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Guerra das Penas: os Panfletos Políticos da Independência (1820-1823)…

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Eleições e voto: o baluarte da liberdade na década de vinte do oitocentos

Outras práticas políticas da nova linguagem política liberal eram a possibilidade de depositar nas mãos dos povos a responsabilidade pela escolha dos membros do Poder Legislativo, que se transformava no “principal baluarte da liberdade da Nação”, segundo o Diário das Cortes, em sua sessão de 27 de agosto de 1821. Eleições e voto legitimaram a soberania e exercitaram a liberdade. O Estado regenerado tinha a obrigação de governar a sociedade por meio de uma Constituição, elaborada e aprovada pelos representantes da Nação. Acreditava-se, por conseguinte, que era por meio das eleições e do voto que se podia defender os direitos da sociedade.

As eleições deviam ser feitas à pluralidade de vozes, pois esta era uma exigência do bem público*. O voto de cada cidadão expressava a opinião pública*, logo, o cidadão devia ser um bom eleitor. Este constituía-se como um elemento de ligação entre a sociedade e os deputados. Assim, a “nomeação de um eleitor vale o mesmo como se o povo dissesse: nós te conferimos o direito de nomear o cidadão que defenda a nossa religião e a dignidade de nosso rei”. O eleitor devia ainda possuir qualidades indispensáveis, inúmeras vezes anunciadas e propagadas pela imprensa pré-eleitoral: “o bom eleitor” deve estar “animado do amor do bem público”, ter “uma madura circunspeção e integridade de consciência”. Como estes dotes eram “puramente internos”, devia “haver-se feito conhecido por ações externas”. Da mesma forma, se o eleitor era aquele que expressava a vontade da sociedade, uma vez que nomeava as pessoas dignas para governá-la, devia para tal ser dotado de luzes e talentos, dons ainda mais indispensáveis na pessoa dos deputados eleitos.

Para alcançar tal objetivo, era necessária uma pedagogia cívica e política que vinha à luz na variada literatura de circunstância da época, que procurava mobilizar o homem comum a bem escolher seus representantes para que pudessem intervir nas decisões políticas. Daí, cada cidadão devia “votar com madura consideração”, segundo a sua consciência, porém, “com os olhos fitos em Deus, e na felicidade da Nação”. (Imagem 7) Verificava-se, também, que a linguagem política do liberalismo era dúbia: Igreja e poder secular se mesclavam, não ocorrendo uma total desvinculação da religião ao mundo político.



Imagem 7: REPERTÓRIO dos deveres do Presidente mais pessoas no serviço das eleições da Parochia. Bahia: Tip. Da Viuva Serva & Carvalho, 1821; 2f.; 29 cm. [Pertence à Biblioteca Municipal do Porto, Portugal].

 

As primeiras eleições de cunho nacional, em pleno sentido da palavra, em ambos os lados do Atlântico, estavam intimamente ligadas à convocação das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa em 1820. O Brasil, ainda que tenha conhecido no período da colônia a seleção por votos para os cargos das Câmaras Municipais, não havia experimentado um processo eleitoral, no qual os cidadãos elegiam, por escrutínio, entre os membros da sociedade, aqueles que deviam representá-los nas assembleias legislativas.

No Brasil, entre 1821 e 1823, dois processos eleitorais foram conhecidos. O primeiro, em 1821, para a escolha de deputados às Cortes de Lisboa, cujos critérios foram baseados no regulamento eleitoral português de 1820, elaborado a partir do modelo espanhol. O processo eleitoral, apesar de não estabelecer o voto censitário*, envolvia um mecanismo bastante complexo, correspondendo a quatro níveis sucessivos de seleção: primeiro, os cidadãos domiciliados em uma freguesia escolhiam os compromissários; estes elegiam os eleitores de paróquia*, que, por sua vez, votavam nos eleitores da comarca*. Por fim, estes últimos escolhiam os deputados. O processo foi longo e, se a província do Rio de Janeiro iniciou, de imediato, a escolha de seus representantes (em maio de 1821), foram aqueles de Pernambuco que chegaram primeiro a Lisboa em agosto do mesmo ano. Desse modo, verifica-se que não houve um calendário nacional comum para a eleição dos deputados.

Ainda que o eleitor fosse uma personalidade política no nível paroquial e regional, era sempre visto como um compromissário do povo, que devia amar a Pátria e o bem público. O já citado panfleto Qualidades que devem acompanhar os compromissários e eleitores concluía que: “Os dotes, que devem acompanhar o eleitor, são ao alcance de todos: probidade, firmeza de caráter e amor da Pátria; probidade, para que o eleitor seja fiel à vontade do povo que o elegeu; firmeza de caráter para defender a sua mesma probidade de toda a sugestão ou suborno e amor da Pátria para nomear deputados que sejam semelhantes a ele nesta virtude essencial”.

As eleições e o voto transformaram-se, por conseguinte, em uma novidade num mundo que as desconhecia. Simbolizavam, por detrás das aparências, a formalização e a legalização do poder, a vontade expressa de toda a Nação, representada nas Cortes, enquanto esteio fundamental dos valores do regime liberal, em oposição ao Antigo Regime: daí, a ideia de que o voto era uma arma de combate.

