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Guerra das Penas: os Panfletos Políticos da Independência (1820-1823)…

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Guerras Civis no Brasil e contra o Brasil

A oficialização da Independência do Brasil aconteceu com as cerimônias de aclamação (12 de outubro de 1822) e de coroação (1 de dezembro de 1822) do príncipe regente D. Pedro como Imperador do Brasil. Dava-se início, no imaginário político de povos outrora irmãos, a construção da ideia de um Império autônomo em terras americanas. A Gazeta do Rio de Janeiro, em 21 de dezembro de 1822, proclamava: “O Brasil [...] era um Reino dependente de Portugal; hoje é um vasto Império, que fecha o círculo dos povos livres da América; era colônia dos portugueses, hoje é Nação”.

Dessa forma, inúmeras festividades tiveram lugar em homenagem à aclamação e coroação do novo Imperador, não se restringindo apenas ao Rio de Janeiro. Eram cerimônias religiosas, cortejos cívicos; salvas e descargas de artilharia; repiques de sinos; construção de alegorias, por meio de arcos de triunfo e de emblemas; discursos patrióticos e poesias; vistosas iluminações e fogos de artifícios; encenações nos teatros; músicas e bailes festivos. Parecia um grande congraçamento para celebrar o novo Império Brasílico, que se constituía como reino independente e separado de Portugal.

Um exemplo desses festejos pode ser encontrado na vila de São Salvador de Campos de Goitacazes. Houve uma grande iluminação, que se distinguiu pela multiplicidade de luzes e variedade de emblemas. Essas alegorias eram bastante significativas e suas construções ordenadas pelas diversas corporações, destacando-se, entre outras a da Câmara da vila. Apresentava um retrato do Imperador, com todos os emblemas das ciências e artes que ele faria florescer no Brasil. Em relação à nova política, uma das mais ilustrativas imagens trazia, entre uma “multidão de luzes”, a figura de d. Pedro tendo a seus pés Portugal, “figurado em um respeitável velho, vestido de armas brancas, desfeito em pranto”, com o seguinte letreiro: “O Luso Reino em pranto se desfaz,/E te pede humilhado a doce paz”. Sonhava-se com uma convivência pacífica com Portugal que deveria aceitar, na visão de época, a Independência brasileira sem o envio de forças militares (Imagem 13)



Imagem 13: DESCRIPÇAM das festas, que se fizeram na Villa de S. Salvador, Parahiba do Sul, pela acclamaçam do Senhor Dom Pedro de Alcantara, Imperador do Brasil. [Rio de Janeiro]: Tipographia de Torres e Costa, 1822. 3 p. ; 30 cm.

 

Apesar do grande regozijo, muito ainda faltava para que o Brasil se constituísse como um Estado livre, unido, soberano perante qualquer autoridade externa. Aliás, a própria noção de Brasil ainda não era uma realidade. Para atingir tais objetivos era necessário, sobretudo, discutir os rumos do Império. Havia dois pontos relacionados à tal edificação que exigiam medidas imediatas: a manutenção da unidade territorial, em torno do governo do Rio de Janeiro, e a obtenção do reconhecimento internacional do país.

A primeira questão decorria de uma preocupação por parte das elites ilustradas que conduziram o processo de Independência: a concepção de um império luso-brasileiro, desenvolvida na última década do século XVIII, e que se traduziu, após a constatação da incompatibilidade com a política das Cortes, na ideia de Império do Brasil. Embora realizada em poucos anos, deve-se ressaltar que esta unidade só foi alcançada por meio de conflitos militares bastante graves.

Ao final de 1822, Minas Gerais e as províncias do sul (as chamadas Províncias coligadas*) já se tinham manifestado favoravelmente à Independência do Brasil, por meio de ofícios enviados pelas Câmaras Municipais. Outras adesões foram alcançadas, como as de Pernambuco, ocorrendo, mais tarde, em função das dificuldades de comunicação, as de Goiás e Mato Grosso, Rio Grande do Norte, Alagoas e Sergipe. No entanto, as quatro províncias do Norte – Pará, Maranhão, Piauí e Ceará – juntamente com a Cisplatina e parte da Bahia permaneciam fiéis às Cortes de Lisboa. Portanto, a unidade só pôde se impor por meio de guerras – as guerras de independência –, ou seja, uma Guerra Civil* entre aqueles favoráveis à causa nacional ou à causa portuguesa. Inúmeras lutas foram travadas, que tinham como objetivo a união do território sob a coroa imperial, camuflando ainda visões de distintos projetos para a construção do Império Brasílico.

