BNDigital

Guerra do Paraguai

< Voltar para Dossiês

Notas sobre o Armamento na Guerra do Paraguai

Adler Homero Fonseca de Castro: Notas sobre o Armamento na Guerra do Paraguai.


Notas sobre o armamento na Guerra do Paraguai

Adler Homero Fonseca de Castro. Mestre em História, pesquisador do IPHAN e curador de armas portáteis do Museu Militar Conde de Linhares, do Exército.


No Brasil o campo da história militar tradicional tem, desde suas origens, se preocupado quase que exclusivamente com os aspectos “técnicos” da guerra – estratégia, batalhas e líderes. Isso é uma visão limitada e, mais importante, afasta um pouco o interesse da maior parte dos leitores com relação aos conflitos, já que esses aspectos técnicos interessam mais aos profissionais do ramo que, em tese, poderiam se beneficiar desse estudo – os militares. Mas as guerras ou, mesmo em tempo de paz, a preparação para a guerra ou defesa nacional, por seu efeito global, é de extrema importância para se entender as próprias sociedades onde ocorrem os eventos, de forma que hoje em dia se dá cada vez mais atenção ao estudo do modo como os grupos sociais interagem com as forças armadas ao longo dos anos.

O presente artigo propõe-se a trabalhar um aspecto que, no exterior, é considerado como pertencente ao campo mais tradicional da história militar clássica, o es-tudo do armamento. Curiosamente, no Brasil, esse é um assunto que nunca foi explorado de forma mais sistemática, mesmo pelos militares, apesar do armamento ter uma influência determinante na forma de se combater, nas táticas adotadas e, segundo autores, um papel determinante na própria organização social do período em que se insere (1). De fato, não há nenhum estudo sistemático que tente fazer as correlações dos avanços técnicos no campo militar e a conjuntura maior nacional, em qualquer período, de forma que as notas aqui presentes são o resultado de uma reflexão preliminar, mais voltadas para uma análise tradicional – o do efeito das armas no conflito em si, e não em um escopo maior.

Assim, devemos iniciar nossa apresentação enfocando alguns pontos removi-dos no tempo em relação ao ponto central do texto, mas que são importantes para mostrar o caráter da transformação que acontecia em meados do século XIX.

Por incrível que pareça, o Exército brasileiro, até a década de 1850, não tinha um sistema centralizado de compra de equipamentos militares. Apesar da organização política implantada em 1822 ser centralista, os governos provinciais mantiveram, até a regência, uma grande autonomia na aquisição de armas, inclusive no que diz respeito à compra de artilharia no exterior (2).

Deve-se frisar que em alguns casos muito específicos, o governo fazia a compra diretamente junto aos fabricantes, mas esta era realmente a exceção e não a regra, pois na documentação existente no Arquivo Nacional, são poucas as referências a compras diretas no exterior, sendo um dos casos mais exemplares o das armas da Imperial Guarda de Honra, todas fabricadas sob encomenda, na Inglaterra. Mas este é excepcional, pois o material que foi fornecido à Guarda de Honra não era padronizado em lugar nenhum do mundo e ainda mais, a Guarda não pode ser considerada como sendo uma tropa do exército, pois não era vista desta maneira no próprio século passado, conforme colocado na documentação do arsenal de guerra. No caso do armamento, por exemplo, havia previsão de todos os integrante da Guarda, oficiais e praças, pagarem por suas espadas (3).

No caso de aquisições mais rotineiras das forças armadas, mesmo depois da regência, o exército não implantou uma repartição de compra de equipamentos – um serviço de intendência centralizado. As compras eram feitas diretamente pelos arse-nais de guerra no mercado interno, por meio de licitações. Assim, por exemplo, quando havia necessidade de se adquirir espadas para a cavalaria, para repor estoques do arsenal, o diretor deste pedia autorização ao ministro da Guerra e fazia a compra no mercado atacadista, ou seja, comerciantes que vinham do exterior ao Brasil com peças de uso militar, na tentativa de vendê-las às forças armadas. Se o exército desejasse o tipo de equipamento oferecido pelo comerciante, o mestre armeiro do arsenal – um operário civil – examinava as peças, avaliando-as. Caso a avaliação estivesse de acor-do com o valor pedido pelo comerciante, a compra era feita, conforme podemos ver abaixo, em uma circular que foi emitida pelo Arsenal, para a compra de mil armas, datada de 25 de dezembro de 1839:

“Feitas por vezes os anúncios pelos Diários e afixados na Praça de Comercio, sobre a compra de espingardas do adarme 17, de que os armazéns deste arsenal carecem (...) apresentaram propostas vários negociantes com preços distintos. O mestre espingardeiro avaliou as armas (...)” (4).

