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A França no Brasil | La France au Brésil

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Mulheres e Viagens no Século XIX

« Então, onde está a tua mulher ? », foi uma pergunta dirigida a Jean de Léry por um cacique na França Antártica. Indagação que denota uma surpresa que pode ser semelhante a do público de hoje. As mulheres sempre viajaram, mas sua presença no estrangeiro, suas atividades divididas entre a esfera pública e a intimidade e, sobretudo, seus escritos ficaram durante muito tempo na obscuridade. O interesse é recente no que diz respeito à viagem « feminina » e às produções que daí resultam (impressos, correspondências privadas, arquivos, desenhos, pinturas, fotografias, coleta de objetos). O tema das « mulheres em viagem » ou das mulheres e das viagens está ligado às investidas da historiografia recente sobre a cultura da viagem (Sylvain Venayre), aos questionamentos em torno da história literária e da história cultural, às emergências das problemáticas nas transferências culturais, às novas abordagens do colonialismo, às pesquisas feministas e aos estudos de gênero.

O século XIX se apresenta como o século da aventura e da viagem feminina. Desde a aurora romântica, Mme de Genlis defende a viagem de estudos para a mulher ; ela própria será pródiga em conselhos viáticos. Desde a metade do século, aparece na cena pública o primeiro número de Tour du Monde, que inclui um relato da exploradora Ida Pfeiffer (1860). Richard Cortambert reúne artigos publicados em periódicos para montar Les Illustres Vogageuses com, no que diz respeito ao Brasil, o naufrágio de Mme Godin des Odonais, o périplo de Léonie d’Aunet, a aventura de Ida Pfeiffer e a viagem de Mme de Bourboulon. Perto do fim do século surgem compilações: Amélie Chevalier foca as grandes viajantes do século XIX, Marie Dronsart alarga o horizonte das novas amazonas. As anglo-saxãs aparecem em primeiro plano e o caráter exêntrico da viagem feminina é de bom grado destacado. A « virilidade » da educação e a liberdade das mulheres do outro lado da Mancha e das americanas as predisporiam às peregrinações. E lemos nos prefaciadores argumentos que recordam que as mulheres viajam muitas vezes contra a vontade, por acaso ou dever, e que no fundo a viagem não faz parte de sua condição natural. Contudo, estas peregrinações são louvadas em razão de uma especificidade da natureza feminina : a curiosidade, a fineza das observações, ou ainda a precisão em relação às fantasias que normalmente perpassam o gênero.

Várias viagens, inteiramente ou em parte, consagradas ao Brasil são obra de de mulheres de perfis bastante diversos e, com mais frequência do que se pensa, muito individualizadas. Elas não são apenas acompanhantes, ocupando um lugar secundário (Jemima Kindersley, Élisabeth Macquarie Campbell, Rose de Freycinet, Maria Graham, a baronesa Émile de Langsdorff, Virginie Léontine B.,) ou esposas seguindo seus maridos doutores (Mme Agassiz, Élisabeth Burton). O amor à aventura (cujo caso paradigmático é o da exploradora Ida Pfeiffer) casa bem com o gosto pela erudição (Marie Graham, Adèle Toussaint, Marianne North, Thérèse de Bavière). Os ideais de mudança nas colônias do novo mundo (Louise Bachelet, Marie van Langendock, Lina Beck-Bernard) são um outro vetor. E todos estes sentimentos trabalham no seio de relatos baseados na necessidade de ganhar a vida (Maria Durocher, Mme Langlet-Dufresnois, Adèle Toussaint, Ina von Binzer, Sarah Bernhard), experiência que atravessa, radical ou subrepticiamente, a maior parte dos escritos.