Logo, se a historiografia do século XIX e mesmo a do início do século XX vislumbraram uma independência idealizada por meio de uma lenda rosada, uma vez que narrava a separação do Brasil de Portugal como um episódio a que o mundo poucas vezes assistira, pois representara “um povo que reassume os direitos inalienáveis da sua independência, quebra os vergonhosos ferros de seu vitupério e entra, sem ter passado pelos horrores da guerra civil e da anarquia, no círculo das nações livres do universo” (Imagem 14), a realidade mostrou-se bastante distinta.



Imagem 14: DIÁRIO do Governo. Rio de Janeiro, Nº 28, Vol. 1º, 5 de fevereiro de 1823.

 

Para além de uma guerra literária, a prática demonstrou que a situação se transformou em uma guerra real, pois, nas palavras do dicionarista Morais e Silva, guerra era – “todo ato hostil, com que se faz, ou procura mal ao inimigo para o vencer, aprisionar, matar”. Tratava-se, em verdade, da possibilidade de uma guerra civil – um conflito “a que se faz entre os cidadãos do mesmo Estado” (SILVA,1813, v. 1: 675). Desse modo, vários confrontos ocorreram no interior do novo Império que se criava, como também vinham à tona rixas entre as duas nações outrora irmãs – Portugal e Brasil –, abrindo a possibilidade de uma guerra real.

Ainda assim, muitos escritos de época, consideravam esses embates que buscavam a unidade territorial do Império, apenas como uma conquista justa para manter o Império sob uma unidade garantida pela Dinastia de Bragança. Somente em textos de liberais mais radicais e que traziam indícios de uma tradição cívica republicana, personificada, por exemplo, em Cipriano Barata, o sentido das lutas de independência adquiriu um caráter de guerra. Eram as “opiniões dos campeões no Novo Mundo”. (Imagem 15)



Imagem 15: ALMEIDA, Cipriano José Barata de. Manifesto à Bahia de Todos os Sanctos: Com algumas notas. Pernambuco: Typ. de Cavalcante & Comp., 1823, p.5.

 

Na Bahia, desde 1821, sua adesão às Cortes de Lisboa contava com o apoio das tropas portuguesas comandadas por Inácio Luís Madeira de Melo. Somente em meados de 1822, a Junta Governativa da Cidade de Cachoeira, no Recôncavo, proclamou a adesão ao príncipe D. Pedro. As demais regiões enfrenteram lutas sangrentas, lamentadas em um poema de uma menina baiana de 13 anos de idade que exclamava: “Justos Céus, de que nos servem/Bases da Constituição/Se a Lusa Tropa só quer/Impor-nos a escravidão”. A Bahia somente capitulou e passou a reconhecer sua ligação ao governo do Rio de Janeiro em 2 de julho de 1823, data que, até hoje, comemora-se a sua Independência política. No entanto, esse fato ocorreu após o bloqueio do porto de Salvador pelo oficial britânico Thomas Cochrane e pelo esforço das tropas em terra, que contavam com a participação de escravos estimulados pela promessa de alforria, chefiadas pelo francês Pedro Labatut e, em seguida, por José Joaquim de Lima e Silva.

Na região norte do país, as comunicações, por efeito das correntes e dos ventos, faziam-se mais regulares com Lisboa do que com o Rio de Janeiro, favorecendo à ampliação dos laços econômicos e políticos com a antiga metrópole. Assim, explicava-se que a província do Maranhão ainda procedia, no início de 1823, à eleição de deputados para as Cortes ordinárias portuguesas. Tal região só foi incorporada ao Império Brasílico após grande resistência. Tropas vindas do Ceará e Piauí invadiram o Maranhão com o objetivo de libertá-lo do domínio português. Com o avanço das tropas independentistas, o jornal O Conciliador do Maranhão, recorrendo ao periódico baiano Semanário Cívico, conclamava: se o Brasil não permanecer unido a Portugal, poderia ser “retalhado em diversos governichos independentes, uns dos outros, como Buenos Aires, e a ser presa fácil de potências estrangeiras”. (Imagem 17) Somente quando o Almirante Lord Cochrane entrou no porto de São Luís, a Junta Governativa rendeu-se, dias depois, em 28 de julho de 1823.



Imagem 17: O CONCILIADOR DO MARANHAO. MA: Typ. Nacional, 8 mar.1823, Nº 173.

 

Também no Piauí, o processo de adesão à Independência só ocorreu após violentos embates no campo de batalha entre tropas portuguesas e o exército “brasileiro”. Processo semelhante ocorreu no Pará, que se rendeu em agosto de 1823, sob a liderança do almirante Grenfell. Este acabou por ser responsável por um dos mais violentos episódios das guerras de independência, quando quase todos os 254 civis e soldados presos no acanhado porão de um navio morreram de asfixia.