Este procedimento resultava em uma série de problemas, alguns dos quais óbvios, mas vamos apontar apenas os que consideramos mais relevantes:

O sistema de compras adotado então não permitia a padronização de equipa-mento, pois a aquisição dependia da disponibilidade do mercado. Isso explica a diversidade dos armamentos que se encontram nos museus e coleções particulares nos dias de hoje. Quase se pode dizer que não havia um armamento, a não ser se levarmos em conta que a maior parte do que havia disponível no mercado tinha sua origem em apenas dois países, a Bélgica e a Inglaterra, que tinham, por sua vez padrões bem fixos de armamento.

Este problema de falta de padronização podia ser, e era, agravado, a ponto de se terem feitos compras de armas de calibres diferentes. No caso do exército encontramos algumas aquisições compras de fuzis com calibres não padronizados, bem co-mo uma certa quantidade de armas “exóticas”, como as de origem alemã, nos estoques dos arsenais. Contudo, aparentemente, o sistema de distribuição das mesmas à tropa devia ser eficiente, pois não localizamos na documentação disponível informações sobre problemas de padronização dentro de uma unidade. No caso da marinha, a situação era outra, sendo mais sério, pois o armamento portátil era encarado como sendo secundário, gerando um certo descaso por parte dos comandantes das embarcações. O resultado é que, em pelo menos uma ocasião, uma tropa de desembarque foi enviada para uma missão quase que desarmada, já que os fuzileiros foram armados com fuzis de diferentes calibres, sendo que a munição servia em apenas um tipo de arma (5).

A segunda conseqüência nefasta deste tipo de procedimento era o fato do exército, em caso de necessidade, ter que adquirir as armas disponíveis no mercado, mesmo que de qualidade inferior. Há vários casos registrados de compra de equipamentos usados, e até em mau estado de conservação, para atender a uma demanda inesperada (6).

Por exemplo, o tipo mais comum de canhão que ainda se encontra nos fortes brasileiros é o de ferro fundido padrão Armstrong, dos reinados de Jorge II e III, fabricados entre 1720 e 1797, sendo que há em diversos fortes, peças de artilharia com a rosa dos Tudor! (fabricados antes de 1713, portanto). Este material foi adquirido pelo Brasil logo após a independência, quando estava sendo retirado de serviço na Inglaterra, tendo sido enviadas ao país, reputadamente (7), como sucata, a bordo de navios onde serviam com lastro.

Mas devemos esclarecer que esta prática não era caso isolado do Brasil, tendo sua origem na metodologia portuguesa adotada durante a colônia, além de ser pra-ticada por muitos países. Por exemplo, uma das espadas mais comuns em uso no Paraguai durante a guerra, era a de modelo Inglês de 1796, que saiu de serviço na Europa por volta de 1830, mas que continuou a ser usada por muitos exércitos por anos depois. Por sinal essa espada também foi empregada no Brasil, no primeiro reinado. Thompson também menciona os “velhos e carcomidos canhões de ferro [paraguaios], provavelmente trazidos como lastro nos navios comprados pelo Paraguai. Eram como os canhões que servem de postes em Woolwich Common” (8), ou seja, os velhos Armstrong de Jorge II e Jorge III que também eram comuns aqui.

Finalmente apontamos como resultado desta política de compras, o fato de que dificilmente o exército teria à sua disposição armamentos modernos, pois estes não eram de fácil acesso aos comerciantes e, mesmo que fossem, seriam investimentos de alto risco, devido à natureza especulativa de seu negócio – armas não testadas e pouco conhecidas seriam de venda mais difícil que as que já eram familiares aos militares. A conseqüência foi que o exército brasileiro manteve em uso equipamentos obsoletos por bastante tempo, empregando fuzis de pederneira até meados da década de 1850 – bem depois delas estarem relegadas ao uso de milícias na Europa.

A produção local sempre foi desprezível, pois o arsenal do Rio de Janeiro, através de sua unidade no morro da Conceição, só realizava transformações de arma mento de pederneira para fulminante (percussão), e mesmo assim num ritmo muito lento, menos de 1.000 armas por ano (9).

