos séculos XVII e XVIII, além de mapas, folhetos e cartas topográficas de batalhas. Esta preciosa coleção foi organizada por Goswinus Uilenbroeck (1658-1740), colecionador holandês, proprietário de uma das mais preciosas bibliotecas do seu tempo.

Charles von Hulten, eminente bibliófilo do século XIX, nos catálogos de sua coleção particular, refere-se aos volumes oriundos da biblioteca de G. Uilenbroeck:

“Notícia de uma biblioteca magnífica, única pela beleza de seus exemplares, pela pesquisa e tipo de encadernação. A maior parte dos livros está em grande formato. Contém obras antigas e muito raras, uma bela coleção de estampas e um magnífico Atlas topográfico em 125 grandes volumes, de todas as partes da Terra.” (T.A)
(In. CUNHA, Lygia da Fonseca Fernandes da (org.) A Coleção de estampas: Le Grand Théâtre de l'Univers RJ : Biblioteca Nacional, 1970-2004.)

Ao que tudo indica a Coleção foi intitulada pelo seu proprietário/autor (G.Uilenbroeck), pois no catálogo do leilão esta é apresentada sob sua denominação particular:

“Nós encontramos nesta coleção muitas peças consideráveis e raras, mas ao contrário, nós não temos aqui muitos mapas, por esse motivo não o denominamos de Atlas... mas de Teatro do Universo. O autor dessa nova coleção nos convence de que sua grande multiplicidade pode causar confusão e atrapalhar a escolha para aqueles que não são geógrafos de profissão...”. (T.A.)
(BIBLIOTHECA Uilenbroeckiana sive Catalogus librorum quo collegit Vir eximius D. Goswinus Uilenbroeck.Amsterdam, apud Westenius et Smith, 1729. Leilão de 3 de outubro de 1729.)

A Coleção é um conjunto iconográfico único, é uma coletânea factícia, com muitas estampas compradas especialmente para a sua composição e com “reedições” provenientes dos mais diversos livros produzidos nos duzentos anos anteriores, cujas matrizes originais foram recuperadas por Uilenbroeck.
(A Coleção de estampas: Le Grand Théâtre de l'Univers RJ : Biblioteca Nacional, 1970-2004. In. CUNHA, Lygia da Fonseca Fernandes da)

A Coleção oferece uma visão significativa da Europa nos séculos XVII e XVIII, contemplando os principais expoentes no ofício da gravura, sobretudo os representantes da arte flamenga, alemã, além da famosa escola francesa. Conta com peças até então desconhecidas em nosso acervo, como, por exemplo, gravuras de batalhas a partir de desenhos de Georg Philipp Rugendas, bisavô de Johann Moritz Rugendas, e gravuras retratando o advento da peste na França em 1720.

*Andréa de Souza Pinheiro é Técnica em documentação – PLANOR/FBN
*Luciana Muniz é Técnica em documentação – Divisão de Iconografia/FBN e Mestre em Sociologia/IUPERJ

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