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Extrato de um Dicionário Jesuítico de 1756 em Língua Geral

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OS POSSÍVEIS AUTORES DO DICIONÁRIO DE TRIER (1756)

Karl Heinz Arenz (UFPA)



Como muitos outros escritos jesuíticos dos séculos XVI a XVIII, o chamado Dicionário de Trier[1] é um documento anônimo, pois a praxe comum, ainda durante toda a época moderna, era de um autor não assinar sua obra. No entanto, de forma geral, a análise de determinados indícios contidos no próprio texto, como também o exame dos contextos envolventes e – caso conhecidos – dos locais de redação e/ou conservação do documento sempre oferecem pistas para desvendar a identidade daquele ou daqueles que o escreveram.

No caso do Dicionário de Trier convém começar com o indício geográfico, visto que o próprio manuscrito aponta a Missão de Piraguiri, no Baixo Xingu[2], como lugar da escrita e a Biblioteca Municipal de Trier, na Alemanha, como o de seu arquivamento[3]. Uma averiguação das fontes e da bibliografia referentes aos jesuítas que atuaram, nos anos 1750, na Amazônia lusa e que tiveram uma relação com a cidade ou o colégio de Trier permite designar três personagens, a saber, os padres Antônio Meisterburg, Lourenço Kaulen e Anselmo Eckart. De fato, desses inacianos, todos originários da Renânia, região no oeste da Alemanha onde se situa também a cidade de Trier, os dois primeiros chegaram à Missão em 1750, sendo seguidos pelo último em 1753. A vinda de Meisterburg e Kaulen remete à influência do padre Roque Hundertpfund que, em sua função de procurador da Vice-Província do Maranhão em Lisboa, entre 1749 e 1750, e confidente da rainha-mãe, D. Maria Ana – como ele, de origem austríaca –, conseguira que mais padres de língua alemã fossem enviados à Amazônia[4].

Mas interessa aqui a ligação dos três com a Missão de Piraguiri (ver Prudente). Assim, conforme o Catalogus de 1752, Meisterburg encontrava-se, desde o ano anterior, na Missão de Aricará (hoje Souzel), próximo a Piraguiri, e Kaulen na fazenda de Mortigura nos arredores de Belém. Já no Catalogus de 1753 – por sinal, o último da Vice-Província do Maranhão guardado no arquivo central da Companhia de Jesus – Meisterburg é missionário em Santa Cruz, na foz do rio Madeira, Kaulen pertence ao colégio de Belém e o recém-chegado Eckart consta como missionário-aprendiz em Piraguiri[5]. Enfim, uma carta-ânua escrita por Kaulen em 1756 comprova que este era, desde o ano anterior, o missionário-residente desta missão xinguense. Na carta, o padre, além de mencionar estatísticas e fazer observações corriqueiras, relata sua expulsão violenta dali[6]. Com efeito, Kaulen inclui-se, juntamente com seus conterrâneos Meisterburg e Eckart, além dos portugueses José Antônio, Teodoro da Cruz, Manuel Ribeiro e Aleixo Antônio[7], entre os primeiros missionários jesuítas diretamente atingidos pelas medidas pombalinas.

A expulsão desses padres, que ocorrera antes do exílio geral, decretado em 1759, mostra o quanto a situação dos inacianos tendeu a agravar-se. Mas não somente o destino das pessoas, também o do próprio Dicionário de Trier tem que ser visto neste contexto conturbado. De fato, o ano de 1756, que se encontra anotado logo no primeiro fólio da obra – juntamente com o termo Meirinho – interliga dois anos decisivos para o projeto reformador do ministro Sebastião José de Carvalho Melo, o futuro Marquês de Pombal. Assim, uma sequência de três leis, assinadas pelo rei em junho de 1755, prescreve para o Estado do Grão-Pará e Maranhão: o afastamento dos religiosos da administração das missões, a emancipação imediata dos índios e a introdução de uma companhia de comércio. A intenção destas medidas era dinamizar a economia a partir de uma mão de obra mais flexível. Dentro da mesma lógica foi promulgado, em maio de 1757, o chamado Diretório das Povoações dos Índios, que previa a civilização dos índios – sendo a catequese doravante somente um aspecto dela – sob o regime de servidores públicos denominados de “diretores”[8].

