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Extrato de um Dicionário Jesuítico de 1756 em Língua Geral

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FONTES EM LÍNGUA GERAL ESCRITAS POR JESUÍTAS DA EUROPA CENTRAL (SÉCULO XVIII)

Cândida Barros (Museu Paraense Emílio Goeldi)


Os jesuítas da Europa Central que chegaram à Amazônia entre 1750 e 1753 nos deixaram uma série de textos sobre a língua geral. São dicionários, textos catequéticos, narrativas rimadas com temas profanos, um estudo gramatical e notas avulsas. Esses documentos mostram as práticas do grupo para aprender a língua geral, idioma necessário não apenas para as práticas de evangelização como para a comunicação com os índios nas missões e os deslocamentos pela região.

Muitos dos documentos são anônimos, porém por alguns traços é possível identificá-los como tendo autores originários da Europa Central: inserção ocasional de passagens em alemão, maior uso do latim e erros de português próprios de fala de estrangeiro (ver Monserrat).

Como não tinham grande proficiência em português, enfrentaram dificuldades extras no aprendizado da língua geral, pois as fontes linguísticas disponíveis haviam sido elaboradas por e para portugueses. Os catecismos de Antônio Araújo (1618) e Araújo e Leam (1686) e as duas edições da gramática de Luís Figueira (1621 e 1687) foram impressos com base nas convenções ortográficas do português. Por sua vez, os dicionários em português-língua geral requeriam conhecimento lexical das entradas dos verbetes para que pudessem servir no aprendizado da língua geral.

Listamos abaixo as fontes sobre a língua geral, identificadas como tendo autoria de jesuítas da Europa Central:

[1] Dicionário da Biblioteca Municipal de Trier (Anônimo, 1756)

O dicionário contém duas seções: português-língua geral (1-43) e língua geral- português (45-62). Essa segunda parte possui uma peculiaridade não encontrada em outros dois vocabulários língua geral-português (Anônimo. Diccionario da Lingua Brazilica e Prazeres 1891): ela está ordenada pelo final da palavra e não pelo seu início. As referências geográficas e étnicas mencionadas no códice são da região do Xingu (ver Prudente).

[2] Prosódia (Anônimo, sem data, pertencente à Biblioteca da Academia de Ciências de Lisboa, Série Azul, cota 569)[1].

O códice apresenta conteúdo textual variado: dicionário português-língua geral (fol.2-84r), lista de termos de partes do corpo (84r-85r), canções religiosas em tupi (101-109) e narrativas rimadas com temas profanos (89-99r). Algumas narrativas reportam as incursões dos brancos nas aldeias em busca de índios para o trabalho nas canoas. Eduardo Navarro (2008/2011) as traduziu para o português.

O dicionário não faz uso do latim nem do alemão, mas comete frequentes equívocos em relação ao português, como aqueles apontados por Monserrat  para a versão do códice da Biblioteca de Trier [1]. Há uma referência geográfica à missão de Aricará (fol.109r), no rio Xingu.

[3] Vocabulário da língua do Brazil (Anônimo, sem data, pertencente à Biblioteca Nacional de Lisboa, códice 3143)

Este dicionário português-língua geral, de 172 fólios, faz uso do latim e ocasionalmente do alemão, principalmente em verbetes com temas sobre a flora, fauna e doenças, para os quais o autor propõe equivalências em alemão. Pela similaridade de informações encontradas nesse dicionário e em Zuzätze (Papavero e Porro 2013), obra impressa por Eckart, este jesuíta poderia ser o autor desse manuscrito (Papavero e Barros 2013:337-351). Em um dos verbetes, há referência à missão jesuítica de Abacaxis, no rio Madeira, onde esteve Eckart.

Os três dicionários [1,2,3] são semelhantes, mas não idênticos. Seus autores se basearam em um mesmo modelo lexicográfico, porém tiveram liberdade para modificar os verbetes a partir da experiência particular de cada um deles nas missões.

[4] Doutrina christãa em lingoa geral dos Indios do Estado do Brasil e Maranhaõ, composta pelo P. Philippe Bettendorff, traduzida em lingoa g[eral] irregular, e vulgar uzada nestes tempos (Anônimo, sem data, acervo da Biblioteca da Universidade de Coimbra, ms. 1089)

O códice contém um catecismo bilíngue em língua geral e latim, com 125 fólios, no qual seu autor propõe, como menciona o título, reescrever os diálogos de pergunta e resposta do século XVII (“composto pelo P. Philippe Bettendorff”),  fazendo uso da forma de falar empregada “neste tempo” (“traduzida em lingoa g[eral] irregular, e vulgar uzada nestes tempos”). Essa adaptação linguística do texto catequético proposta pelo autor responderia à situação na qual os índios não compreendiam mais o catecismo oficializado pela Companhia de Jesus para uso nas missões, por este fazer uso de textos doutrinários tupi escritos no século XVI e não mais modificados.