Lutas também ocorreram na Cisplatina, ocupada por ordens de D. João desde 1816-1817. A maioria dos militares conservou-se fiel ao governo de Lisboa, mas alguns defenderam a incorporação da província ao Rio de Janeiro. O impasse permaneceu até novembro de 1823, quando, percebeu-se a impossibilidade de se receber reforços por parte de Portugal. Doravante, com a retirada do comandante português, as tropas brasileiras assumiram o controle da situação.

Portanto, somente ao final de 1823, definiu-se a unidade territorial do Império do Brasil, à custa de muitos conflitos violentos e sangue, inclusive com algumas ressonâncias no Rio de Janeiro motivadas pelo ressentimento contra os portugueses. Tratava-se ainda de uma unidade frágil, que não foi totalmente resolvida por tais guerras, visto os conflitos que novamente explodiram na época das Regências (1831-1840), colocando uma vez mais em discussão a questão do poder central no Rio de Janeiro entre as demais províncias do Brasil, para além das tensões sociais que permeavam tais questões políticas.

Ainda que a unidade territorial do Brasil fosse sendo desenhada, um outro problema se aventava: o rompimento total e definitivo com Portugal mantinha-se, apesar de tudo, sub judice. De um lado, o imperador era português e sucessor do trono dos Bragança, capaz, portanto, de reunir novamente, após a morte do pai, os dois territórios que o Atlântico e desinteligências separavam. De outro, no plano externo, faltava o reconhecimento internacional do novo país, a ser alcançado por meio de negociações diplomáticas com as potências europeias. A questão primordial era enfrentar a possibilidade de uma guerra externa com Portugal, retornando o país à antiga condição de colônia. Os escritos dos dois adversários levantavam essa possibilidade. E, uma vez mais, o conceito de Guerra Civil veio à tona – uma guerra entre povos irmãos.

Essa ameaça era imaginada ou real? Sem dúvida, os escritos dos dois lados do Atlântico apontavam para a última direção. No Brasil, as notícias, muitas vezes fantasiosas, indicavam a possibilidade do envio de tropas lusitanas, provocando imagens de um mar coalhado de corsários armados pela antiga metrópole. Avistava-se um navio ao longe e os “novelistas” afirmavam que já vinha “contra nós o Anti-Cristo com a besta de sete portas”; tudo estava perdido, pois uma esquadra com milhares de homens estava pronta para saltar “às escondidas em diversos pontos”. (Imagem 18)



Imagem 18: O Spectador Brasileiro: diario politico, litterario e commercial. Rio de Janeiro, RJ: Typ. Plancher, Nº 10. 20 jul. 1824. 30x20 cm.

 

De outro lado, havia o tom ameaçador de uma possível revolta dos escravos, fazendo-se alusão ao “exemplo terrível” da revolta de São Domingos, no final do século XVIII, que, certamente, aconteceria em um país em que “há seis escravos, ao menos, para um só senhor e aonde, por consequência, o desejo inveterado das vinganças é como seis para um”. (Imagem 19)  Ou a perspectiva de uma linguagem irônica, encobrindo ameaças veladas: “o estouvado Pedro, inflamado talvez com a leitura de D. Quixote” aclamava-se imperador “no meio de quatro astutos ambiciosos [...] e de uns poucos de negros e negras, que celebram a entremezada, dançando o Batecu e, berrando desentoadamente: ‘E viva o nosso Imperador’!” (Imagem 20)



Imagem 19: O CAMPEAO Portuguez em Lisboa, ou O Amigo do Povo e do Rei Constitucional: Semanario politico, publicado para advogar a causa e interesses da nacao portugueza em ambos os mundos, e servir de continuacao ao Campeao Portuguez em Londres. Lisboa [Portugal]; Portugal: Typ. Rollandiana, Vol. 1, Nº 6, 11 maio 1822. 20x13.



Imagem 20: A SEGA-REGA. Lisboa; Portugal: Impressao Liberal, Nº1, 15 fev.1823.

 

Essa polarização exprimia cada vez mais um difuso sentimento antilusitano e antibrasileiro nas imagens e escritos entre os dois povos, agora constituídos como reinos e nações separados. Intensificava-se um mal-entendido entre as duas partes do império luso-brasileiro, resultado da colônia, metrópole interiorizada nos trópicos, que não se dispôs nem a acatar as exigências da antiga metrópole europeia – há muito relegada à condição de colônia – nem a abrir mão das prerrogativas adquiridas. Aprofundava-se uma incompreensão recíproca, que resultou em uma total incompatibilidade. A solução para tal embate foi, em parte, sanada com o reconhecimento da Independência do Brasil por parte de Portugal. Aqui, em verdade, a guerra foi muito mais literária do que uma guerra civil entre os povos outrora irmãos.

 

Lucia Maria Bastos P. Neves

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