Um Repertório dos deveres do presidente e mais pessoas ocupadas no serviço das eleições da paróquia, publicado em Portugal, mas reproduzido na Bahia, revela a solenidade desse ato político que concedia ao povo o direito de cidadania. Cada personagem do processo eleitoral tinha suas obrigações definidas, a começar pelo pároco, que celebrava a missa no dia da eleição, minuciosamente instruído quanto ao sermão que devia proferir. De cunho muito mais político do que religioso, a pregação tinha como objetivo mostrar quão fundamental era a participação do cidadão no processo eleitoral. Em seguida, indicava a função de cada personagem do processo: o presidente da junta eleitoral, o secretário, os escrutinadores e, por fim, os cidadãos, a quem cumpria aceitar os cargos que lhes fossem designados, desempenhando suas obrigações com lealdade e firmeza de caráter. O processo findava com a celebração de um Te Deum, a legitimar o ritual pela instância do sagrado.

Já na eleição para os deputados que deviam compor a Assembleia Legislativa do Brasil, convocada por D. Pedro em 1 de junho de 1822, os conflitos foram mais intensos, demonstrando matizes distintos da linguagem do liberalismo. A imprensa arvorou-se na grande defesa de uma deputação de todas as províncias, como proclamava o Correio Braziliense, em abril de 1822, reunida em lugar central do Brasil. Os panfletos políticos afirmavam que “os bons americanos [estavam] firmemente persuadidos que uma breve e próxima reunião do Corpo Legislativo brasiliense irá derramar sobre suas feridas um bálsamo consolador e vivificante”.

Em 23 de maio, vários membros da elite mais radical – a brasiliense*, liderada por Joaquim Gonçalves Ledo, José Clemente Pereira e Januário da Cunha Barbosa – encaminhavam uma representação a D. Pedro, solicitando a convocação de uma Assembleia Geral das províncias do Brasil. Pediam que o público comparecesse à loja da Gazeta ou à Tipografia de Silva Porto, nos dias 21 e 22 de maio, para ler e assinar a representação. Era uma maneira de legitimá-la. Segundo o jornal Correio do Rio de Janeiro, registravam-se cerca de 6 mil assinaturas no documento final. Tratava-se de uma nova postura na prática política do Brasil constitucional, pois, para o grupo brasiliense, o apoio da nação representava a decisiva maioria da opinião pública. (Imagem 10)



Imagem 10: CORREIO do Rio de Janeiro. N. 33. 18 maio 1822. Rio de Janeiro, RJ: Typ. Offic. de Silva Porto, 1822-1823. 28x20 cm.

 

Insistindo na eleição direta por meio do voto popular para os deputados, a Representação concedia à Assembleia poderes especiais para “examinar se a Constituição, que se fizesse nas Cortes Gerais de Lisboa”, a fim de “estabelecer as emendas, reformas e alterações” que fossem necessárias ao Brasil. Evidenciava-se a intenção da elite brasiliense de dotar o Brasil de uma instituição que emanasse da soberania popular, proposta não vista com bons olhos, nem por José Bonifácio, nem pelo grupo coimbrão.

Convocada a Assembleia, os debates deviam ter cessado, pois, tal ato constituía sinal aparente de que o governo do Rio de Janeiro reconhecia a soberania partilhada entre rei e nação para a autoridade política. Outra polêmica, porém, logo surgiu no meio intelectual e político: a questão do processo eleitoral, direto ou indireto. Inúmeros debates, quer por meio dos jornais, quer pelos panfletos políticos, foram travados, tanto mais que nas Cortes de Lisboa já se havia optado pelas eleições diretas desde agosto de 1821. Embora as duas formas de eleição preenchessem o princípio essencial do ato eleitoral, segundo a cultura política do liberalismo, pois exprimia a vontade da nação, consistiam em posições diferentes.

De um lado, defendia-se o voto direto, especialmente, o grupo dos brasilienses. Na visão de Gonçalves Ledo, expressa na Representação do povo ao Príncipe Regente, “quando o povo tem uma vez pronunciado o seu juízo, é uma necessidade do governo conformar-se com ele. Aconselhava d. Pedro a que não se opusesse a essa torrente impetuosa da opinião pública”.

Na imprensa periódica, o redator do Correio do Rio de Janeiro, em artigos publicados em maio e junho de 1822, também defensor do voto direto, pressionava por meio da velha ameaça da instalação de uma possível república, caso decidissem na direção contrária à pública opinião, pois avivava-se a desconfiança das Províncias, possibilitando o surgimento de um “partido republicano, que talvez se torne invencível em pouco tempo”. Afinal, em sua visão, a tendência geral da América caminhava para a formação de uma confederação republicana.

As instruções para as eleições, publicadas em 19 de junho, pelo ministro José Bonifácio, indicavam que vencera a postura do grupo mais moderado – o coimbrão – ao se determinar a eleição indireta para a escolha dos deputados, recusando-se um modelo de monarquia constitucional mais democrático.

Vislumbrava-se, portanto, a manifestação de matizes diversos da linguagem do liberalismo, pois se a maioria defendia a convocação da Assembleia Legislativa das províncias do Brasil, surgiram fissuras entre os membros de suas elites: se o grupo coimbrão não tolerava o restabelecimento do sistema colonial, o jugo do despotismo das Cortes e o exclusivo metropolitano, não concordava tampouco com um regime representativo baseado na soberania popular. Já o grupo brasiliense, julgando a república inadequada ao Brasil, sustentava uma monarquia de base popular. Iniciava-se uma batalha política e ideológica, que prosseguiria até a proclamação da Independência do Brasil, cabendo a d. Pedro o papel de fiel da balança.

De qualquer modo, o Brasil entrava na via da política moderna, fazendo do seu eleitor, por meio do voto, o depositário da expressão da vontade da sociedade. Mas, para se atingir tal objetivo, tornava-se essencial a formação de bons cidadãos, que constituíam os eleitores e aqueles que iam ser revestidos do Poder Legislativo.

 

Lucia M. Bastos P. Neves

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