Estes problemas foram relatados pelo diretor do Arsenal de 1858, que coloca:

“Devido à falta de uma ordenança nacional para todas as sortes de armas (...) [a confusão] que resulta da miscelânea proveniente da aquisição feita sem sistema fixo, não só em diversos países, como nos próprios mercados da Corte e das Províncias (...) à mercê do caso e de sortimentos quase sempre subordinados, em parte pela necessidade do momento, por outra parte aos interesses dos mercadores” (10).

Somente em 1850 é que o exército começou a alterar este procedimento de compra de equipamentos. Para dizer a verdade, cremos que esta força passou por uma grande modernização a partir deste momento, que se reflete, de maneira bem clara na questão dos armamentos. Podemos considerar como marco dessa nova postura a criação da Comissão de Melhoramentos do Material do Exército, em 1850, com o objetivo de testar e aperfeiçoar o armamento em uso, ou proposto para uso.

Assim é que, para a campanha contra Rosas, o Ministro da Guerra mandou adquirir, pelo Cônsul do Brasil na Alemanha – um civil – um certo número de armas de retrocarga, sistema Dreyse. Estas chegaram a ser enviadas ao exército em operações (190 delas apenas), equipando uma companhia de mercenário alemães. Neste mesmo período foram igualmente adquiridas, na França, algumas armas raiadas de percussão, do sistema Thouvenin (Tige, ou de espiga).

Ambos os modelos não chegaram a ser usados na Argentina, mas foram em-pregadas na nova escola de tiro do exército, que surgia, servindo igualmente para adestrar o primeiro batalhão de infantaria.

Em 1855 o exército decidiu reequipar todas as suas forças com armas modernas, de percussão e raiadas, enviando um oficial para a Europa, para fazer a aquisição do material. Este sistema de compras também não apresentou os resultados esperados, pois os poderes e liberdade de atuação do oficial eram muito vastos, resultando na aquisição de armas fora das especificações aprovadas. Esse problema foi agravado pelas comissões de compras seguintes enviadas à Europa, que resultaram na adoção dos célebres Miniés e Enfields, armas excelentes, mas diferentes das de adarme 17 (11), compradas anteriormente, resultando numa grande confusão, com equipamentos de primeira linha, mas em três calibres e modelos distintos.

A parte da artilharia apresentou menos dificuldades, devido ao pequeno número de peças compradas. Na década de 1850 foram feitas experiências com uma boca de fogo de desenho e fabrico nacional, o “canhão-obus” modelo João Paulo, porém os números fabricados foram reduzidos – de fato não conhecemos nenhum exemplar desta peça que tenha sobrevivido até os dias de hoje. A década de 1860 viu uma grande revolução na artilharia, pois a questão Christie tinha evidenciado a obsolescência do material disponível, sendo feito, portanto, esforços para remediar a situação. No entanto, as fontes de armamento pesado no período eram escassas: os Estados Unidos estavam envolvidos na sua Guerra Civil, a Inglaterra proibiu que a fábrica Armstrong vendesse para o Brasil, devido aos problemas diplomáticos, e a França resolveu considerar seus canhões La Hitte como segredo.

Somente com a intervenção do Conde d’Eu, descendente da casa real de Orleans e ex-oficial do exército espanhol, é que se conseguiram comprar canhões na Espanha e França, peças estas que puderam ser copiadas e fabricados no país (12). A fábrica Whitworth, particular, também vendeu uma série de canhões raiados, de alma hexagonal, que equiparam os fortes da barra do Rio de Janeiro. Durante a guerra, algumas baterias de sítio e montanha desse sistema foram empregadas, começando por duas peças de retrocarga que foram usadas por uma bateria de colonos alemães, até que o desgaste natural do sistema levou ao seu abandono. As Whitworth foram, inclusive, as primeiras peças de artilharia raiadas a serem empregadas na marinha, pois algumas foram compradas para equipar a fragata Niterói, peças estas que foram remo-vidas e instaladas em alguns dos navios da esquadra que lutaram em Riachuelo.

Após esta longa introdução podemos entrar na Guerra do Paraguai propriamente dita.

