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O Modernismo brasileiro e a poesia francófona

Se tomarmos por marco da poesia modernista no Brasil a publicação, em 1922, de Pauliceia desvairada, de Mário de Andrade, a presença francófona se faz sentir na chamada lírica da cidade, cujo o marco de referência é, sem dúvida, os tableaux baudelairianos, embora o principal diálogo se dê aqui com o belga Émile Verhaeren, seguido, no quadro das vanguardas históricas, por Apollinaire e o esprit nouveau – além dos ensaios e conferências, também a poesia, é claro, do autor de “Zone”.

De Les villes tentaculaires precedées de Les campagnes hallucinées procedem o título Paulicéia desvairada, a epígrafe do "Prefácio interessantíssimo" que abre o volume; a visão da cidade moderna tentacular, expandida e sufocante nas suas contradições sociais típicas de um mundo industrial e tecnizado, alheio à angústia do homem; a adoção da loucura como forma de contestação da ordem estabelecida; e certas soluções estilísticas. A poesia de Verhaeren serviria de inspiração a um outro poeta brasileiro menos lembrado, para captar as contradições que marcaram o projeto de modernização da cidade de Recife, em Pernambuco: Joaquim Cardozo, poeta-engenheiro, calculista de Oscar Niemeyer, anos depois, no projeto de Brasília.

No caso de L’Esprit Nouveau, importa observar que Mário era leitor fiel da revista homônima de Le Corbusier ligada ao movimento, sendo ela uma das principais matrizes na só do “Prefácio interessantíssimo” e dos poemas da Pauliceia, mas também da poética traçada, em 1925, em A escrava que não é Isaura. Como nota Lilian Escorel, a teoria moderna do poeta já se esboçou na leitura do primeiro número de L’Esprit Nouveau (outubro de 1920), em que saiu estampado o artigo “Découverte du lyrisme”, de Paul Dermée, poeta e diretor da revista nos três primeiros números, com o qual Mário estabeleceria um rico diálogo teórico-poético.

Ao lado da lírica da cidade, outra forma poética que muito se destacou na fase heroica do movimento modernista brasileiro foi certa poesia de viagem, gênero cartão-postal, que busca registrar em versos bastante condensados as peculiaridades locais. Neste caso, a principal referência francófona é Blaise Cendrars. O poeta franco-suíço travou contato com um grupo de modernistas paulistas em Paris em 1923, vindo no ano seguinte ao Brasil e estreitando suas relações com Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Tarsila do Amaral e Paulo Prado, entre outros. Na companhia de vários deles, Cendrars conheceria, além da cidade de São Paulo, a fazendas de café na região rural do Estado, o Rio de Janeiro com seu carnaval e seguiria em caravana rumo às cidades históricas de Minas Gerais. Ele acompanhou, assim, de perto, a verdadeira redescoberta do dito “barroco mineiro” promovida pelos modernistas, fazendo das Minas históricas verdadeiro tópos da poesia do período, como se vê em uma das seções de Pau Brasil, de Oswald de Andrade, seguido depois por outros modernistas.

Desse contato com o poeta franco-suíço, resultaram trocas significativas nos campos da poesia e da pintura (como se vê no caso de Tarsila do Amaral). No primeiro caso, é visível o diálogo que se estabelece entre a poesia de Pau Brasil e as Feuilles de routes, de Cendrars, na captação de cenas urbanas (em São Paulo), da fazenda, do Rio, das minas históricas... A poesia condensada, que Cendrars já havia ensaiado em Kodak, passou a ser sistematicamente explorada por Oswald no sentido de traduzir alegoricamente, em pequenos quadros, as contradições que marcam o Brasil em termos de modernidade e atraso, cosmopolitismo e provincianismo. São instantâneos de paisagens e costumes kodakadas (para falar nos termos de Cendrars) e condensadas em linguagem poética.

Afora essas vertentes poéticas mais celebradas e características do primeiro momento do modernismo brasileiro, que encontraria desdobramentos consequentes nas décadas seguintes, a presença da poesia francófona poderia ser rastreada nas poéticas particulares de alguns modernistas ou mesmo em certas tendências menos vanguardistas que vão conviver com as mais radicais do movimento. Assim, por exemplo, nos anos 1930, a vertente católica da moderna poesia brasileira (com o primeiro Vinicius de Moraes, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt ...) vai encontrar no versículo bíblico (ou verset) de Paul Claudel um dos principais recursos poéticos, além das afinidades com outros poetas franceses de mesma orientação religiosa (Pierre Jean Jouve, Charles Péguy, Pierre Emmanuel, Léon Bloy, Patrice de La Tour du Pin...). De modo geral, pode-se dizer que, até meados do século XX, há ampla circulação da poesia francesa nos meios letrados brasileiros, o que já levara Cendrars, na conferência feita no Brasil em 1924, a observar que:

Na Holanda cada nome de poeta que eu pronunciava era uma novidade e minha tarefa de conferencista ficou assim bem fácil. Aqui, é completamente diferente. Os nomes de Lautréamont, Rimbaud, Aragon, Apollinaire, Max Jacob, Cocteau, Cravan, Picabia, Soupault são conhecidos; vocês leram seus livros, vocês recebem todas as revistas da França, uma plêiade de jovens escritores reunidos em São Paulo em torno do sr. Paulo Prado: Mário de Andrade, Sérgio Milliet (...) amam e discutem esses autores, os grandes jornais da cidade lhes abrem suas páginas, as ideias entram em circulação, cria-se um movimento de opinião e o grande público pode participar do trabalho dos escritores e dos poetas (EULÁLIO, 2001, p. 130).

É verdade que, no contexto poético-literário dos anos 1940, a hegemonia francesa mantida no campo literário brasileiro desde o século XIX, foi profundamente abalada. Mas, ainda assim, a França continuou a atuar de modo significativo como referência literária, ao lado de outros países europeus e sobretudo dos Estados Unidos, como se pode verificar nas tendências formalistas e construtivistas da poesia do pós-guerra. Basta pensar no diálogo estabelecido com Paul Valéry por João Cabral de Melo Neto e mesmo pela vertente poética mais conservadora do período, a chamada “geração de 45”, sem falar o quanto o concretismo buscou inspiração na experiência poética mais radical de Mallarmé: a experimentação tipográfica de Un coup de dés.


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