[5] Specimen da lingua brasilica vulgaris (Anselm Eckart, 1778 e 1779)

É o único, dentre os documentos setecentistas sobre a língua geral, escritos por jesuítas da Europa Central, que foi impresso. O artigo foi redigido um ano depois da saída do padre Anselm Eckart da prisão pombalina. Ele o publicou no Journal zur Kunstgeschichte und zur allgemeinen Litteratur. Em 1779, fez um aditamento ao artigo de 1778, com erratas (Eckart 1779, 121-122).

Eckart fez uso do gênero gramatical do “Janua linguarum” (‘Porta da língua’) de William Barthes, ou do “Methodo grammatical para todas as lingoas do mundo” de Amado Reboredo (Rosa 1994; Assunção e Fernandes 2007).

[6] Anotações avulsas sobre a língua geral do padre Anselm Eckart (Torre do Tombo).

O material confiscado de Anselm Eckart, quando entrou na prisão pombalina, em novembro de 1759, contém cadernetas de anotações com dados sobre a língua geral, na forma de pequenas listas de palavras com seu significado em português, como no trecho abaixo, no qual são listadas palavras com sons próximos mas sentidos diferentes:

öí. Farinha     Äé .esse..    äy . preguiça [animal]

y . agoa     ybý terra   ybûtú ar   ygáti. Proa

[7] Oração do Pai-Nosso (David Fay, 1753).

O jesuíta húngaro David Fay, em carta enviada a seus familiares, logo no ano de sua chegada à Amazônia (1753), inseriu a versão em tupi da oração do Pai-Nosso, valendo-se de uma ortografia adaptada ao húngaro:

“Afinal, para verem os europeus que língua bela nos é preciso aprender agora, transcrevo aqui o padre-nosso, que nos costumamos transcrever segundo a língua lusitana, mas dessa vez o faço segunda a pronúncia húngara para vocês mercês lerem bem” (Fay apud Ronai 1944:272).

A passagem acima é um exemplo das adaptações que os jesuítas da Europa Central fizeram na ortografia usada pelos missionários portugueses para a língua geral. Eles inseriram recursos da escrita do alemão e do francês, e, no caso acima, do húngaro.  Um exemplo de tal adaptação é o verbete “a pressa” no qual o autor propõe interpretar o “y” (vogal central) como “u” francês:

“28 A pressa. celeriter. Eçapyà, v çapyà. y exprimit ut: u gallicũ” (fol.1).

Anselm Eckart, em seu artigo “Specimen Linguae Brasilicae vulgaris”[5],  também explica as convenções ortográficas usadas pelos jesuítas portugueses a partir da pronúncia do francês e do alemão. Segundo Eckart, “C pronuntiatur, utí apud Germanos Z, X ficut Sch. Y velut U gallicum” (Eckart 1778:197) [“C se pronuncia como em alemão Z. X como Sch. Y como o U francês”, tradução de Tannus e Rosário 1994:179)].

Apesar de ter sido uma experiência missionária e linguística breve – alguns dos religiosos não permaneceram por mais de três anos em razão da expulsão pombalina dos jesuítas em 1759 – o grupo dos religiosos originários da Assistência Germânica da Companhia de Jesus deixou indicações preciosas sobre a situação de diversidade linguística das missões e dos seus dilemas em relação à versão a ser empregada para a evangelização, em meio a tão grande variedade linguística: a “vulgar” (categoria recorrente nos dicionários [1,2,3], na Doutrina [4] e no título do artigo impresso por Eckart [4], ou aquela empregada nas fontes impressas (catecismos e gramáticas) que lhes serviram como material de aprendizado sobre a língua geral.

Referências bibliográficas

ANÕNIMO. Doutrina christaã em lingoa geral dos Indios do Estado do Brasil e Maranhão, composta pelo P. Philippe Bettendorff, traduzida em lingoa geral e irregular, e vulgar uzada nesses tempos. Biblioteca da Universidade de Coimbra, s.d.

ANÕNIMO. Prosodia. Dicionario da língua falada por índios do Brasil.Lisboa: Academia de Ciências de Lisboa. no. 569, s.d.