O exército brasileiro, ao iniciar o conflito, já estava totalmente equipado com os novos meios bélicos, atualizados por qualquer padrão de comparação no período. O armamento padrão da infantaria era a espingarda (fuzil) longa, de percussão, raiada e de antecarga, modelo Minié ou Enfield, para a infantaria pesada (fuzileiros). Carabinas, mais curtas que as espingardas eram usadas pela infantaria ligeira (caçadores). A cavalaria usava clavinas (13) e lanças, seguindo a ordem mista, semelhante à adotada no exército francês, onde os regimentos eram compostos por um esquadrão de dragões (soldados armados com clavinas), os restantes sendo lanceiros. A artilharia já tinha recebido seus canhões La Hitte, no final da campanha do Uruguai.

O armamento mais antigo continuava a estar estocado e, aparentemente disponível em pequenos números, especialmente para as unidades de Voluntários da Pátria, das quais há notícias de terem chegado a marchar com antigas armas de pederneira antes de receberem novas, no front. Os estoques eram tais, que no caso do ataque do forte de Coimbra, o conhecido incidente das mulheres cortando as balas para poderem continuar no combate, é um indicativo que o forte tinha estoques de munição de adarme 17, de calibre muito grande para as novas Miniés, justificando o ajuste nos projéteis.

Consideramos ser necessário fazer uma pequena observação aqui: as razões da queda de Coimbra podem ser vistas como secundárias, mas, independente de sua importância, é uma questão que depende do conhecimento do funcionamento das ar-mas, para poder ser completamente entendida, podendo levar a interpretações dúbias. Por exemplo, ao citar a queda do forte de Coimbra, o historiador Francisco Doratioto coloca o seguinte:

“A historiografia brasileira afirma que os defensores gastaram 9 mil dos 12 cartuchos de fuzis de que dispunham no arsenal (sic) e que outros 3 mil foram prepara-dos pelas mulheres que se encontravam no forte e por alguns soldados. Após novo combate, travado durante o dia 28, teriam restado às forças brasileiras apenas mil cartuchos de fuzis e pistolas. Essa situação teria sido o motivo da ordem de Portocarrero de evacuação do forte (...)” (14).

O autor, em nota, cita o material que foi capturado pelos paraguaios no forte, incluindo 3.000 cápsulas para armas de percussão e 83.400 cartuchos de fuzil. Aparentemente, a existência de um número tão elevado de cartuchos poderia colocar em dúvida os motivos da evacuação do forte ou, como colocou Doratioto, “essa situação teria sido o motivo da ordem” de retirada. Mas, a própria relação de munição captura da já é uma prova que a situação do forte era insustentável: tendo gasto nove mil cartuchos nos combates iniciais, a munição restante, incluindo a manufaturada localmente, seria suficiente para apenas mais 3.000 disparos, já que só havia esse número de cápsulas de fulminante disponíveis. Essas cápsulas eram indispensáveis ao funciona-mento da arma, não importando o número de cartuchos de fuzis existentes. E, mesmo esses não eram apropriados, pois o calibre das armas Miniés era de 14,8 mm, enquanto o das de “adarme 17” era de 17,5 mm, obrigando ao corte dos projéteis para que pudessem ser usados nos canos das armas, o que foi feito nos 3.000 cartuchos preparados pelas mulheres dos defensores, acima citado. Um detalhe de funcionamento da arma, mas importante para o entendimento do que aconteceu em Coimbra.

Voltando ao tópico desse trabalho, não podemos dizer que o exército, apesar de bem equipado, tenha tido tempo de se adaptar às novas armas, que exigiam um treinamento muito mais cuidadoso que as anteriores, de alma lisa. Estas – o armamento padrão do exército paraguaio – tinham um alcance efetivo de cerca de 75 metros, bem próximo do “ponto branco”, de maneira que o soldado só tinha que aguardar a ordem de fogo do oficial, atirando na direção geral do inimigo com a arma mais ou menos na horizontal.

Os fuzis Miniés, contudo, eram muito mais precisos, tendo condição de acertar um alvo individualizado a cerca de 300 metros. De fato eles vinham com alças reguladas para 825 metros – uma distância que hoje consideraríamos absurda, mas que não era vista como sendo tão problemática na época, devido a tamanho dos alvos, muitas vezes com dezenas de metros de largura, correspondendo a frente desenvolvida de um batalhão de infantaria. Contudo a velocidade inicial dos novos fuzis era pouco superior ao dos antigos, de pederneira, de maneira que elas tinham uma trajetória muito curva e isto, por sua vez, exigia um julgamento muito preciso quanto à distância ao alvo para que o fogo fosse eficaz. No entanto poucos oficiais tinham o treinamento necessário para isso – e nenhum dos corpos de Voluntários da Pátria: o primeiro manual de tiro do exército brasileiro foi uma tradução do livro de Panot, publicada por ordem de Caxias em 1853, mas que, além de se referir a um armamento não disponível no país (o Tige), teve uma tiragem e circulação bem limitada.