O reconhecimento destas viajantes, contudo, é ambíguo. O « relato de viagem » não é um gênero de estatuto reconhecido e a escrita feminina não goza da mesma visibilidade nem do mesmo prestígio que a pluma masculina. Os testemunhos de mulheres se concentram na correspondência privada, nas cartas, cadernos de apontamentos e diários cuja publicação pode ser tardia ou retocada ; às vezes anônima ou reservada a um círculo. A publicação pode responder a um interesse pontual por um fato social, mundano, histórico ou se ver enquadrada por uma voz masculina. É assim que a intelectual Adèle Toussaint afronta a indiferença dos editores pelo seu relato Une parisienne au Brésil, publicado vinte anos após o período passado no país (1883). A onda americana parecia então se esgotar nos relatos publicados de preferência nos periódicos e ela é aconselhada a falar de um « Drama nas florestas virgens ». De fato, a matéria exótica, onde as vozes e corpos de mulheres não são raros, encontra-se com frequência acantonados nos romances de aventura para o grande público (Sur les rives de l’Amazone : voyage d’une femme) ou com uma vocação pedagógica (Fanny Mongelas, Julie Delafaye-Bréhier, Julie Amélie Schoppe) sobre a influência das mulheres na sociedade ou as fortunas e os revezes da emigração.

A recepção se inscreve, contudo, em um panorama crítico. Homens se interessam à questão da emigração em um país submisso à dicotomia barbárie e civilização (a dissertação de Langsdorff; Paul le Gay, prefaciador de Mme Langlois; Charles Expilly). Vozes de mulheres emergem, atentas ao deslocamento (Flora Tristan) e à particularidade do olhar (Adèle Toussaint, Nísia Fernandes) femininos.

As viajantes ao Brasil movem-se assim em meio à massa de imigradas que partiram para “fazer o Brasil”: modistas, professoras primárias, comerciantes, mulheres de artesãos, de negociantes; artistas... esta é então a imagem da mulher francesa. É verdade que a maioria frequenta ou se encontra com as elites. Elas podem gozar deste à vontade para estar entre pessoas, ou entre lugares, ajudadas pelo fato de chegarem a uma terra onde a cultura francesa é um modelo.

Os lugares geográficos são diversos : os portos e, entre eles, a cidade do Rio; as excursões aos arredores. Mas há também outros centros urbanos, as “colônias” no centro e no sul, périplos por rincões pouco explorados.

E o que é feito desta pertinência, desta possível empatia que os testemunhos de mulheres ocidentais, de estatuto menor, mostrariam em relação a seres duplamente subjugados tais como as mulheres, crianças, índios, escravos? Algumas áreas são, claro, privilegiadas: a vida doméstica, a educação, os costumes e a diferença de sexo; a mulher e suas ocupações; a presença dos mestiços e reprimidos. Encontramos justapostas as paisagens da vida local, quadros da natureza e quadros interiores. Sem esquecer as historietas, anedotas e maravilhas expostas em um tom irônico ou sério. Esta voz do íntimo pode, é claro, reproduzir clichês veiculados sobre uma natureza dos trópicos selvagem, desajeitada, ridícula ou violenta, denunciar ou justificar a escravidão. Discursos que são produto de um corte hegemônico do mundo no tempo da consolidação dos impérios e das identidades nacionais. Mas é possível introduzir moções de resistência ou de cumplicidade com o mundo, colonial ou imperial, neste encontro das mulheres com outras culturas e sociedades; de se interrogar a propósito das modalidades estéticas, do gênero da correspondência.

Na sequência dos trabalhos de Mary-Louise Pratt sobre as zonas de contatos, estas mulheres viajantes são também estudadas como exploradoras e mediadoras que introduzem as atividades de outros lugares no seio de suas práticas e representações. Além das referências à produção artística local, destaca-se na maior parte dos relatos um vaivém entre fronteiras: as línguas e as palavras do Brasil; os cantos, danças e músicas, as tradições... e desenhos e fotografias, a coleta botânica, a taxidermia, as iguarias, os objetos do cotidiano. Uma cultura em sua dimensão intelectual, material, visual...


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