Nesse contexto, o termo Meirinho que consta, conforme mencionado acima, logo na abertura do manuscrito, suscita interesse. Pode bem se tratar de um registro feito por um desses oficiais de justiça aos quais cabia prender e citar pessoas acusadas, além de penhorar seus bens. Desta forma, é possível que um funcionário com a patente de meirinho tenha confiscado o Dicionário por ocasião da prisão dos padres Meisterburg, Kaulen e Eckart, em 1756, sob a acusação de atividades contrárias aos interesses da Coroa, e sua deportação para o reino no ano seguinte. Errando por várias prisões portuguesas, os três só foram libertados, em 1777, por ordem da nova rainha D. Maria I, já após a supressão geral da ordem inaciana promulgada em 1773 pelo papa Clemente XIV. Seja como for, o bom estado do manuscrito exclui a probabilidade de a obra ter sido levada por um dos três padres para Europa. Sobretudo, o tratamento rigoroso no cárcere de São Julião da Barra, onde eles permaneceram por quinze anos (1762-1777), tornara a posse de livros particulares praticamente impossível[9]. Antes, pode se presumir que o manuscrito, após o confisco por ocasião da já mencionada prisão de seu(s) suposto(s) autor(es) em 1756 tenha sido devolvido e que esse(s), diante da ameaça de sua iminente expulsão, o tenha(m) enviado – talvez por intermédio de Roque Hundertpfund, o primeiro padre a ser exilado – a um colégio ou a um confrade na Europa.

Dos três prováveis autores, Antônio Meisterburg tinha, sem dúvida alguma, maiores razões para mandar o Dicionário para alguém conhecido em Trier. Com efeito, afora o fato de ter nascido em Bernkastel, uma cidadezinha a quarenta quilômetros de Trier, o padre havia passado a maior parte de sua formação no colégio trevirense. Há ainda outro indício que permite dar preferência a Meisterburg como autor principal. O manuscrito contém, em uma das folhas em branco, diversas reproduções de seu prenome “Antonius” (forma latina) e “Anton” (forma alemã) que Jean-Claude Muller interpreta como probationes pennae, ou seja, exercícios caligráficos para testar a pena de escrever do suposto autor[10].

Tudo leva a crer que o manuscrito foi conservado na biblioteca do colégio jesuítico até a interdição da Companhia de Jesus no Eleitorado de Trier. Devido à sucessiva integração deste principado eclesiástico à França revolucionária, a partir de 1794, o antigo acervo jesuítico foi transferido, conforme a política de laicização de então, à nova biblioteca pública aberta a todos os cidadãos[11]. Prova da entrada do documento na nova instituição é a anotação abreviada em francês, no verso do terceiro fólio, feita pela mão do bibliotecário Johann-Hugo Wyttenbach: Bibl. publ. civ. Trev 1799, isto é, Bibliothèque publique civile de Trèves 1799.

O fato de que, neste mesmo ano, ocorreu o falecimento do padre Antônio Meisterburg, no convento capuchinho de sua cidade natal, deve ser mera coincidência. Apesar dos muitos indícios em seu favor, é impossível comprovar que Meiserburg foi o único autor do manuscrito. Ao contrário, as grafias diferentes, sobretudo nos comentários e explicitações acrescidos a certos vocábulos, revelam que o documento foi redigido por várias pessoas. Junto a isso, a óbvia insuficiência no domínio dos idiomas português e Língua Geral (ver Monserrat), além do recurso ao latim e alemão, permitem presumir uma autoria conjunta dos três padres renanos.