É necessário considerar também a resistência do corpo de oficiais, não preparado para a introdução de equipamentos de funcionamento marcadamente diferente do anteriormente usado, além da própria sistemática de treinamento das tropas, onde as praças recém incorporadas eram treinadas individualmente pelos sargentos e cabos. Isto dificultava, se não impossibilitava, o treinamento coletivo que era ignorado pela maior parte das unidades. A exceção era daquelas sediadas na corte, onde a existência de um corpo de oficiais mais acadêmico, e do batalhão depósito (uma unidade escola), levava a existência de um padrão de treinamento um pouco mais elevado.

No caso da artilharia, a introdução do novo armamento levou, pode-se dizer, a um pesadelo, pois as novas peças para serem eficientes necessitavam de um elevado grau de treinamento por parte dos comandantes das bocas de fogo. Esse treinamento era indispensável para a regulagem das alças de mira (inexistentes até então), das espoletas e para o uso de munições diferenciadas. Estas últimas, anteriormente, eram das mais rústicas e que agora se tornavam muito complexas e apresentando a dificuldade adicional de serem muito pouco confiáveis, com uma taxa de falhas (negas) elevadíssima, tanto que os Paraguaios instituíram um sistema de recuperação e reutilização de munição não detonada, a ponto de fabricarem canhões com este objetivo, como no caso do famoso Criollo. A introdução dos novos canhões durante uma campanha foi ineficiente, então, pois os oficiais e praças encarregados das peças só puderam se familiarizar com elas no próprio campo de batalha, o que obviamente não é o ideal.

Talvez sejam estas as origens do sistema de emprego tático das armas durante a guerra, pois, apesar das forças brasileiras terem um armamento muito superior ao paraguaio, não encontramos diferenças marcantes no uso das tropas dos dois países no teatro de operações, pelo menos até o final da guerra. Aparentemente os brasileiros desperdiçaram a vantagem que o armamento mais moderno lhes dava, mas cremos que isso fosse devido à impossibilidade de se usar, efetivamente, essas novas armas. De qualquer forma a vantagem virtual existente diminuiu a partir de 1867, quando se decidiu não enviar mais munição Minié (14,8 mm) para o exército, já que havia sérios problemas com o suprimento das unidades – as balas das armas belgas (Minié) não entravam nas armas inglesas, de calibre 14,66 mm (Enfield), de maneira que se padronizou a munição, só com o envio de balas Enfield. O resultado foi uma degradação das qualidades balísticas do armamento Minié, pois, apesar da diferença de calibres parecer mínima – menos de dois décimos de milímetro – experiências recentes mostraram que o uso de uma bala subcalibrada na Minié é suficiente para fazer a bala “trambolhar” a já 25 metros da boca da arma, perdendo precisão e poder de penetração.

Daí que seja observável, nas partes (relatórios) oficiais do conflito, referências constantes ao combate de choque, a baioneta, quando o novo armamento deveria ser capaz de manter o inimigo à distância. Isso mesmo considerando a natureza das batalhas, quase sempre assaltos a fortificações passageiras, que serviriam para negar a vantagem das armas mais modernas.

Caxias, quando assumiu o comando, tentou melhorar a situação do armamento, aproveitando-se do fato do país poder importar diretamente armamentos modernos, o que era negado ao Paraguai, bloqueado pela Marinha Imperial. Mas sua atuação não parece indicar uma convicção muito grande na eficácia dos novos equipamentos. Foram compradas nos Estados Unidos 5.000 fuzis raiados de retrocarga, de um sistema praticamente desconhecido, o Roberts, bem como 2.000 clavinas de cavalaria, de retrocarga e repetição, do sistema Spencer, ao mesmo tempo em que se redistribuíram as velhas Dreyse, que tinham sido adquiridas na campanha contra Rosas.