ANÕNIMO. Vocabulário na Língua Brazil. Biblioteca Nacional de Lisboa, Códice 3143, s.d.

ANÕNIMO. Dicionário Português-Língua Geral e Língua Geral–Português. Ms 1136/2048. Biblioteca Municipal de Trier, 1756.

ANÕNIMO. Dicionario da Lingua Brazilica. Coimbra: Biblioteca da Universidade de Coimbra. ms. 94, s.d.

ARAÚJO, Antônio de. Catecismo na Língua Brasílica. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, [1618] 1952.

ARAÚJO, Antônio de & Leão, Bertholameu. Catecismo Brasilico da doutrina Christaã, com o cerimonial dos Sacramentos, & mais actos Parochiaes. Composto por Padres Doutos da Companhia de Jesus, Aperfeiçoado, & dado a luz  pelo Padre Antonio de Araújo da mesma Companhia. Emendado nesta segunda impressão pelo P. Bertholomeu de Leam da mesma Companhia. Lisboa: Officina Miguel Deslandes, 1686.

ASSUNÇÃO, Carlos e FERNANDES, Gonçalo. “Prefácio e estudo introdutório. in Roboredo, Amado (2007)”. Methodo grammatical para todas as linguas. Edição facsimilada. Colecção Linguística. Centro de Estudos em Letras. Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Vila Real. 2007.

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ECKART, Anselm. “Specimen Linguae Brasilicae vulgaris”.  Journal zur Kunstgeschichte und zur allgemeinen Litteratur, p.195-213, 1778. Disponível:  http://www.ub.uni-bielefeld.de/diglib/aufkl/journkunst/.

ECKART, Anselm. “Zusatze sum Specimine Linguae Brasilicae vulgaris”. Journal zur Kunstgeschichte und zur allgemeinen Litteratur 5. p. 121-122, 1779. Disponível:  http://www.ub.uni-bielefeld.de/diglib/aufkl/journkunst/.

ECKART, Anselm. 1994. O Exemplário da língua corrente do Brasil. Tradução do latim de Carlos Antônio Kalil Tannus e Miguel Barbosa do Rosário. Terceira Margem, UFRJ,  Rio. ano 2, n.2. p.176-180.

ECKART, Anselm. Papéis do P. Ancelmo Eschard. Torre do Tombo

FIGUEIRA, Luis. Arte de grammatica da língua brasílica. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1687.

FIGUEIRA, Luis. [1621?] . Arte da lingva brasilica.  Lisboa. Manuel da Silva.

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NAVARRO, Eduardo de Almeida. Um texto anônimo, em língua geral amazônica, do século XVIII. Revista USP, v. 90, p.181-192, 2011.

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PAPAVERO, Nelson e BARROS, Cândida. 2013. “O “Vocabulario da lingua Brazil” (códice 3143 da Biblioteca Nacional de Portugal) e os Zusätze do Ped. Anselm Eckart, S.J. (1785): Obras do mesmo autor”. In: PAPAVERO, Nelson; PORRO, Antônio (orgs.). Anselm Eckart S. J. e o estado do Grão-Pará e Maranhão setecentista (1785). Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2013, p. 337-351.

PRAZERES [Maranhão], Frei Francisco de Nossa Senhora dos. 1891. “Poranduba maranhense, ou Relação historica da provincia do Maranhão [...] com [...] um dicionario abreviado da lingua geral do Brazil”. Revista Trimensal do Instituto Historico e Geographico Brazileiro. v. 54, pt. 1, p. [4]-277. Inclui ‘Nota sobre o Poranduba Maranhense’, de César Augusto Marques, p. 279-281]. Permalink: <http://biblio.etnolinguistica.org>.

ROBOREDO, Amado. Methodo grammatical para todas as linguas. Edição facsimilada. Com prefácio e estudo introdutório de Carlos Assunção e Gonçalo Fernandes. Colecção Linguística. Centro de Estudos em Letras. Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Vila Real, 2007.

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ROSA, Maria Carlota. “Um exemplo de descrição pedagógica no século XVIII: O Specimen linguae brasilicae vulgaris e a tradição jesuítica de ensino de segunda língua”. Terceira Margem. Revista da Pós-graduação em Letras da UFRJ. Ano II, n.2, p. 181-189, 1994.

 

[1] O documento, que está na Biblioteca da Academia de Ciências de Lisboa, tem como título, incluído a lápis posteriormente, “Dicionario da lingua falada por índios do Brasil contendo no fim vários textos principalmente do catecismo escrito na mesma língua”.

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