[1] Em português, usa-se também Tréveris para designar a cidade de Trier. Fundação romana, ela foi chamada inicialmente de Augusta Treverorum, alusão tanto ao imperador Augusto quanto ao povo celta dos Tréveros.

[2] Os comentários acrescidos a diversos verbetes permitem concluir que o dicionário foi redigido, com grande probabilidade, na Missão de Piraguiri. Trata-se da atual Vila de Pombal situada entre as cidades de Porto de Moz e Souzel, nas proximidades da desembocadura do rio Xingu, no Estado do Pará. Quanto à etimologia do topônimo, o componente pirá (peixe) pode ser uma alusão implícita à fartura de peixe no local. De fato, o padre João Daniel aponta a importância da pesca em Piraguiri. Ver DANIEL, João. Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas. T. 1. Rio de Janeiro/Belém: Contraponto/Prefeitura Municipal de Belém, 2004, p. 395.

[3] Referente ao achado do dicionário, ver MULLER, Jean-Claude. Die Identifizierung eines Sprachschatzes in der Trierer Stadtbibliothek: das jesuitische Wörterbuch Alt-Tupi/Portugiesisch. Kurtrierisches Jahrbuch, vol. 52, 2012, Trier, p. 371-375. O artigo foi elaborado com a colaboração de Maria Cândida Drumond Mendes Barros, Wolf Dietrich e Karl Heinz Arenz

[4] Referente à biobibliografia dos missionários mencionados, ver LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. T. 8. Rio de Janeiro/Lisboa: Instituto Nacional do Livro/Livraria Portugalia, 1938, p. 278, 319, 321 e 347; MEIER, Johannes & AYMORÉ, Fernando Amado. Jesuiten aus Zentraleuropa in Portugiesisch- und Spanisch-Amerika: ein bio-bibliographisches Handbuch. T. 1 (Brasilien: 1618-1760). Münster: Aschendorff Verlag, 2005, p. 247-254, 276-278, 285-297 e 301-303.

[5] Ver Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), cód. Bras 27: José Lopes. Catalogus brevis Personarum V. Provinciæ (01/01/1752), fl. 185r; Manuel Ferreira. Catalogus Personarum & Officiorum V. Prov,æ Maragnonensis Societatis Iesu (25/11/1753), fl. 189r.

[6] Ver Lourenço Kaulen. Carta-ânua da Missão de Piraguiri, 1755-1756. ARSI, cód. Bras., fl.

[7] Referente aos padres portugueses presos em 1756, ver LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. T. 8, p. 218 272 e 320; idem, História da Companhia de Jesus no Brasil. T. 9, p. 412.

[8] Referente à política pombalina na Amazônia, ver SILVA, José Manuel Azevedo e. O modelo pombalino de colonização da Amazônia. Coimbra: Universidade de Coimbra/Centro de História da Sociedade e da Cultura – CHSC, 2002, p. 4-21. Disponível em: <http://www.uc.pt/chsc/rhsc/rhsc_3/jmas>. Acessado em: 30/11/2014.

[9] Kaulen e Eckart deixaram escritos nos quais evocam as condições de vida no cárcere de São Julião da Barra. Ver Lourenço Kaulen, Relações e mapas referentes à estadia nos cárceres de Almeida e São Julião da Barra. Biblioteca Nacional Lisboa (BNL), Reservados, n. 7997; ECKART, Anselmo. Memórias de um Jesuíta prisioneiro de Pombal. São Paulo/Braga: Loyola/Livraria A.I., 1987.

[10] MULLER, Jean-Claude. Die Identifizierung eines Sprachschatzes in der Trierer Stadtbibliothek, p. 372 e 379.

[11] Ver EMBACH, Michael. Handschriften in der Stadtbibliothek Weberbach. Disponível em: <http://www.stadtbibliothek-weberbach.de/Startseite/broker>. Acessado em: 29/03/2014.

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