O resultado destas experiências iniciais não foi dos melhores, contudo. A munição dos fuzis americanos era defeituosa, de maneira que o comando decidiu não as entregar às tropas, enquanto as Dreyse eram armas muito complicadas, que precisavam de um elevado grau de treinamento para serem efetivas. Mesmo sendo entregues a um batalhão selecionado do exército – o 15° de Caçadores, comandado por um antigo instrutor da Academia Militar –, seu uso no combate do Estabelecimento durante a redução de Humaitá foi um desastre, tal como descrito por Dionísio Cerqueira (15). Como resposta ao problema, Caxias não fez mais uso de armas novas e a conseqüência disso foi a manutenção das técnicas primitivas de combate, como pode ser observado nos combates da Dezembrada. Em Itororó, por exemplo, há o famoso incidente de Caxias liderando o ataque na ponte, demonstrando que a ação foi um comba-te de choque e não de poder de fogo. Outro exemplo – talvez mais revelador – pode ser observado na batalha de Avaí, decidida por uma carga da cavalaria de Osório, feita a “ferro frio” – talvez a última grande carga de cavalaria no mundo a destruir quadrados inimigos organizados da forma napoleônica usando apenas sabres e lanças, ignorando totalmente as possibilidades abertas pelo fogo concentrado de longo alcance, de infantaria e, principalmente, de artilharia.

Com a chegada do conde d’Eu à frente de combate em 1869 houve uma modificação na forma de pensar do exército, no que tange ao emprego tático do armamento. O conde, apesar de ter sido apenas um capitão no exército espanhol, tinha treinamento em uma das armas “técnicas” do período, a artilharia, bem como tinha tido contato com armamentos mais modernos na Europa. A isso se juntava uma educação esmerada e um profundo conhecimento, que pode ser observado nas atas das reuniões da Comissão de Melhoramentos do Material do Exército, por ele presididas após a guerra. Finalmente, não podemos deixar de cogitar que a própria juventude do conde, que tinha apenas 27 anos quando assumiu o comando, pode ter levado à uma melhor compreensão do efeito das novos artefatos bélicos, já que não tinha o preconceito adquirido por longos anos de experiência com os equipamentos antigos. Assim, e apesar da impopularidade do príncipe estrangeiro, ele levou a uma abertura na forma de se pensar o uso das armas, no final da guerra.

Como exemplos claros da ação do conde podemos citar a ordem dada por ele de se re-experimentarem as clavinas americanas, as Spencer, pois o problema de munição anteriormente mencionado referia-se apenas aos fuzis Roberts. As Spencer, quando distribuídas à tropa, provaram ser um grande sucesso, apesar de serem mais complexas do que qualquer outro armamento em uso pelos soldados de então, por serem de repetição. Na artilharia, nota-se nos relatórios dos combates, que ela passou a ser usada de forma bem mais agressiva, através da simples solução de se usar cavalos para tracionar as peças ou mulas, no caso das bocas de fogo de dorso (antes eram puxadas por homens).

Na infantaria vemos, pela primeira vez, o uso racional das armas de longo alcance. Na batalha de Campo Grande, ao invés de se aproximar para o combate corpo-a-corpo, que seria vantajoso aos paraguaios, o conde d´Eu determinou que os batalhões operassem parcialmente dispersos no terreno, uma ala (metade de batalhão) de cada corpo atuando como atiradores, apresentando um alvo menor para os disparos inimigos. Mais importante, o fogo foi feito a alcances maiores, aproveitando-se das vantagens das Miniés sobre as armas de pederneira paraguaias, como colocou o vis-conde de Taunay no Diário do Exército:

“Os batalhões que primeiro saíram a campo e logo se formaram, uma ala em atiradores e a outra em linha, foram o 2º e o 7º, encetando tais descargas que a frente inimiga foi retrocedendo, estabelecendo-se nela claros e ficando os flancos sem apoio. (...)

Com esta disposição e dada ordem de avançarem as linhas de atiradores, foram as linhas inimigas cedendo o campo com grande desvantagem, por isso que as nossas armas a Minié levavam até as suas reservas [na retaguarda inimiga] à morte, ao passo que entre os nossos mais avançados soldados pouco prejuízo se dava”
(16).

O resultado do uso eficaz do armamento da infantaria foram as pesadas per-das paraguaias nessa batalha: 1.200 prisioneiros e 2.000 mortos, valores elevadíssimos se comparados às perdas brasileiras, de 26 mortos e 259 feridos. É possível imaginar como teriam corrido os outros embates da guerra, se os oficiais comandantes tivessem percebido o potencial do armamento disponível – o que só ocorreu muito tarde, infelizmente.

Mas a principal mudança – talvez revolucionária para o exército da época – não foi no emprego do armamento da infantaria e sim na cavalaria. Como dissemos acima, havia a prática de se usar regimentos mistos de lanceiros e carabineiros, com a ênfase sendo colocada nos lanceiros, para o combate de choque, corpo-a-corpo. Isso apesar da proporção dos lanceiros em relação aos dragões ter caído de três em quatro (75%) para dois em três (67%) durante o comando de Caxias, num reconhecimento da crescente eficácia dos soldados de cavalaria equipados com armas de fogo. O conde d’Eu – ou seu estado maior, não importa de quem foi a decisão, contudo, decidiu romper com este costume, separando os esquadrões de clavineiros dos regimentos de cavalaria, criando unidades “ad hoc” de dragões armados com Spencer, que passaram a ter um uso cada vez maior e mais importante. A clavina americana era muito superior as anteriores, não só devido à cadência de fogo superior, mas também pelo fato singular de poder ser usada com o atirador deitado, o que não era possível com as armas de carregar pela boca. Assim, podemos citar um exemplo das partes de comba-te, que mencionam:

“No combate de S. Solano a 6 de setembro, um grupo de cavalarianos, apenas 57 armados com aquelas clavinas [Spencer], resistirão intrepidamente a uma força de quase 500 homens de cavalaria inimiga, em cujas fileiras faziam destroços, e sustentaram o mesmo ataque até a chegada de reforços!” (17).

Contudo, e apesar da grande importância da infantaria montada durante o conflito, após o término das hostilidades não encontramos um reflexo claro da experiência da guerra na nova organização do exército. É fato que a velha divisão da infantaria em duas especialidades – caçadores e fuzileiros – desapareceu após o conflito, com o surgimento de uma única especialidade, mas cremos que esta decisão já estava tomada antes da guerra, pois quase todas as unidades de Voluntários da Pátria foram criadas como sendo caçadores. A transformação que poderia ter sido um marco do pensamento militar, mesmo se levando em consideração a experiência européia, seria o surgimento de uma cavalaria preparada não só para o combate de choque, mas, e principalmente, para o combate a pé. Esta experiência, tentada no final da guerra, não chegou a vingar, voltando-se à ordem mista após o conflito. Somente após a virada do século é que a cavalaria brasileira assumiria um papel mais adequado à revolução tecnológica de meados do século XIX, sendo interessante apontar que a última lança adotada pelo exército foi a Ehrardt, ainda em 1908 e que somente em 1917 é que a cavalaria adotou a arma de fogo para todos os seus soldados.

Do ponto de vista do armamento, as lições aprendidas a um custo elevadíssimo durante o conflito não foram suficientes para realizar uma modificação mais profunda na forma que o Exército encarava a doutrina de uso do armamento.


NOTAS:

1 - Trabalhando com a questão do papel da tática como determinante na formação social, podemos citar as obras que lidam com a questão da formação do Estado Moderno pelo víeis militar. Cf. ROBERTS, Michael. The Military Revolution, 1560-1660. Belfast: Queen’s University, 1956; Geoffrey Parker: The military revolution, 1550-1660 - a myth? Journal of Modern History, 48, June, 1976 e The Military Revolution: Military innovation and the Rise of the West, 1500-1800. Cambridge: Cambridge University Press, 1988; BLACK, Jeremy Black - A military revolution : military change and European society - 1550-1800. London: Macmillan, 1991 e Michael Duffy (ed.): The military revolution and the State : 1500-1800. Exeter: Exeter University Press, 1986. Com uma visão mais antiga, há a obra de J. F. C. Fuller: Armament & History : The Influence of armament on history from the dawn of Classical Warfare to the end of the Second World War. New York : Da Capo, 1998 ou os mais recentes: CREVELD, Martin van. Technology and War : from 2.000 b.C. to the Present. London: Brassey’s, 1991 ou MCNeill, William H. The Pursuit of Power : Techonology, Armed Force, and Society since A. D. 1000. Chicago: University of Chica-go, 1984.

2 - BRASIL – Legação Imperial em Londres. Ofício do Ministro da Legação Imperial em Londres Manoel Rodrigues Carneiro Pessoa a João Vieira de Carvalho. Londres, 18 de julho de 1825. Sobre "a pratica de se permitir a importação de quaisquer munições de guerra em todas as províncias do Brasil". O documento cita que "(...) as autoridades civis e militares das referidas províncias [mandam] comprar armamento, fardamento, e até munições de guerra para seu uso respectivo nos Paí-ses Estrangeiros". Mss. Arquivo Nacional.

3 - BRASIL – Arsenal de Guerra. Ofício do diretor do Arsenal ao ministro da Guerra, 21 de março de 1834. Mss. Arquivo Nacional.

4 - BRASIL – Arsenal de Guerra. Ofício do diretor do Arsenal ao Ministro da Guerra, de 21 de junho de 1839. Mss. Arquivo Nacional.

5 - Cf. LEITE, Maximiano Antônio da Silva. Arte de balística naval demostrada e outros conhecimentos sobre a artilharia e mais armas em uso a bordo dos navios de guerra. Compendio para a acade-mia dos Guardas Marinhas por ... Rio de Janeiro: Typographia da Associação do despertador, 1840. p. 104.

6 - Por exemplo, ver: BRASIL – Ministério da Guerra. Aviso do Ministro da Guerra ao Diretor do Ar-senal de Guerra. 25 de agosto de 1851. Autorizando a compra, dada a urgência, de 500 terçados, que segundo a avaliação do mestre de espingardeiros são usados e em mau estado, tendo bainhas de couro e guarnições novas. (o grifo é nosso). Mss. Arquivo Nacional.

7 - BARROSO, Gustavo Dodt. O Brasil em face do Prata. s.n.t. p. 51

8 - THOMPSON, George. A guerra do Paraguai. Rio de Janeiro, Conquista, 1968. p. 58.

9 - BARRETO, João Paulo dos Santos. Relatório da repartição dos negócios da Guerra apresentado … Assembléia geral legislativa na 4ª sessão da 6ª legislatura pelo respectivo ministro e secretário de Estado, João Paulo dos Santos Barreto. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1847. Mapa n° 13.

10 - BRASIL – Arsenal de Guerra. Relatório do Arsenal para o ano de 1857 da Diretoria do Arsenal de Guerra para o Ministro da Guerra. Alexandre Manoel Albino de Carvalho. Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 1858. Mss. Arquivo Nacional.

11 - Medida antiga de calibre, correspondente ao peso da bala de chumbo esférica disparada pela arma. Neste caso eqüivale a 17,5 mm.

12 - BRASIL – Comissão de Melhoramentos do Material de Guerra. Relatório do presidente interino (...) da Comissão para o ano de 1860, ao Sr. Ministro da Guerra, Marquês de Caxias. José Mariano de Matos. Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 1861. Mss. Arquivo Nacional.

13 - Deve-se observar que a terminologia no emprego das armas era diferente da usada hoje em dia. Os termos Espingarda e Carabina designando o que, hoje em dia, seria chamado de fuzil e a clavina o que alguns autores conhecem, erroneamente, como carabina. Mas eram armas bem diferentes das definições atuais, tanto em suas características físicas como no método de uso. Ver: DUARTE, Antônio Francisco. Manual do Soldado de Infantaria, extensivo ao soldado de artilharia e de cavalaria. Rio de Janeiro: Guimarães & Villas-Boas, 1872.

14 - DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. Maldita Guerra : nova história da guerra do Para-guai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 101. O grifo é nosso. Observamos que não havia um arsenal em Coimbra, o Arsenal do Mato Grosso ficando em Cuiabá. Cremos que o autor queira se referir ao paiol de munição local.

15 - CERQUEIRA, Dionísio. Reminiscências da campanha do Paraguai, 1865-1870. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, [1980]. p. 222.

16 - TAUNAY, Alfredo d’Esgragnolle. Diário do exército : 1869-1870 : a Campanha da Cordilheira de Campo Grande a Aquidabã. Rio de Janeiro: BIBLIEX, 1958. p. 137.

17 - AMARAL, Antônio José do. A influência do armamento de carregar pela culatra sobre os diferentes ramos da arte militar, fez-se sentir convenientemente na última guerra que o Brasil esteve em-penhado com o Paraguai? Rio de Janeiro: Typographia Perseverança, 1871. p. 80.

Parceiros